Continuamos hoje nossa entrevista com Pedro Telles da
Silveira (UFRGS), pensando a história na Era Digital:
Em sua trajetória
acadêmica, você estudou, entre outros temas, as concepções de erudição
histórica nas academias do século XVIII (SILVEIRA, 2016), bem como o
antiquariato, participando inclusive da tradução de um importante texto de
Arnaldo Momigliano sobre o tema (MOMIGLIANO, 2014) – ou seja, trabalhos que remetem
à forma como os historiadores praticavam e pensavam seu ofício. É possível
dimensionar, numa perspectiva de longo prazo, o quanto as novas tecnologias de
armazenamento e acesso à informação alteraram (ou alterarão) a forma como os
historiadores veem o próprio ofício? Os historiadores serão “programadores”,
como sugeriu outrora Ladurie?
Creio que toda história daqui para frente será “digital”
simplesmente porque a situação em que vivemos o é. Isso também revela a
instabilidade ou a imprecisão de termos como história ou historiografia
digital. Os termos são usados ora para se referir ao uso de ferramentas
eletrônicas digitais no momento da pesquisa, ora para indicar o uso dessas
ferramentas para a divulgação dos trabalhos, ora para qualificar a análise de
documentos nascidos digitalmente. Destaco este aspecto porque se digo que toda
história futura será digital não quero dizer, por outro lado, que a “história
digital” será um campo que dominará todos os demais.
Quanto à
frase de Emmanuel LeRoy Ladurie, ela parece ter encontrado nova força com o
chamado big data, ou seja, os vastos
repertórios de dados numéricos agora disponíveis após décadas de digitalização
e criação de fontes digitais. Projetos como o Google NGram, que mapeiam a
utilização de vocábulos ao longo de décadas ou séculos, são exemplo de
iniciativas que operam com essa sorte de dados. Esse é um campo bastante
explorado pelas digital humanities,
as quais parecem se caracterizar sobretudo pelo uso de ferramentas
quantitativas para a análise de extensos corpora
de dados, e se trata de um campo bastante profícuo, com vários cursos e eventos
na Europa e nos Estados Unidos dedicando-se a isso.[1]
Por outro
lado, a história digital atravessa os discursos da história pública. Os
instrumentos digitais são pensados como meios de difusão do conhecimento
histórico, para não mencionar a produção de conhecimento por outros sujeitos
que não os historiadores e historiadoras. Temos uma série de exemplos bastante
interessantes nesse sentido.[2]
Parece-me que este é um campo aberto – e fico feliz que o seja –, mas noto em
todos os casos modificações no papel de historiador, seja porque ele ou ela
passam a responder a demandas públicas mais explícitas, seja porque suas
atuações consistiriam em fornecer plataformas através das quais as pessoas
consigam se engajar com o passado, como nos projetos colaborativos de arquivos
digitais. Neste último caso, os historiadores e historiadoras deixam de ser
escritores e intérpretes para se transformarem em curadores e expositores –
guinada, aliás, que não é em tudo inédita, pois já no século XVIII se
considerava que o trato com os documentos dotava os historiadores de
características mais próprias a um compilador do que autor de uma narrativa
nova, caso queiramos encontrar similaridades com outros momentos históricos.
No que diz
respeito ao trabalho, porém, percebo uma série de transformações igualmente
significativas mas quase imperceptíveis. Uma das principais é o ambiente de
trabalho do historiador. Pode-se trabalhar o tempo todo em casa, ou em
trânsito; pode-se estar em qualquer lugar. Com isso, o arquivo assume um significado
metafórico e assinala o acervo documental que o próprio historiador ou
historiadora constituiu mais do que um lugar específico onde ele ou ela se
encontra para ler e analisar os documentos. É como se se passasse do “trabalho
de campo”, o qual é sempre específico, para o “laboratório”, que é um espaço
abstrato não condicionado pelas especificidades à sua volta (ESKILDSEN, 2008,
p. 430). Outra alteração é na velocidade do trabalho, o qual é acelerado. Em
seu livro sobre os arquivos, Arlette Farge ressalta como parece estranho
àqueles que não estão acostumados que o trabalho do historiador consista em
passar horas e horas copiando, sem alteração nenhuma, centenas de passagens
(FARGE, 1989, pp. 24-25). É, porém, nesse tempo lento e artesanal que surgem as
ideias. Com a aceleração resultante das práticas de “copiar” e “colar”,
destaques em textos .pdf, entre outras práticas, o trabalho é acelerado. E
penso se isso não significaria que a tradição de uma método artesanal – um
“ofício” propriamente dito – não está sendo quebrada através destas pequenas
práticas cotidianas que colocam o trabalho do historiador ou da historiadora em
sintonia com a produção do conhecimento em escala industrial imposta pela
dinâmica das disciplinas e pelas agências de fomento...
Eu percebo, de qualquer forma, estas três
alterações ocorrendo concomitantemente. Não sei qual delas se tornará
hegemônica, se é que alguma delas tomará a dianteira ou não. O que me parece
certo é que o historiador ou a historiadora serão apenas mais um dos elementos
no processo que levam à produção do conhecimento histórico, e não mais as
personagens soberanas a reinar solitárias sobre os arquivos e das quais provêm,
como que por inspiração, os insights que permitem penetrar a realidade
histórica. Esse deslocamento da centralidade dos historiadores e historiadoras
é resultado tanto da intercessão da máquina quanto da necessidade de justificar
publicamente suas pesquisas, tanto pelo fato de se tornarem mais um empregado
na linha de montagem da ciência quanto pela constituição de redes e grupos de
pesquisa. Pode-se notar que as modificações, logo, não são necessariamente
negativas, apenas apontam para outros modos de fazer e imaginar o ofício – se é
que ainda será um ofício, e não uma profissão – de historiador.
Referências:
ESKILDSEN, Kasper Risbjerg. “Leopold von Ranke’s Archival
Turn: Location and Evidence in Modern Historiography”, in Modern Intellectual History, 5, 3 (2008), pp. 425-453.
FARGE, Arlette. Le
goût de l’archive. Paris: Editions du Seuil, 1989.
MOMIGLIANO, Arnaldo. “História antiga e o antiquário”. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 19-76, jul. 2014.
SILVEIRA, Pedro Telles da. O cego e o coxo: historiografia, erudição e retórica no Brasil do
século XVIII. 1. ed. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2016.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos
[1] Refiro-me ao curso Doing Digital History, organizado
pelo Center for History and New Media da George Mason University, instituição
pioneira na área (http://history2016.doingdh.org) e aos eventos DH Benelux, que reúnem projetos de
humanidades digitais da Bélgica, Holanda e Luxemburgo (http://www.dhbenelux.org).
[2] Para citar apenas alguns, o projeto Obscuro Fichário
dos Artistas Mundanos, que reúne historiadores, artistas e curadores em torno à
documentação do DOPS sobre os artistas fichados pela ditadura em Pernambuco (http://obscurofichario.com.br) ou as iniciativas do Center for History and New
Media, das quais a principal ainda é o September 11th Digital Archive (http://911digitalarchive.org).