Publicamos aqui a entrevista com o Prof. Dr. Gustavo Ruiz Chiesa, graduado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com Mestrado e Doutorado em
Sociologia e Antropologia pela mesma instituição, que publicou recentemente Além do que se vê: magnetismos, ectoplasmas
e paracirurgias (Porto Alegre: Multifoco, 2016), a partir de sua tese de
Doutorado. No livro, o prof. Chiesa estuda concepções alternativas de ciência
(combatidas pela concepção hegemônica de ciência que se afirma a partir da
Europa Ocidental desde fins do século XVIII), nas quais a relação entre o mundo
material e o mundo espiritual assume papel central nas práticas terapêuticas,
como o magnetismo animal, o trabalho com ectoplasmas e as paracirurgias.
Atualmente, o prof. Gustavo Chiesa realiza pós-doutorado na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (com bolsa CAPES), onde integra o Núcleo de
Estudos da Religião (NER). No último dia 21 de setembro, o professor Chiesa
participou, ao lado de Jiwan Mukta, do seminário “Qual a relação entre saúde e
espiritualidade?”, realizado pelo Observatório das Religiões na Latino América
(ORLA), grupo de pesquisa formado na UNILA e coordenado pelos professores
Anaxsuell Fernando da Silva (Antropologia) e Mirian Santos Ribeiro de Oliveira
(História). A professora Mirian Santos foi responsável pela mediação do debate,
uma das muitas atividades que o ORLA tem desenvolvido na UNILA. Para conhecer
mais sobre o ORLA, recomendamos a página do grupo no Facebook: www.facebook.com/observatoriodasreligioes.
Pedro
Afonso Cristovão dos Santos: Prof. Gustavo Chiesa,
muito obrigado por aceitar o convite do blog para esta entrevista. Gostaria de
começar perguntando-lhe como surgiu seu tema de pesquisa em Além do que se vê: magnetismos, ectoplasmas
e paracirurgias, e, em particular, como lhe ocorreu a ideia de articular
esses três momentos históricos, essas três passagens de século (XVIII para XIX,
XIX para XX e XX para XXI) para compor a trajetória de seu objeto de estudo.
Gustavo
Ruiz Chiesa: Eu que agradeço o convite e o interesse
por essa pesquisa, Pedro. A ideia de investigar práticas ditas científicas
não-hegemônicas surgiu de uma convergência de interesses meus e de meu
orientador durante o doutorado, o antropólogo Octavio Bonet. Ao defender minha
dissertação de mestrado, que se passou em um terreiro de umbanda, envolvendo a
trajetória de vida de um líder religioso, fiquei interessado em me aproximar de
questões que de alguma maneira borrassem as fronteiras entre ciência e religião
ou, mais exatamente, entre medicina e espiritualidade. Procurei por Octavio com
essa questão em mente, sabendo de sua experiência na área da Antropologia da
Saúde e de seu interesse pela assim chamada “medicina romântica alemã” dos
séculos XVIII e XIX. Conversando com ele, começamos a pensar sobre alguns
possíveis aspectos que ligariam uma série de práticas alternativas aos modelos
hegemônicos, tais como a própria medicina romântica, a homeopatia, o magnetismo
animal, ou, em outra direção, as chamadas “cirurgias espirituais”, e, da mesma
forma, em que momento histórico um determinado modelo de ciência (e medicina)
se tornou dominante em nossa tradição ocidental. Dentre os fatores que ligam
tais práticas estaria a ideia de uma “totalidade” (conectando, por exemplo,
corpo e mente, espírito e matéria, ser e ambiente, sujeito e objeto) e também a
existência de “substâncias”, “fluidos”, “forças”, animando e atravessando todos
os seres vivos, e detentores de propriedades terapêuticas. “Fluido magnético”,
“fluido vital”, “fluido cósmico”, “ectoplasma” são alguns dos termos,
inventados na Europa ocidental, responsáveis por nomear tal substância
“material/espiritual”. Assim, com essas duas ideias em vista – ou seja, a
proposta de uma “medicina da totalidade” (ou da indissociabilidade entre certas
dimensões constitutivas da realidade) e “dos fluidos” – comecei literalmente a “seguir”
essas substâncias, mais especificamente o “ectoplasma” (em função da minha familiaridade
com as pesquisas em torno do espiritismo), no tempo e no espaço, procurando por
práticas que de alguma maneira propusessem outros modos de “fazer ciência” ou,
precisamente, de “fazer ciência das coisas religiosas” (por essa razão, por
exemplo, acabei deixando de lado uma série de práticas que faziam uso ou diziam
fazer uso dessas “substâncias”, mas sem qualquer preocupação em elaborar algum
tipo de abordagem ou de explicação científica para os fenômenos que produziam).
Deslocando no tempo, acabei parando nas práticas e formulações elaboradas pelo
médico alemão Franz Anton Mesmer, criador do magnetismo animal (assunto
discutido durante o primeiro capítulo do livro), e também, nas pesquisas
desenvolvidas pelo médico e fisiologista francês Charles Richet, criador do
termo “ectoplasma” e propositor da ciência “Metapsíquica” (tema do segundo
capítulo). Continuando essa caminhada, me deparei com as práticas realizadas
por uma instituição denominada Ectolab, vinculada a uma outra proposta de
ciência, denominada Conscienciologia, que atualmente conta com um enorme espaço
de pesquisas situado em Foz do Iguaçu. Portanto, para responder objetivamente
sua pergunta, a ideia de articular diferentes momentos históricos surgiu da
própria maneira como acabei conduzindo a pesquisa e, certamente, das
inspirações teórico-metodológicas de autores como Tim Ingold e Bruno Latour, os
quais, cada um à sua maneira, sugerem que possamos abrir mão de nossas
preocupações com o “campo de pesquisa” e suas delimitações (ou, pior ainda, a
preocupação com a “coleta de dados”) para que possamos simplesmente “seguir os
atores”, sejam eles humanos, animais, espíritos, coisas, objetos, forças,
substâncias e etc.
Pedro
Afonso Cristovão dos Santos: Prof. Gustavo Chiesa,
um aspecto de destaque no livro é o trânsito entre a antropologia e a história,
tema de muito interesse para os leitores de nosso blog. Embora seu trabalho
tenha referenciais teóricos e metodológicos importantes na antropologia, como
Bruno Latour e Tim Ingold, também podemos compreendê-lo como uma história da
ciência (ou de uma alternativa de ciência). Como a história e a antropologia
foram sendo articuladas ao longo de sua pesquisa? Como seu trabalho utilizou as
possibilidades de interdisciplinaridade entre essas áreas?
Gustavo
Ruiz Chiesa: Todos os autores que me inspiraram em
minha formação na antropologia (especialmente Tim Ingold, Bruno Latour e
Gregory Bateson) são completamente interdisciplinares ou, como prefere Ingold,
“indisciplinares” em suas propostas de ciência e/ou filosofia (lembrando que,
para Ingold, a antropologia nada mais é do que uma “filosofia com gente
dentro”). Assim, esse trânsito entre antropologia e história ocorreu de uma
maneira absolutamente natural e despretensiosa. Minha ideia não foi fazer uma
“antropologia histórica” ou uma “história da ciência” em um sentido estrito,
mas apenas seguir aquilo (ou aqueles) que encontrava ao longo de minha
pesquisa, não importando muito se esses seres (e “forças”) estivessem circulando
pelo século XVIII, XIX, XX ou XXI. Nesse sentido, a ideia de borrar fronteiras disciplinares
aparece, no mínimo, em dois níveis epistemológicos. O primeiro deles diz
respeito a essa “conversa” entre antropologia, história e filosofia (afinal,
Bruno Latour e Isabelle Stengers, outra importante referência para mim, são
filósofos de formação), e também no interior da própria antropologia,
caminhando livremente (e, talvez, inadvertidamente, diriam alguns) pelas
subáreas da antropologia da religião, da ciência e da saúde, algo que, a meu
ver, enriqueceu muito minha formação, mas que gerou um enorme trabalho, não só
pela quantidade de material bibliográfico produzido em cada um desses “campos”,
mas também pela dificuldade em se movimentar no meio acadêmico e estabelecer
vínculos institucionais (especialmente por conta dessa perversa lógica de
fragmentação e especialização do conhecimento humano). A transdisciplinaridade
ou os “transaberes”, para utilizar a expressão de Nelson Job, um autor
(filósofo/psicólogo/historiador/antropólogo) com o qual venho mantendo um
produtivo “diálogo indisciplinar”, é sem dúvida um grande desafio nesse atual
contexto produtivista e “separativista” que vivemos em nosso mundo acadêmico
(e, também, não acadêmico). É dessa forma que percebo um certo caráter político
e propositivo em minha pesquisa ao estabelecer não só esse diálogo com autores por
excelência transdisciplinares (fazendo, inclusive, um “resgate” de pensadores
muitas vezes desprezados pela própria antropologia hegemônica, como é o caso do
biólogo/psicólogo/antropólogo Gregory Bateson), mas também ao procurar
apresentar e colocar em pé de igualdade (ou em “simetria”, diria um bom
latouriano) certas propostas de ciências invisibilizadas, silenciadas,
marginalizadas ou “domesticadas” pelas práticas científicas dominantes.
Pedro
Afonso Cristovão dos Santos: Prof. Gustavo Chiesa,
as formas de ciência estudadas em Além do
que se vê problematizam a relação entre sujeito e objeto na ciência,
propondo uma imbricação muito maior entre essas esferas (principalmente na abordagem
da Conscienciologia). O contato com essas ideias alterou sua própria
compreensão da relação sujeito-objeto na antropologia? No decorrer de sua
pesquisa, você se viu mais envolvido, em algum momento, com seu objeto de
estudo, e isso lhe demandou algum cuidado especial?
Gustavo
Ruiz Chiesa: Certos autores da antropologia já vêm
há algum tempo questionando ou tencionando os limites e definições dessa
relação sujeito-objeto (além dos nomes já citados, incluiria aqui a fundamental
contribuição de Roy Wagner, outra importante inspiração em minha formação e
reflexão antropológica). Nesse sentido, havia uma grande afinidade epistemológica
e, em alguma medida, metodológica entre a antropologia (tal como eu a imagino e
pratico, evidentemente), o magnetismo animal, a metapsíquica e a
conscienciologia (afinidade que explorei no último capítulo do livro), justamente
em função dessa não separação ou dessa mútua-afetação entre sujeito e objeto de
investigação. A ideia de “ser afetado pelas mesmas forças que afetam meus
nativos”, tal como sugerida por outra grande inspiração, a antropóloga francesa
Jeanne Favret-Saada, orientou minha conduta prática fazendo com que, de fato,
em alguns momentos eu sentisse “coisas” que nunca havia sentido anteriormente, percebesse,
imaginasse ou sonhasse com seres, forças e ambientes que até então nunca havia
percebido, imaginado ou sonhado, algo que sem dúvida alguma me ajudou a
entender um pouco melhor as práticas e, principalmente, a maneira de perceber,
sentir, pensar e “ser afetado” da conscienciologia ou, mais exatamente, dos
conscienciólogos com os quais mantive contato durante os meses em que convivi
com eles. A proposta era justamente essa: conviver,
ou viver com..., aprender com..., pensar com..., fazer antropologia com as pessoas (onde sujeito e objeto do
saber se misturam, tornam-se um só), e não sobre
as pessoas que você deseja conhecer (reinstaurando essa distinção entre um
sujeito que investiga e um objeto investigado).
Pedro
Afonso Cristovão dos Santos: Prof. Gustavo Chiesa,
por fim gostaríamos de perguntar-lhe sobre sua experiência de pesquisa em Foz
do Iguaçu. Como foi a experiência de um trabalho de campo na Conscienciologia,
que expectativas você trouxe de início e como o resultado final se aproximou ou
se distanciou dessas expectativas?
Gustavo
Ruiz Chiesa: Inspirado pelos antropólogos com os
quais me identificava (e ainda me identifico), em nenhum momento eu pensei em
fazer do Centro de Altos Estudos da Conscienciologia (CEAEC) o meu “objeto de
pesquisa” ou “o lugar onde farei o meu trabalho de campo”. Eu “desembarquei” no
CEAEC, me aproximei dos voluntários da Ectolab (cujo o foco é a pesquisa com o ectoplasma
e as chamadas “paracirurgias”) e procurei, simplesmente, aprender o que eles
aprendiam, viver o que eles viviam, sentir o que eles sentiam... Assim, posso
dizer que a experiência vivida naquele lugar, com as pessoas que ali conheci, foi
bastante enriquecedora em termos investigativos e pessoais (duas dimensões que,
a meu ver, também não se separam), algo que resultou não só na produção dessa
tese (e sua posterior publicação), mas também na aquisição de novas formas de
perceber o ambiente (e todos os seus habitantes) e viver a vida. Nisso
consistiria a tarefa primordial da antropologia para mim e para a maior parte
desses autores que citei ao longo dessa conversa, ou seja, ampliar e
transformar nossas maneiras de ser, perceber, imaginar e habitar o mundo que
vivemos.
Referência:
CHIESA, Gustavo Ruiz.
Além do que se vê: magnetismos,
ectoplasmas e paracirurgias.
Porto Alegre: Multifoco, 2016.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos