Começamos a apresentar hoje no blog uma entrevista que nos
levará a pensar um tema de grande interesse atualmente, especialmente
importante para nós que produzimos e difundimos história pela internet: as
mudanças que a era digital trouxe para o trabalho dos historiadores. Nosso
entrevistado é Pedro Telles da Silveira, atualmente doutorando na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que possui mestrado em História pela
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Sua dissertação, sob orientação do
professor Fernando Nicolazzi, intitulada O
cego e o coxo: historiografia, erudição e retórica no Brasil do século XVIII,
foi publicada em livro em 2016, pela FAP-UNIFESP de São Paulo. Após dedicar-se
a estudos voltados à erudição histórica, Pedro Telles da Silveira têm se
debruçado sobre questões relativas à história
digital. O impacto de novas formas de arquivo digital e suas implicações
para noções fundamentais para os historiadores, como documento, evidência e
acontecimento, têm sido alguns dos temas de seu trabalho. Nessa entrevista,
conversaremos com o pesquisador sobre esses temas, de grande relevância para
historiadores e estudantes de história, confrontados com essa realidade cuja
presença já nos parece tão evidente que os riscos de uma naturalização dos
procedimentos de pesquisa na era digital se afiguram cada vez maiores.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos: Pedro Telles da Silveira, primeiramente muito obrigado por aceitar o
convite do blog. Você tem estudado as mudanças provocadas na prática dos historiadores
pelo contato com arquivos digitais. Em relação à noção de documento, quais
seriam, em resumo, essas alterações?
Pedro Telles da
Silveira: O documento está no cerne de meu trabalho e também da recepção
dos debates da história digital. Percebo que existe uma grande inquietação com
o uso de fontes digitais, especialmente aquelas que não possuem correspondente
físico, chamadas born digital, ou
seja, geradas digitalmente. Essas fontes inquietam por sua instabilidade (os
links podem ser deletados rapidamente, elas são editadas com frequência etc.) e
por sua abundância, de modo que se torna difícil fazer o recorte do que é
interessante ou não enquanto fontes históricas. Por outro lado, também percebo
uma grande aceitação das iniciativas de digitalização de fontes históricas manuscritas
e impressas, agora passíveis de serem acessadas com facilidade até então
inaudita. Pode-se dizer, portanto, que existe uma abundância de fontes positiva
e outra, negativa. A primeira, relacionada aos acervos digitalizados e à
facilidade que isso provê à pesquisa histórica; a última, pensada com relação
aos novos tipos de fontes digitais com os quais os historiadores, no geral,
ainda não aprenderam a trabalhar. Percebe-se, desse modo, que as fontes
digitais só se tornam um problema reconhecido quando desafiam a imagem que os
historiadores e historiadoras fazem de seu ofício e os métodos que aprenderam a
utilizar em suas trajetórias de pesquisa. Sobre isso, porém, gostaria de falar
em outro momento.
Retornando
ao tema anterior, de forma surpreendente (ou nem tanto, talvez), me parece que,
nessa abundância positiva de fontes ocasionada pela digitalização de acervos,
reforçou-se algumas injunções ou imperativos ligados à exaustividade do
trabalho histórico que constituíram seu ethos
tradicional. Se há alguns anos se destacava que a nova paisagem intelectual e
tecnológica tornaria impossível o sonho do historiador ou da historiadora de lerem
“tudo” que estava disponível sobre certo assunto, parece-me que hoje existe uma
cobrança maior justamente devido à essa facilidade de acesso. “Como assim você
não leu estas fontes, se hoje em dia é tão fácil lê-las, comparado com a minha
época...?” ou “porque você não incorporou este artigo em sua revisão
bibliográfica, se temos acesso a periódicos do mundo todo?”, são frases que
ouvimos ou poderemos ouvir em algum momento. Ou podemos pensar em algo mais
prosaico ainda, o aspecto de “vício” que adquire muitas vezes a busca de
bibliografia online, principalmente nos sites que garantem o acesso ilegal à
produção acadêmica internacional. Com esses exemplos, percebe-se que os
historiadores e historiadoras têm dificuldade em selecionar os materiais em
todas as etapas que constituem suas pesquisas, para não falar de uma
credibilidade reforçada que é dada às fontes ou à diligência dos historiadores
e historiadoras acima de todos os outros aspectos de seu trabalho, como seu
juízo crítico ou sua argúcia interpretativa e que caminham na direção contrária
de nossa premente necessidade de sínteses.
Parece-me,
portanto, que existem duas reações básicas que só em aparência são diferentes. Uma
é a consolidação dos requisitos tradicionais do métier, outra, o temor de que esses preceitos básicos não sejam
atendidos. Em ambos os casos, todavia, não se volta as questões justamente para
o que compõe esse métier ou ofício do
historiador, assim como não se discute substancialmente o que são os documentos
digitais. É aqui que procuro inserir meu trabalho.
Em minha
opinião, os documentos digitais trazem questionamentos que não podem ser
inseridos de forma fácil ou simples numa narrativa que percebe o progressivo
alargamento do campo das fontes utilizadas pelos historiadores e historiadoras.
Não é como se tivéssemos passado do documento escrito para incorporar as
imagens pictóricas, depois o cinema e o vídeo, as fontes orais e, por fim, as
fontes digitais. Embora se possa dizer que todo tipo de documento possui características
que os outros não têm, em meu trabalho procuro argumentar que as fontes
digitais acabam por questionar justamente os pressupostos sobre os quais se
assentam nossa definição tradicional de fonte ou documento histórico.
Para além
de uma série de propriedades como aquelas destacadas por Lev Manovich a
respeito das novas mídias, tais como a
representação numérica, a modularidade, a variabilidade e a transcodificação
(MANOVICH, 2001, pp. 27-30), tenho trabalhado com as fontes digitais segundo o
conceito de imagem técnica, de Vilém
Flusser (2008; 2011). Imagem técnica
é, a princípio, toda imagem gerada por equipamentos e procedimentos técnicos ou
tecnológicos, e não pela mão humana. Existe, assim, um deslocamento do papel do
humano na criação dessas imagens. Isso as coloca em outro plano com relação aos
nossos sentidos. Pode-se pensar, por exemplo, numa pintura e numa imagem
digitalizada. Enquanto a pintura é o resultado de um ato que busca criar uma representação do mundo ou de algo nele
existente, uma imagem digitalizada é a apresentação
de um resultado condicionado pelas capacidades técnicas do hardware e do
software de edição de imagens e que, ao invés de proceder pela sobreposição de
camadas de tinta, reúne dados numéricos e pixels em uma forma que, aos nossos
olhos, se parece com uma imagem, mas não o é necessariamente. Como afirma outro
autor, o historiador da mídia alemão Wolfgang Ernst, multimídia é um termo
enganador, pois o computador trabalha apenas com uma “mídia”, o numérico
(ERNST, 2012, p. 71).
Tenho
procurado pensar as fontes digitais, independente de sua origem, sob o nome de fontes técnicas. Elas são criadas e
lidas por máquinas que fazem a intermediação entre o dado bruto e sua forma
perceptível aos olhos humanos. E, ao se considerar a presença de procedimentos
técnicos, maquínicos, creio que se questiona o coração do que se define por
fonte histórica. Normalmente as fontes são concebidas como vestígios ou indícios, o
que as coloca em uma relação de subtração com relação ao passado. “De tudo que
foi o passado, estes vestígios são o
que sobrou para nós...”. No caso das fontes digitais, a relação é inversa. Sua
criação não é motivada por um fator externo, como a pegada é causada pela
passagem de um indivíduo ou animal pela terra. Nesse sentido, elas são sempre
uma criação e, enquanto tal, se colocam numa relação de adição com relação ao
mundo, apresentando sempre mais do que havia nele antes de existirem.
Inverte-se a relação e é possível, então, que tenhamos mais “todos” do que
partes. Isso explicaria a desorientação causada pelo excesso de registros,
assim como possibilita pensar em “cópias” que vêm antes de seus “originais”,
até ao ponto de invalidar a própria distinção entre original e cópia...
Creio que
esse é o campo de problemas que se abre com a consideração dos documentos
digitais. Ainda não possuímos o vocabulário conceitual tampouco os
procedimentos críticos para abordá-las como se fossem mais uma das fontes históricas. Talvez nunca os tenhamos. Parece-me
que podemos abordá-las, no entanto, removendo-as do âmbito dos indícios, segundo a terminologia de Paul
Ricoeur, para levá-las ao pólo do testemunho.
Segundo Ricoeur, o indício é decifrado, enquanto o testemunho é interpretado.
Se isso se aplicar às novas fontes digitais, então os indícios são cada vez
mais passíveis de interpretação, aliás como encontramos cotidianamente em nossa
experiência política. O que isso significa é que a realidade como termo
mediador a garantir a fidelidade de nossos relatos históricos se tornará cada
vez mais um campo em disputa, em interpretação.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos: Em sua trajetória acadêmica, você estudou, entre outros temas, as
concepções de erudição histórica nas academias do século XVIII (SILVEIRA,
2016), bem como o antiquariato, participando inclusive da tradução de um
importante texto de Arnaldo Momigliano sobre o tema (MOMIGLIANO, 2014) – ou
seja, trabalhos que remetem à forma como os historiadores praticavam e pensavam
seu ofício. É possível dimensionar, numa perspectiva de longo prazo, o quanto
as novas tecnologias de armazenamento e acesso à informação alteraram (ou
alterarão) a forma como os historiadores veem o próprio ofício? Os historiadores
serão “programadores”, como sugeriu outrora Ladurie?
Pedro Telles da
Silveira: Creio que toda história daqui para frente será “digital”
simplesmente porque a situação em que vivemos o é. Isso também revela a
instabilidade ou a imprecisão de termos como história ou historiografia
digital. Os termos são usados ora para se referir ao uso de ferramentas
eletrônicas digitais no momento da pesquisa, ora para indicar o uso dessas
ferramentas para a divulgação dos trabalhos, ora para qualificar a análise de
documentos nascidos digitalmente. Destaco este aspecto porque se digo que toda
história futura será digital não quero dizer, por outro lado, que a “história
digital” será um campo que dominará todos os demais.
Quanto à
frase de Emmanuel LeRoy Ladurie, ela parece ter encontrado nova força com o
chamado big data, ou seja, os vastos
repertórios de dados numéricos agora disponíveis após décadas de digitalização
e criação de fontes digitais. Projetos como o Google NGram, que mapeiam a
utilização de vocábulos ao longo de décadas ou séculos, são exemplo de
iniciativas que operam com essa sorte de dados. Esse é um campo bastante
explorado pelas digital humanities,
as quais parecem se caracterizar sobretudo pelo uso de ferramentas quantitativas
para a análise de extensos corpora de
dados, e se trata de um campo bastante profícuo, com vários cursos e eventos na
Europa e nos Estados Unidos dedicando-se a isso.[1]
Por outro
lado, a história digital atravessa os discursos da história pública. Os
instrumentos digitais são pensados como meios de difusão do conhecimento
histórico, para não mencionar a produção de conhecimento por outros sujeitos
que não os historiadores e historiadoras. Temos uma série de exemplos bastante
interessantes nesse sentido.[2]
Parece-me que este é um campo aberto – e fico feliz que o seja –, mas noto em
todos os casos modificações no papel de historiador, seja porque ele ou ela passam
a responder a demandas públicas mais explícitas, seja porque suas atuações
consistiriam em fornecer plataformas através das quais as pessoas consigam se
engajar com o passado, como nos projetos colaborativos de arquivos digitais.
Neste último caso, os historiadores e historiadoras deixam de ser escritores e
intérpretes para se transformarem em curadores e expositores – guinada, aliás,
que não é em tudo inédita, pois já no século XVIII se considerava que o trato
com os documentos dotava os historiadores de características mais próprias a um
compilador do que autor de uma narrativa nova, caso queiramos encontrar
similaridades com outros momentos históricos.
No que diz
respeito ao trabalho, porém, percebo uma série de transformações igualmente
significativas mas quase imperceptíveis. Uma das principais é o ambiente de
trabalho do historiador. Pode-se trabalhar o tempo todo em casa, ou em
trânsito; pode-se estar em qualquer lugar. Com isso, o arquivo assume um
significado metafórico e assinala o acervo documental que o próprio historiador
ou historiadora constituiu mais do que um lugar específico onde ele ou ela se
encontra para ler e analisar os documentos. É como se se passasse do “trabalho
de campo”, o qual é sempre específico, para o “laboratório”, que é um espaço
abstrato não condicionado pelas especificidades à sua volta (ESKILDSEN, 2008, p.
430). Outra alteração é na velocidade do trabalho, o qual é acelerado. Em seu
livro sobre os arquivos, Arlette Farge ressalta como parece estranho àqueles
que não estão acostumados que o trabalho do historiador consista em passar
horas e horas copiando, sem alteração nenhuma, centenas de passagens (FARGE,
1989, pp. 24-25). É, porém, nesse tempo lento e artesanal que surgem as ideias.
Com a aceleração resultante das práticas de “copiar” e “colar”, destaques em
textos .pdf, entre outras práticas, o trabalho é acelerado. E penso se isso não
significaria que a tradição de uma método artesanal – um “ofício” propriamente
dito – não está sendo quebrada através destas pequenas práticas cotidianas que
colocam o trabalho do historiador ou da historiadora em sintonia com a produção
do conhecimento em escala industrial imposta pela dinâmica das disciplinas e
pelas agências de fomento...
Eu percebo, de qualquer forma, estas três
alterações ocorrendo concomitantemente. Não sei qual delas se tornará
hegemônica, se é que alguma delas tomará a dianteira ou não. O que me parece
certo é que o historiador ou a historiadora serão apenas mais um dos elementos
no processo que levam à produção do conhecimento histórico, e não mais as
personagens soberanas a reinar solitárias sobre os arquivos e das quais provêm,
como que por inspiração, os insights que permitem penetrar a realidade
histórica. Esse deslocamento da centralidade dos historiadores e historiadoras
é resultado tanto da intercessão da máquina quanto da necessidade de justificar
publicamente suas pesquisas, tanto pelo fato de se tornarem mais um empregado
na linha de montagem da ciência quanto pela constituição de redes e grupos de
pesquisa. Pode-se notar que as modificações, logo, não são necessariamente
negativas, apenas apontam para outros modos de fazer e imaginar o ofício – se é
que ainda será um ofício, e não uma profissão – de historiador.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos: Que registros a era digital deixará para os historiadores do futuro?
Podemos pensar que as práticas historiográficas atravessarão transformações
ainda maiores nas próximas décadas?
Pedro Telles da
Silveira: Creio que exercícios de futurologia aplicados à tecnologia correm
sempre o risco de fracassarem. Me parece que um dos desafios é fazer uma
reflexão que não se torne inválida pelo próprio avanço tecnológico. Nesse
sentido, é preciso que o tempo da técnica e o tempo da reflexão não coincidam;
simultaneamente, porém, é necessário pensar cada vez mais rápido para dar conta
dos novos fenômenos históricos – sociais, políticos, culturais – que têm nas
tecnologias digitais uma de suas condições de existência. E o historiador ou a
historiadora são chamados a intervir em debates públicos cada vez mais
significativos, como estamos vendo hoje com as discussões sobre o Escola sem
Partido ou sobre a interpretação dos eventos políticos recentes.
Quanto a
isso, considero a questão principal aquela que diz respeito a quais fontes e
como estarão disponíveis. Já se apontou que é uma ilusão crer que “tudo” ficará
registrado na internet, de modo que o registro histórico “completo” sobre o
qual o historiador norte-americano Roy Rosenzweig se indagava é, em última
instância, uma utopia (ROSENZWEIG, 2011, p. 5).[3]
Todavia, se a internet é um grande arquivo, ele é um arquivo sem critérios
bem-estabelecidos de seleção e no qual a abundância não levará necessariamente
a melhores interpretações, minando os esforços de exaustividade dos
historiadores futuros.
Novamente, pode-se
pensar aqui também numa via positiva para este problema. Se a instituição
arquivística está ligada ao estabelecimento do Estado nação em meados do século
XIX e se, portanto, a historiografia que se utilizou dos arquivos é também uma
historiografia caracterizada pelo ponto de vista estatal, as fontes com as
quais nos defrontamos hoje e nos confrontaremos no futuro escapam a esta
perspectiva e podem introduzir uma pluralidade inesperada de vozes. Trata-se de
uma polifonia que deve ser valorizada.
Para
ficarmos apenas com um exemplo, historiadores e historiadoras futuros de nossa
atual crise política poderão utilizar o Twitter como ferramenta que lhes
permitirá medir a popularidade de expressões e tópicos de acordo com o
desenrolar dos acontecimentos – o que seria uma análise que faz uso do big data – e desvelar, nos comentários a
serem analisados, o modo como as pessoas viveram, em seu cotidiano, os eventos
que agora testemunhamos. Escapa-se, portanto, à esfera “oficial” de criação das
fontes e teremos de acrescentar à análise de decretos políticos, projetos de
lei, editoriais de jornais, programas político-partidários, sua recepção por variadas
camadas da sociedade.
Não escolhi
o exemplo do Twitter por acaso. Em 2008, a Biblioteca do Congresso
norte-americano fechou acordo com o Twitter para preservar toda a documentação
gerada por essa plataforma. O acordo, infelizmente, não vingou, tanto por falta
de vontade política quanto por dificuldades técnicas. Ele mostra, porém, o
compromisso de uma empresa privada com a publicidade futura do conteúdo que
produz.
E, com
isso, creio que chegamos ao segundo aspecto que merece ser considerado. Os
historiadores e historiadoras do futuro terão de considerar fontes como
postagens de Facebook, mensagens trocadas em grupos – frequentemente privados –
ou em ferramentas de comunicação instantânea, como o próprio Facebook ou
WhatsApp, além, é claro, de e-mails – e tudo isso sem considerar os próprios
formatos de mídia eletrônica. Em todos esses casos, a informação a ser acessada
é propriedade de uma empresa privada – e estamos todos constantemente
produzindo conteúdo para empresas privadas. Como será feito o acesso a essa
documentação no futuro ainda é uma questão em aberto.
Eu gosto de
pensar em outro exemplo, aquele das manifestações de 2013. Grande parcela das
fontes que ajudam a explicar os eventos daquele ano foram geradas e
distribuídas pelas redes sociais. Como ter acesso a elas no futuro? E, no que
toca às companhias privadas, talvez não seja inoportuno que justamente agora
tenha ganhado espaço o campo da história corporativa, aquela ligada à memória
empresarial.[4]
Estamos,
desse modo, em um momento de redefinição das fronteiras do público e do privado
à qual os historiadores e historiadoras têm de estar atentos. Esse processo
questiona os sentidos da publicidade do trabalho de historiador, seja no
sentido de que suas informações são de origem pública, seja porque ele ou ela
têm de prestar contas à sociedade e a seu meio intelectual, seja porque o ponto
de vista que frequentemente adotaram é o do Estado, que passou, em determinado
momento, a ser identificado com a esfera pública. Na medida em que o público e
o privado estão sendo redesenhados, coloca-se a questão também da relação do
conhecimento histórico com a paisagem estatal e corporativa nova na qual se
insere. E esse me parece ser um problema a ser considerado no futuro da
historiografia.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos: Em termos de ensino e pesquisa, que considerações metodológicas você
julga necessário incorporar aos cursos de história, para situar melhor os
estudantes nessa nova realidade de arquivos digitais?
Pedro Telles da
Silveira: O chamado “letramento digital” me parece ser proveitoso para os
estudantes de história atuais e futuros. Trata-se de um conhecimento ainda
restrito à curiosidade intelectual e profissional dos estudantes, e não de
saberes que foram incorporados institucionalmente às grades curriculares dos
cursos de história. Creio que algumas noções básicas de programação deveriam
fazer parte já do currículo escolar, afinal trata-se de uma linguagem com a
qual nos defrontamos cotidianamente. Isso não deveria ser feito às expensas das
humanidades, retiradas dos currículos para dar espaço às novas tecnologias e
disciplinas. Por fim, tem-se de considerar que as condições para isso ser feito
no Brasil de modo satisfatório ainda estão muito longe de serem alcançadas, uma
vez que existem outras questões a respeito da educação que são muito mais
urgentes.
No caso do
ensino universitário, contudo, penso que uma mudança significativa seria
ensinar os estudantes de história a atuarem como parte daquela cadeia de
produção do conhecimento que mencionei anteriormente. Atualmente se discute a
respeito da profissionalização e a inserção de historiadores e historiadoras em
espaços alternativos à academia, mas em que momento se ensinará os futuros
historiadores e historiadoras a preencher editais de financiamento, formulários
de avaliação, coordenar ou realizar a prestação de contas de projetos? Parecem
questões insignificantes, mas são problemas enfrentados por graduandos e
graduados em história quando atuam profissionalmente e que eles têm de aprender
na prática.
Por isso,
não creio que os historiadores ou historiadoras precisem necessariamente saber
programar ou criar uma identidade visual para suas iniciativas, mas uma
alteração significativa em sua formação já seria se eles ou elas soubessem onde
encontrar o programador ou o designer que os auxiliarão a realizar seus
projetos, que aí sim serão interdisciplinares.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos: Por fim, você gostaria de recomendar alguma leitura essencial a
respeito de História Digital?
Pedro Telles da
Silveira: Existe uma bibliografia interessante sendo produzida no Brasil a
respeito da história digital em suas interfaces com a história contemporânea e
com a história pública, da qual destaco os trabalhos de Anita Lucchesi (2014),
atualmente doutoranda em Luxemburgo, os quais são ao mesmo tempo pioneiros e
representam o estado da arte da reflexão no ambiente acadêmico brasileiro. Além
dessa bibliografia, existem os trabalhos do infelizmente já falecido Roy
Rosenzweig, nome de ponta do campo nos Estados Unidos, e os historiadores
ligados ao Center for History and New Media, que produzem uma interessante
reflexão sobre o tema.[5]
Existe, também, a produção italiana sobre o assunto, bastante extensa e que
pode ser acessada facilmente em periódicos como Diacronie e Memoria e Ricerca.[6]
Na França, por fim, um nome a ser destacado é o de Serge Noiret (2015), um dos
responsáveis por essa ligação entre a história digital e a história pública.
Considero,
todavia, que os caminhos para a reflexão passam por uma diálogo intenso e uma
apropriação efetiva dos debates de outras áreas. Existem muitas obras
relevantes sendo produzidas nos campos da teoria da comunicação e dos software
studies que abordam problemas com os quais os historiadores e historiadoras
poderão em muito ganhar. O trabalho de Lev Manovich (2001; 2013) é um exemplo,
além de outros que citei ao longo dessa entrevista. Os problemas levantados não
são somente metodológicos ou historiográficos, mas também filosóficos, teóricos
e políticos. Por esse motivo, há um campo muito grande a explorar – e ele será
melhor estudado caso se olhe para além das fronteiras da disciplina histórica.
Referências bibliográficas:
ERNST, Wolfgang. Digital
Memory and the Archive. Minneapolis: University of Minneapolis Press, 2012.
ESKILDSEN, Kasper Risbjerg. “Leopold von Ranke’s Archival
Turn: Location and Evidence in Modern Historiography”, in Modern Intellectual History, 5, 3 (2008), pp. 425-453.
FARGE, Arlette. Le
goût de l’archive. Paris: Editions du Seuil, 1989.
FLUSSER, Vilém. Filosofia
da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo:
Annablume, 2011.
_____. O universo das
imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
LUCCHESI, Anita. Digital History e Storiografia digitale: estudo comparado sobre a escrita da história
no tempo presente (2001-2011). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em
História Comparada/UFRJ, 2014, dissertação de mestrado.
MANOVICH, Lev. Software
Takes Command. New York/London: Bloomsbury, 2013.
_____. The Language
of New Media. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2011.
MOMIGLIANO, Arnaldo. “História antiga e o antiquário”. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p.
19-76, jul. 2014.
NOIRET, Serge. “História Pública Digital”, in Liinc em
Revista, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, pp. 28-51, maio 2015.
ROSENZWEIG, Roy. Clio Wired: The Future of the Past in the Digital Age. New York: Columbia
University Press, 2011.
SILVEIRA, Pedro Telles da. O cego e o coxo: historiografia, erudição e retórica no Brasil do
século XVIII. 1. ed. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2016.
[1] Refiro-me ao curso Doing Digital History, organizado
pelo Center for History and New Media da George Mason University, instituição
pioneira na área (http://history2016.doingdh.org) e aos eventos DH Benelux, que reúnem projetos de
humanidades digitais da Bélgica, Holanda e Luxemburgo (http://www.dhbenelux.org).
[2] Para citar apenas alguns, o projeto Obscuro Fichário
dos Artistas Mundanos, que reúne historiadores, artistas e curadores em torno à
documentação do DOPS sobre os artistas fichados pela ditadura em Pernambuco (http://obscurofichario.com.br) ou as iniciativas do Center for History and New
Media, das quais a principal ainda é o September 11th Digital Archive (http://911digitalarchive.org).
[3] Sobre o desaparecimento de informação na internet,
uma matéria informativa e que causou certa repercussão no meio está indicada no
seguinte link: http://www.theatlantic.com/technology/archive/2015/10/raiders-of-the-lost-web/409210/.
[4] Tema que ganhou destaque na seguinte matéria de O Estado de São Paulo, http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,profissoes-do-futuro-historiadores-corporativos,1730012.
[5]
http://chnm.gmu.edu/