Filmes de ficção científica podem oferecer
ótimas oportunidades de reflexão sobre história e teoria da história. O gênero
de ficção científica pode produzir narrativas ancoradas sobre diferentes
possibilidades de pensar a evolução das sociedades humanas, bem como, pelo
contato imaginado com outros “seres” que habitam o universo, produzir reflexões
interculturais que desnaturalizam nossas formas de pensar, nossos valores e
nossos modos de vida.
O filme A Chegada (EUA, 2016, dirigido por Denis Villeneuve), proporciona
uma reflexão desse tipo, a respeito de um fundamento básico de nossas
percepções: nossa forma de apreender o tempo. Baseado no conto “História da Sua
Vida” (1999), de Ted Chiang, o filme retrata a chegada de seres extraterrestres
à Terra, e a tentativa dos humanos de compreenderem as intenções desses
visitantes, buscando formas de comunicação com eles. Para tal, é recrutada uma
linguista, a Dra. Louise Banks (protagonista da trama), que procura desvendar a
linguagem daqueles seres. A cientista chega a uma descoberta: os seres
extraterrestres possuíam uma diferença fundamental em relação aos humanos, que
se refletia na expressão de sua linguagem. A diferença estava na forma de
apreender o tempo: os extraterrestres percebiam passado, presente e futuro de
uma só vez, e não da forma sequencial pela qual os humanos percebem. Desse
modo, em sua linguagem, não havia uma sucessão de termos, ou unidades
linguísticas, mas um aglomerado, que poderia ser interpretado a partir de
qualquer ordem, ou ponto de sua imagem (ao contrário das frases humanas, que
precisam ser colocadas em ordem para serem compreendidas). Ao compreender a
linguagem daqueles seres, a cientista adquiriu a capacidade de pensar como
eles. Assim, em sua mente, passado, presente e futuro deixaram de ser
instâncias separadas, e ela pôde ver toda a experiência de sua vida de uma vez,
a cada instante.
Cena do filme A Chegada (2016)
O filme trabalha com a ideia de que nossa
concepção de tempo é linear, característica de nosso pensamento que seria
típica da modernidade. Essa concepção linear viria substituir, ao menos no
Ocidente, uma concepção cíclica de tempo, que se baseava na limitação de
situações possíveis à natureza humana, e na consequente repetição de fatos e
estados históricos. A partir do século XVIII, e em especial de uma específica
noção de progresso, a imagem do tempo como “flecha”, em direção ao futuro, veio
a substituir a imagem de “ciclo” do tempo. Tal mudança não é, porém, consenso
entre os historiadores das ideias. O historiador Paolo Rossi, por exemplo,
prefere pensar na coexistência entre a “flecha” e o “ciclo”:
De
fato, não creio que a modernidade possa ser colocada sob a categoria do tempo
linear. Creio na presença simultânea e na coexistência difícil, em nossa
tradição, de uma concepção linear e de uma concepção cíclica do tempo; e
acredito, ainda – por conseguinte -, que, em nossa tradição, operam diferentes
imagens do progresso ou do crescimento do saber (ROSSI, 2010 p. 105).
Com efeito, já na modernidade, pensadores
retomaram a ideia de um tempo cíclico (o caso mais notável seria Nietzsche, e a
ideia de um “eterno retorno do mesmo”). A própria ideia de progresso, como algo
necessariamente positivo, é questionada por Rossi, que vê uma tensão entre
esperança e angústia nas visões sobre o futuro desde o Renascimento. Esse
debate deve ainda, por certo, examinar concepções de tempo (antigas ou
modernas) fora das tradições europeias ou ocidentais, como no caso de tradições
indianas de concepção do tempo cíclico (cf. BOGER, 2013); o tempo não como uma
flecha, uma linha reta, mas como uma curva, sem começo nem fim.
Na visão de um dos principais escritores
de ficção científica do século XX, o norte-americano Philip K. Dick
(1928-1982), ficção científica seria um gênero caracterizado por tratar de ideias, por nos fazer pensar sobre
diferentes possibilidades de ser e compreender a realidade. O filme A Chegada e o conto que o inspirou
fornecem um ótimo ensejo para pensarmos nossas concepções de tempo, e o efeito
que estas têm sobre nossas experiências de vida.
Referências
bibliográficas:
BOGER, Simone Regina. O ciclo do tempo: a Índia e a perspectiva de renovação da história.
São Paulo: Editora Brahma Kumaris, 2013.
CHIANG, Ted. História da sua vida e outros contos. Rio de Janeiro: Editora
Intrínseca, 2016.
ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis
ensaios da história das ideias. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos