“Na impossibilidade de se resenhar o conjuntos dos textos que integram a
extensa listagem bibliográfica sobre a Revolução Francesa, dois conjuntos de
questões serão mencionados a seguir para que se tenha uma noção, ainda que
geral, dos debates contemporâneos em torno da questão da natureza da revolução
e de suas causas. (...).
A interpretação da Revolução Francesa como modelo “clássico” da revolução
burguesa desfruta de razoável prestígio entre os historiadores.
Apoiando-se nas teses de Marx sobre a via revolucionária de passagem do
feudalismo ao capitalismo, esta versão combina leis gerais da história para
explicar a mudança de modos de produção, com problemas de ordem particular: a
estrutura específica da sociedade francesa no fim do Antigo Regime e sua base
aristocrática. Os acontecimentos são explicados à luz da luta de classe que
oporia aristocracia a burguesia, em torno da manutenção ou abolição da
feudalidade. Esse modelo de interpretação privilegia como temas principais o
problema da propriedade e da questão agrária, e a participação dos camponeses e
das massas populares urbanas, em especial os jacobinos. Os primeiros
considerados os “árbitros” da revolução e os segundos como expressão das forças
mais radicais da revolução.
A explicação assim estruturada em torno da contradição entre dois tipos
diversos de sociedade, sendo a superação da ordem antiga pela nova considerada
como uma lei histórica, dá aos acontecimentos revolucionários um caráter inevitável.
Dito em outros termos, integra um conjunto de fatos que possuíam um razoável índice
de previsibilidade. A passagem do feudalismo para o capitalismo é então
entendida como uma “necessidade histórica”.
Alguns críticos dessa interpretação apontam as fragilidades da visão
construída sobre a base do conflito entre burguesia e aristocracia. Consideram
a realidade social francesa no Antigo Regime mais complexa e, portanto, irredutível
a esta simples polaridade. Invertem essa interpretação ao chamar atenção para a
formação de uma nova elite, integrando setores daquelas duas classes e impondo
a revisão da natureza dos conflitos e tensões sociais do período.
Numa outra vertente, as análises sobre a situação agrária no final do
Antigo Regime têm insistido nas teses sobre o desenvolvimento de formas
capitalistas no campo ao longo do século XVIII, fragilizando ainda mais o
argumento fundado no conflito entre feudalismo e capitalismo, ou aristocracia e
burguesia, que se constitui no substrato daquela interpretação. Na perspectiva
econômica, pesquisas mais recentes tendem a abrandar o caráter de “crise”
daquela sociedade, que teria conhecido relativo crescimento e lembram que as
transformações no regime de propriedade eram um fato, durante o reinado de Luís
XVI. Pode-se concluir deste conjunto de argumentos que pensar a revolução como
provocada por tensões inerentes ao sistema feudal não seria um bom caminho para
sua compreensão. Na hipótese da existência e do aguçamento dessas contradições
seria mais compreensível esperar que a revolução ocorresse em outras sociedades
do leste europeu, como já apontou Tocqueville em meados do século passado.
Para que se defina o caráter da revolução há que se definir previamente
qual de suas etapas, ou qual de suas “revoluções” melhor identificaria a
mudança. Em termos de periodização, significa optar por 1789 ou por 1793. Isto é,
atribuir maior relevância à Declaração dos Direitos, ao período constitucional,
à vitória dos princípios do liberalismo e à conquista da liberdade; ou
privilegiar a Convenção Jacobina e o esforço de ampliar as conquistas
revolucionárias ao preço do sacrifício da liberdade, em prol da igualdade e da
imposição do terror.
Em sentido diverso, historiadores que se situam em outro plano de
compreensão dos processos de mudança, recusando explicações organizadas a
partir dos conflitos sociais, ou da preeminência dos fatores de natureza econômica,
atribuem importância ao papel desempenhado pelas idéias dos filósofos
iluministas.
Para esses historiadores, as obras de Voltaire, Diderot, Rousseau e
Montesquieu, em que pesem as diferenças que guardam entre si, têm em comum o
lado crítico ao Antigo Regime e à Igreja, parceira do rei no controle do poder.
Seus textos desempenharam importante papel na derrocada do Antigo Regime, por
condenarem o obscurantismo e o predomínio das “trevas”, com os quais os filósofos identificavam as
sociedades submetidas ainda ao pensamento escolástico. E, ainda por difundirem
a crença na razão como portadora do progresso e da felicidade, substituindo então
os antigos deuses por uma crença secularizada.
Essa interpretação também tem seus críticos que levantam dúvidas quanto à
possibilidade de novas idéias terem a força de mudar regimes políticos e
sociais. Acrescentam ainda o argumento que destaca um certo grau de acomodação
dos filósofos ao cotidiano da sociedade francesa, ao convívio com as elites,
esvaziando assim seu conteúdo revolucionário.
As interpretações sobre o papel desempenhado pelas “Luzes” na Revolução
Francesa merecem ser reexaminadas para que se desvende a importância da
constituição de uma opinião pública. Esta
forjaria uma nova concepção de poder, não mais alocado no Estado, mas na
sociedade, precondição para a experiência da cidadania, com a qual se confunde
o processo revolucionário.” (CAVALCANTE, Berenice. A Revolução Francesa e a modernidade. São Paulo: Contexto, 1997. p.
11-13).
Prof. Paulo Renato da Silva.
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