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Escrita, construção e metodologia.

Continuamos com Georges Duby. No trecho a seguir, Duby fala sobre a escrita, sobre a sua própria escrita, o que não seria uma tarefa simples para os historiadores.
A escrita exige planejamento, exige que seja traçado um percurso a ser seguido. Entretanto, esse “mapa” não deve ser seguido à risca, a escrita sempre deve estar aberta aos novos caminhos que a pesquisa pode nos apresentar a qualquer momento. A escrita tampouco pode ignorar as incertezas que nos cercam, pois a pesquisa nunca responde todas as perguntas. Pelo contrário, costuma colocar várias outras em nossa cabeça. Finalmente, como Duby frisa bem, a escrita deve buscar o “calor” das ações humanas que pesquisamos, “calor” este que, evidentemente, não existe mais, daí ser um grande desafio.
Duby também aborda um ponto que é bastante debatido e ressalta que o passado é uma construção marcada, dentre outros fatores, pelo presente, pelo historiador que o constrói e pelas lacunas deixadas pelas fontes. Contudo, seria uma construção com metodologia, ou seja, pautada por procedimentos, inclusive de natureza ética. Em outras palavras, poderíamos dizer que o passado é uma construção, mas não uma invenção:
“Quando escrevo, trabalho em duas etapas. Começo por edificar cuidadosamente a estrutura. No início, não passa de um andaime leve, mas que já encerra no todo as formas do futuro edifício, pois tenho desde logo a necessidade de figurá-lo por inteiro, de identificar-lhe as grandes massas, assim como a maioria dos pintores precisa cobrir toda a tela antes de encetar o trabalho. Feito isto, reforço aos poucos a trama inicial, aprofundo os detalhes até traçar uma rede cerrada na qual cada argumento, cada idéia se instalará em seu devido lugar no desenvolvimento lógico da redação. Empreendo-a afinal quando a construção parece suficientemente sólida para sustentar convenientemente um remate. Disponho-lhe então os elementos como peças de marchetaria (...). Esta fase de acabamento é a mais delicada. (...). A animação da etapa intermediária dá lugar à agonia nesta última. Meu trabalho termina como começou, em meio a incerteza e tormentos.
Em seu diário, Delacroix anotou no dia 5 de abril de 1850: “A tarefa do historiador parece-me a mais difícil; ele precisa de uma atenção constantemente voltada para mil objetos ao mesmo tempo, devendo através das citações, das enumerações precisas, dos fatos que ocupam uma posição apenas relativa conservar este calor capaz de animar a narrativa.” Penso como ele: os fatos são relativos; essencial, em compensação, é a “animação” e portanto este “calor” que o historiador na realidade não “conserva” (pois já desapareceu completamente dos vestígios que ele examina), mas desperta com seu hálito e deve constantemente reavivar. É esta sua tarefa. (...). Evidentemente, como o etnólogo que interroga um informante, o historiador, ao perscrutar suas fontes, deve apagar-se o quanto puder, não passando de um olhar neutro. Ele jamais o consegue plenamente (...). (...). Pois o fato é que os historiadores não são detectores inertes, lêem com olhos sempre novos os mesmos documentos, baseando-se em questionários constantemente adaptados. A maioria dos achados provém desse fermento de fantasia que leva o historiador a afastar-se dos caminhos muito batidos. Provém de seu temperamento, vale dizer, daquela mesma personalidade que a estrita moral positivista pretendia neutralizar.
Não se há de pensar que repudio esta moral: ela que dá dignidade a nosso ofício. Eu tratava de aplicar-lhe escrupulosamente os preceitos no tratamento do material à minha disposição. Empenhava-me então em confirmar, em esclarecer os testemunhos, em não desnaturá-los. Tomara o cuidado de considerá-los a todos, integralmente, de não descartar nada, de manter cada um em seu lugar, proibindo-me imperativamente a menor supressão, qualquer empurrãozinho nos fatos, qualquer dessas pequenas liberdades que somos fortemente tentados a tomar para que as migalhas esparsas de informações melhor se adaptem ao que delas pretendíamos fazer a priori. Mas bastava começar a reunir esses fragmentos para que as insuficiências do material se revelassem: era incompleto, friável, disparatado. Eu não podia dispensar-me de retificar aqui e ali certas arestas, precisava unir essas peças umas às outras e sobretudo preencher os vazios que as separavam. Parecia-me portanto ter direito à independência do autor. Se nossa moral impunha-me que controlasse meus caprichos, não podia impedir-me de tirar partido de minha cultura. Nem de minha imaginação, desde que minha razão a mantivesse sob firme controle.
(...).
Henri Gouhier compara o ofício do historiador ao do encenador. Construído o palco, plantado o cenário, composto o libreto, trata-se de montar o espetáculo, de comunicar o texto, de dar-lhe vida, e é isto o que importa: é precisamente do que nos convencemos quando, depois de ler uma tragédia, podemos ouvi-la e vê-la representada. Cabe ao historiador esta mesma função mediadora: comunicar pelo texto escrito o “calor”, restituir “a própria vida”. Mas não devemos iludir: esta vida que ele tem por missão instilar é a sua própria vida. E nisto ele tem tanto mais êxito quando mais sensível se mostra. Deve controlar suas paixões, mas sem estrangulá-las, e tanto melhor desempenhará seu papel se deixar-se aqui e ali levar por elas. Longe de afastá-lo da verdade, elas têm todas as possibilidades de aproximá-lo mais ainda. À história seca, fria, impassível, prefiro a história apaixonada. Inclinar-me-ia mesmo a considerá-la mais verdadeira.
Há algum tempo que emprego cada vez mais a palavra “eu” em meus livros. É a maneira que tenho para advertir o leitor. Não tenho a pretensão de comunicar-lhe a verdade, mas de sugerir-lhe o provável, colocando-o diante da imagem que eu mesmo tenho, honestamente, do real. Dessa imagem participa em boa dose aquilo que eu imagino. Cuidei, entretanto, para que as elasticidades do imaginário permanecessem solidamente presas a esses ganchos que em caso algum, em nome de uma moral, a do cientista, ousei manipular ou negligenciar, e que testei em todos os casos minuciosamente, para confirmar-lhes a solidez. Estou falando dos documentos, minhas “provas”." (DUBY, 1999: 56-62).
Referências bibliográficas:
DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Editora UFRJ, 1999.
Prof. Paulo Renato da Silva.

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