Pular para o conteúdo principal

Materialidade, restauro e historicidade das obras de arte.

Detalhe de obra em processo de restauro (Disponível em: <http://galeriagrazini.blogspot.com.br/2011/01/conservacao-e-restauracao-de-obras-de.html>. Acesso em: 10 mar. 2013).

Já vimos como as artes variam de uma cultura para outra e historicamente. Hoje acrescentamos um elemento a essa discussão, a historicidade da própria materialidade das obras. Elas envelhecem, se degradam, estão sujeitas a acidentes, a fungos, à poluição e a cupins, dentre outros perigos. E, apesar de sua importância, os processos de restauração não garantem o retorno das obras à sua condição original:
“A obra – quadro, estátua, edifício – vive, sofre acidentes, envelhece. Para lhe devolver o estado primitivo existem as técnicas de restauração. Ora, essas técnicas têm quer se basear no pressuposto de que podem recuperar o estado de origem, a feição inicial da obra, o que é ao mesmo tempo um dado hipotético e um problema. Além disso, elas intervêm, concretamente, na obra e na sua evolução.
Suponhamos: um quadro foi pintado no começo do século XIX. Ele não sofreu acidentes (...), com o tempo, entretanto, perdeu um pouco a intensidade do colorido. Para reavivar os tons, o conservador espalha de vez em quando uma camada de verniz sobre a tela. Mas os vernizes envelhecem e acabam difundindo por toda a pintura uma tonalidade âmbar, que passa a fazer parte do quadro.
Vem um novo conservador, mais jovem, mais a par das novidades técnicas e manda retirar as camadas de verniz: o quadro surge então com cores muito mais vibrantes. A metamorfose poderia nos fazer pensar que agora temos diante dos olhos o quadro original. (...). [Mas] Queria o pintor realmente a violência cromática que recuperamos, ou fora ela atenuada desde o início pelos vernizes que o próprio artista havia aplicado?
(...).
Em todas as artes, o restaurador se encontra continuamente diante de escolhas que deve efetuar em função de seu conhecimento técnico, de sua cultura, da concepção que possui da obra que restaura. Essas escolhas, assim como prolongam a vida da obra, determinam modificações concretas, que tanto podem ser felizes como comprometedoras. (...). As grandes exposições retrospectivas da obra de um pintor, reunindo quadros procedentes de museus do mundo inteiro, mostram, amiúde, diferenças importantes de aspecto de um quadro para outro, devidas às escolas e técnicas diversas de restauração que os trataram.
Por vezes, a recuperação é impossível, e obras essenciais da história da arte são contempladas, “vividas”, por nós sob uma aparência muito diversa da primitiva. A arquitetura e a estatuária grega, apogeu da criação humana, que rememoramos sempre na sua límpida brancura de mármore, eram originalmente pintadas – policromia que mal podemos imaginar.
Estes exemplos, suficientemente significativos, levam-nos a concluir desde já que a obra não é um absoluto cultural, nem tampouco um absoluto material, pois vive e se modifica.” (COLI, 1995: p. 75-77).
Referências bibliográficas:
COLI, Jorge. O que é Arte. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
Prof. Paulo Renato da Silva.

Postagens mais visitadas deste blog

A "Primavera dos Povos" na Era do Capital: historiografia e imagens das revoluções de 1848

  Segundo a leitura de Eric J. Hobsbawm em A Era do Capital , a Primavera dos Povos foi uma série de eventos gerados por movimentos revolucionários (liberais; nacionalista e socialistas) que eclodiram quase que simultaneamente pela Europa no ano de 1848, possuindo em comum um estilo e sentimento marcados por uma atmosfera romântico-utópica influenciada pela Revolução Francesa (1789). No início de 1848 a ideia de que revolução social estava por acontecer era iminente entre uma parcela dos pensadores contemporâneos e pode-se dizer que a velocidade das trocas de informações impulsionou o processo revolucionário na Europa, pois nunca houvera antes uma revolução que tivesse se espalhado de modo tão rápido e amplo. Com a monarquia francesa derrubada pela insurreição e a república proclamada no dia 24 de fevereiro, a revolução europeia foi iniciada. Por volta de 2 de março, a revolução havia chegado ao sudoeste alemão; em 6 de março a Bavária, 11 de março Berlim, 13 de março Viena, ...

CONTRA A MARÉ DO ESQUECIMENTO: PIRATARIA E A INVISIBILIZAÇÃO AFRICANA NA INGLATERRA MODERNA

  Xil ogravura retratando o pirata Henry Avery e o seu criado, publicada em A general history of the robberies and murders of the most notorious pyrates , Charles Johnson (1724) A crença de que os antigos africanos não possuíam capacidade para realizar travessias marítimas não apenas revela preconceito, mas também um profundo desconhecimento histórico. Por volta de 2600 a.e.c., os egípcios já construíam embarcações de grande porte e dominavam a construção naval, o comércio e a guerra marítima. A crescente demanda por estanho, indispensável para a produção de armas e utensílios de bronze, levou faraós como Sesóstris I e Tutmés III a organizarem expedições marítimas às regiões setentrionais da Europa. Suas embarcações, feitas de papiro ou madeira costurada, possuíam estrutura flexível, capaz de resistir a tempestades, o que as tornava aptas para enfrentar o mar aberto. O uso combinado de remo e vela permitia a navegação mesmo na ausência de vento, evitando que ficassem à deriva. Va...