O historiador italiano Carlo Ginzburg, no
texto “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, discute a emergência, no
final do século XIX, de um modelo epistemológico, ou paradigma de conhecimento,
baseado nos indícios, na reconstituição através de pequenos vestígios. O modelo
aparece em formulações como o método Morelli para desvendar falsificações em
obras de arte, e nas histórias policiais do personagem Sherlock Holmes, criação
de Arthur Conan Doyle (1859-1930). O “método Morelli” consistia na técnica
desenvolvida pelo italiano Giovanni Morelli para identificar quando uma obra de
arte foi incorretamente atribuída a um pintor: segundo Morelli, ao invés de
buscarmos pelos traços mais memoráveis de uma pintura (por exemplo, o sorriso
de Monalisa na pintura clássica de Leonardo da Vinci), encontramos a autoria
nos traços mais negligenciáveis de uma obra. Seriam os pequenos detalhes, que o
pintor elabora quase que inconscientemente, que esconderiam a personalidade de
seus autores. O desenho das orelhas, por exemplo, poderia abrigar a
singularidade de um estilo de pintura individual.
Semelhante estilo de investigação e
descoberta pelo estudo dos indícios aparece também, no final do século XIX, no
personagem Sherlock Holmes. Como explica Ginzburg:
O
conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do
quadro [no caso de uma falsificação]) baseado em indícios imperceptíveis para a
maioria. Os exemplos da perspicácia de Holmes ao interpretar pegadas na lama,
cinzas de cigarro etc. são, como se sabe, incontáveis (GINZBURG, 1989, p. 145).
A história faria parte, segundo Ginzburg, do conjunto de disciplinas do conhecimento indiciárias (como a medicina), pois seu conhecimento é “indireto, indiciário, conjetural” (GINZBURG, 1989, p. 157). A literatura policial torna-se gênero popular entre o fim do século XIX, e início do século XX, e comparações entre o trabalho do historiador e o do detetive (real ou imaginário) persistiriam. O livro A Ideia de História (1946), conjunto de ensaios publicados postumamente do filósofo e historiador inglês R. G. Collingwood, estabelecerá esse paralelo também. Collingwood cria uma história-modelo ficcional (“Quem matou João Ninguém?”) para expor os procedimentos do historiador. O autor elabora como, a partir da pergunta principal sobre quem teria sido o assassino, um conjunto de novas perguntas vai gradualmente se desdobrando, levando o detetive (/historiador) a refazer os acontecimentos até chegar ao “culpado”. Por isso, afirma Collingwood, os historiadores não estudam épocas, ou indivíduos: estudam problemas (Collingwood retoma aqui frase de 1895 do historiador inglês Lord Acton [1834-1902]). Para o autor, os “historiadores científicos estudam problemas: fazem perguntas, e – quando são bons historiadores – fazem perguntas, que se entrevêem o caminho para as respectivas respostas” (COLLINGWOOD, 1972, p. 341). Collingwood cita o personagem Hercule Poirot, criação de Agatha Christie (1890-1976), para ilustrar o procedimento, e também para mostrar a popularização das histórias de detetive, desde a virada do século, época das histórias de Sherlock Holmes e das reflexões de Lord Acton (conexão que o próprio Collingwood estabelece).
Estátua
representando Sherlock Holmes, em Londres, localizada onde ficaria o endereço
ficcional do escritor, na Baker Street (Extraído de https://en.wikipedia.org/wiki/Statue_of_Sherlock_Holmes,_London,
acesso em 13 de abril de 2017)
O exame dos indícios, ou “provas”, como
preferia Collingwood, a reconstituição do que se passou por meio de
inferências, e a chegada a um conhecimento indireto (porque nunca presencial)
dos fatos não é a única maneira pela qual podemos aproximar os métodos dos
historiadores e os dos detetives. O personagem Jules Maigret, inspetor de
polícia, criação do escritor belga Georges Simenon (1903-1989), possuía um
método próximo de algumas reflexões fundamentais sobre o conhecimento
histórico. Maigret examinava indícios e testemunhos, por certo, mas sua
preocupação era reconstituir o ambiente em que se passou o crime, o dia-a-dia
da vítima e dos suspeitos. Maigret buscava, com isso, colocar-se no lugar dos
indivíduos envolvidos na investigação; desenvolver empatia, compreensão de como as pessoas pensavam e agiam, até
reconstituir o que se passou. Desse modo, aproximava-se do método hermenêutico,
desenvolvido em particular no século XIX nas ciências humanas, e da defesa de
que a característica fundamental do trabalho do historiador era a compreensão, a capacidade de colocar-se
no lugar de quem estuda, por oposição às ciências naturais, domínio da explicação, das relações de causa e
efeito.
Os procedimentos da história e da justiça
foram comparados em diversos momentos, envolvendo também a comparação entre o
historiador e o juiz (inclusive porque, durante muito tempo, ao historiador
também cabia julgar os eventos e personagens passados). O desenvolvimento da
literatura policial levou a novas aproximações, entre o passo a passo das
investigações de historiadores e detetives. A sugestão que a analogia nos deixa
é a de procurarmos ler os textos historiográficos como investigações, como um
jogo entre as perguntas do historiador e as respostas que este obtém das
fontes, e acompanhar criticamente sua sequência de questionamentos até que o
autor nos apresente o fenômeno histórico estudado, por nós conhecido apenas
indiretamente e por meio de inferências, mas nem por isso impassível de um
conhecimento válido.
Referências
bibliográficas
COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Lisboa: Editorial Presença, 1972 [primeira
edição, 1946].
GINZBURG, Carlo. Mitos,
Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos