Apresentamos hoje a terceira parte de nossa entrevista com Pedro Telles da Silveira (UFRGS), continuando nossa conversa sobre a história na Era Digital:
Que registros a era digital deixará para os historiadores do futuro? Podemos pensar que as práticas historiográficas atravessarão transformações ainda maiores nas próximas décadas?
Creio que exercícios de futurologia aplicados à tecnologia
correm sempre o risco de fracassarem. Me parece que um dos desafios é fazer uma
reflexão que não se torne inválida pelo próprio avanço tecnológico. Nesse
sentido, é preciso que o tempo da técnica e o tempo da reflexão não coincidam;
simultaneamente, porém, é necessário pensar cada vez mais rápido para dar conta
dos novos fenômenos históricos – sociais, políticos, culturais – que têm nas
tecnologias digitais uma de suas condições de existência. E o historiador ou a
historiadora são chamados a intervir em debates públicos cada vez mais
significativos, como estamos vendo hoje com as discussões sobre o Escola sem
Partido ou sobre a interpretação dos eventos políticos recentes.
Quanto a
isso, considero a questão principal aquela que diz respeito a quais fontes e
como estarão disponíveis. Já se apontou que é uma ilusão crer que “tudo” ficará
registrado na internet, de modo que o registro histórico “completo” sobre o
qual o historiador norte-americano Roy Rosenzweig se indagava é, em última
instância, uma utopia (ROSENZWEIG, 2011, p. 5).
Todavia, se a internet é um grande arquivo, ele é um arquivo sem
critérios bem-estabelecidos de seleção e no qual a abundância não levará
necessariamente a melhores interpretações, minando os esforços de exaustividade
dos historiadores futuros.
Novamente,
pode-se pensar aqui também numa via positiva para este problema. Se a
instituição arquivística está ligada ao estabelecimento do Estado nação em
meados do século XIX e se, portanto, a historiografia que se utilizou dos
arquivos é também uma historiografia caracterizada pelo ponto de vista estatal,
as fontes com as quais nos defrontamos hoje e nos confrontaremos no futuro
escapam a esta perspectiva e podem introduzir uma pluralidade inesperada de
vozes. Trata-se de uma polifonia que deve ser valorizada.
Para
ficarmos apenas com um exemplo, historiadores e historiadoras futuros de nossa
atual crise política poderão utilizar o Twitter como ferramenta que lhes
permitirá medir a popularidade de expressões e tópicos de acordo com o
desenrolar dos acontecimentos – o que seria uma análise que faz uso do big data
– e desvelar, nos comentários a serem analisados, o modo como as pessoas
viveram, em seu cotidiano, os eventos que agora testemunhamos. Escapa-se,
portanto, à esfera “oficial” de criação das fontes e teremos de acrescentar à
análise de decretos políticos, projetos de lei, editoriais de jornais,
programas político-partidários, sua recepção por variadas camadas da sociedade.
Não escolhi
o exemplo do Twitter por acaso. Em 2008, a Biblioteca do Congresso
norte-americano fechou acordo com o Twitter para preservar toda a documentação
gerada por essa plataforma. O acordo, infelizmente, não vingou, tanto por falta
de vontade política quanto por dificuldades técnicas. Ele mostra, porém, o
compromisso de uma empresa privada com a publicidade futura do conteúdo que
produz.
E, com
isso, creio que chegamos ao segundo aspecto que merece ser considerado. Os
historiadores e historiadoras do futuro terão de considerar fontes como
postagens de Facebook, mensagens trocadas em grupos – frequentemente privados –
ou em ferramentas de comunicação instantânea, como o próprio Facebook ou
WhatsApp, além, é claro, de e-mails – e tudo isso sem considerar os próprios
formatos de mídia eletrônica. Em todos esses casos, a informação a ser acessada
é propriedade de uma empresa privada – e estamos todos constantemente
produzindo conteúdo para empresas privadas. Como será feito o acesso a essa
documentação no futuro ainda é uma questão em aberto.
Eu gosto de
pensar em outro exemplo, aquele das manifestações de 2013. Grande parcela das
fontes que ajudam a explicar os eventos daquele ano foram geradas e
distribuídas pelas redes sociais. Como ter acesso a elas no futuro? E, no que
toca às companhias privadas, talvez não seja inoportuno que justamente agora
tenha ganhado espaço o campo da história corporativa, aquela ligada à memória
empresarial.
Estamos,
desse modo, em um momento de redefinição das fronteiras do público e do privado
à qual os historiadores e historiadoras têm de estar atentos. Esse processo
questiona os sentidos da publicidade do trabalho de historiador, seja no
sentido de que suas informações são de origem pública, seja porque ele ou ela
têm de prestar contas à sociedade e a seu meio intelectual, seja porque o ponto
de vista que frequentemente adotaram é o do Estado, que passou, em determinado
momento, a ser identificado com a esfera pública. Na medida em que o público e
o privado estão sendo redesenhados, coloca-se a questão também da relação do
conhecimento histórico com a paisagem estatal e corporativa nova na qual se
insere. E esse me parece ser um problema a ser considerado no futuro da
historiografia.
Referência:
ROSENZWEIG, Roy. Clio Wired: The Future of the Past in the Digital Age.
New York: Columbia University Press, 2011.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos