Pular para o conteúdo principal

Centenário da Guerra do Contestado.

Em 2012 faz 100 anos que se iniciou a Guerra do Contestado, na divisa entre os atuais Estados do Paraná e Santa Catarina. No texto a seguir, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional em 2010, Tarcísio Motta de Carvalho faz um panorama sobre o movimento, seus líderes e principais causas: 
“Três personagens marcaram profundamente os que enfrentaram as tropas da República na Guerra do Contestado (conflito ocorrido entre 1912 e 1916 na região serrana de Santa Catarina, envolvendo, de um lado, caboclos expulsos de suas terras, e de outro, o Exército nacional). Os monges João Maria de Agostinho, João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho percorriam os sertões do sul do Brasil desde o século XIX.
Vindo da Itália para o Brasil em 1844, João Maria de Agostinho logo fixou residência em Sorocaba, no interior de São Paulo. Anos mais tarde, passou pelo Rio Grande do Sul, por Santa Catarina e pelo Paraná realizando curas valendo-se de fontes de água que o povo acabaria considerando santificadas. Adquiriu enorme fama entre a população que vivia próxima ao caminho das tropas, permanecendo na Região Sul até pelo menos 1870. Levava uma vida humilde e ascética, fazendo penitências, dirigindo orações e receitando ervas.
Entre 1895 e 1908, um segundo monge percorreria a mesma região. Como Agostinho, João Maria de Jesus logo ficou conhecido por causa de suas curas. Costumava conversar com as pessoas, indicava medicamentos, batizava as crianças e transmitia seus mandamentos, como, por exemplo: “Quem descasca a cintura das árvores para secá-las também vai encurtando sua vida. A árvore é quase bicho, e bicho é quase gente.” Ou ainda: “Quem não sabe ler o livro da natureza é analfabeto de Deus”.
Durante a Revolução Federalista (1893-1895), João Maria visitava acampamentos dos revoltosos e fazia críticas à República, anunciando calamidades e sofrimentos. Angelo Dourado, médico e coronel federalista, registrou um encontro com o monge, ocorrido em 1894:
“Quando proclamaram a república, ele anunciara por onde passara grandes calamidades e para preservarem-se dela plantassem cruzes nas portas. Que haviam de matar e roubar, porque todos estes teriam em si o diabo. Depois esses crimes trariam uma guerra cruel, sem quartel. Que animados pelo diabo teriam forças e dinheiro, mas que os outros venceriam mesmo sem armas”.
Ainda de acordo com São João Maria, esta nova guerra seria precedida de muitos “castigos de Deus”, como praga de gafanhotos, cobras ou chagas: “Vai vir um tempo onde haverá muito pasto, mas pouco rastro”.
Um terceiro peregrino chegou à região de Campos Novos, Santa Catarina, em 1912. Miguel Lucena de Boaventura, um curador de ervas, autodenominado José Maria de Santo Agostinho, atraiu centenas de pessoas, que permaneceram ao seu redor na localidade conhecida como Taquaruçu. Lá ele abriu uma espécie de consultório, chamado “Farmácia do Povo”, utilizando as diferentes ervas da região e elaborando receitas, como esta citada pelo jornal Diário da Tarde em 1912: “entravam sassafraz, raiz de xaxim e outras raízes, na proporção de 700 gramas em uma garrafa de cachaça, para os doentes ingerirem em grandes doses”.
Perseguidos pelas tropas catarinenses, José Maria e seus seguidores fugiram para o sertão do Irani, onde, em setembro de 1912, entraram em conflito com a polícia paranaense, dando início à Guerra do Contestado. A espera pelo retorno do curador – que morrera no conflito – e a tentativa de pôr em prática os ensinamentos dos monges, que foram preservados graças à tradição oral dos “caboclos” – como eram conhecidos os posseiros e sitiantes da região –, tornaram-se marcas fundamentais dos redutos rebeldes durante toda a guerra.
Os ensinamentos desses peregrinos foram incorporados pela cultura cabocla e deram base à resistência ao projeto modernizador e capitalista que procurava se impor na região serrana de Santa Catarina. A propriedade privada da terra, o aproveitamento industrial da floresta e as restrições de acesso aos ervais nativos nada tinham a ver com a preservação da natureza, a lealdade nas relações sociais e o amor aos animais, valores pregados pelos monges e incorporados pelos caboclos. O avanço do trem de ferro, das serrarias e dos projetos de colonização confirmava as profecias dos monges de que o tempo de calamidades e guerras havia chegado. Mas, para os caboclos, esse tempo era também a possibilidade da remissão dos pecados e da instauração de uma nova ordem – a santa irmandade – oposta à modernidade capitalista. Os milhares de mortos da Guerra do Contestado são a prova de que os ensinamentos e as profecias dos monges tinham uma força muito grande, e que, para os seus seguidores, a história deveria ter seguido por outros caminhos.”
(CARVALHO, Tarcísio Motta de. Monges Peregrinos. Revista de História da Biblioteca Nacional. no 63, dezembro de 2010. Disponível em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/monges-peregrinos. Acesso em: 2 mar. 2012).

Prof. Paulo Renato da Silva.

Postagens mais visitadas deste blog

A "Primavera dos Povos" na Era do Capital: historiografia e imagens das revoluções de 1848

  Segundo a leitura de Eric J. Hobsbawm em A Era do Capital , a Primavera dos Povos foi uma série de eventos gerados por movimentos revolucionários (liberais; nacionalista e socialistas) que eclodiram quase que simultaneamente pela Europa no ano de 1848, possuindo em comum um estilo e sentimento marcados por uma atmosfera romântico-utópica influenciada pela Revolução Francesa (1789). No início de 1848 a ideia de que revolução social estava por acontecer era iminente entre uma parcela dos pensadores contemporâneos e pode-se dizer que a velocidade das trocas de informações impulsionou o processo revolucionário na Europa, pois nunca houvera antes uma revolução que tivesse se espalhado de modo tão rápido e amplo. Com a monarquia francesa derrubada pela insurreição e a república proclamada no dia 24 de fevereiro, a revolução europeia foi iniciada. Por volta de 2 de março, a revolução havia chegado ao sudoeste alemão; em 6 de março a Bavária, 11 de março Berlim, 13 de março Viena, ...

A multidimensionalidade na migração de retorno de brasileiros e brasileiras do Paraguai (1970-2020)

  Fonte: Editora Acervus, 2025. O livro A multidimensionalidade na migração de retorno de brasileiros e brasileiras do Paraguai (1970-2020) é fruto da minha tese de doutorado, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, em agosto de 2024. A obra trata de um tema central nos estudos migratórios: o retorno. Este, mesmo sendo parte integrante da dinâmica da migração, é pouco estudado. Sendo assim, com base em amplo referencial teórico e trabalho de campo, visa-se demonstrar as múltiplas formas e causas da migração de retorno. Em termos teórico-metodológicos, trata-se de um estudo dos movimentos migratórios contemporâneos a partir do uso da história oral. A tessitura do corpus documental da pesquisa constituiu-se de entrevistas aprofundadas, que buscaram reconstituir trajetórias de vidas e de migrações, recolhidas entre migrantes retornados e retornadas, situados e situadas na fronteira entre os dois países no estado do Par...