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Os livros e a leitura na história

Dentre as formas de estudo de história das ideias, podemos destacar particularmente o estudo histórico da circulação das ideias: as formas de transmissão de uma ideia ou representação cultural em uma dada sociedade. Em especial, a transmissão por meio dos livros. Esse estudo impõe desafios de toda sorte, desafios que abrem ricas possibilidades de pesquisa e compreensão de sociedades e contextos históricos distintos de nosso próprio.
Os historiadores das ideias têm voltado sua atenção, nas últimas décadas, para a forma como as obras literárias ou filosóficas foram recebidas nos seus respectivos meios, e posteriormente ao longo de outras gerações. Por exemplo, estamos acostumados a ler e a nos deleitar com as obras clássicas de Machado de Assis, e a pensar nas formas pelas quais o autor representou as mazelas da sociedade brasileira de seu tempo, além de tocar em questões e dilemas humanos que transcendem sua própria época. Mas quem seriam os leitores contemporâneos dos livros de Machado, considerando que, no Brasil do final do século XIX a maior parte da população era analfabeta? Onde e como seus livros eram lidos? Como os leitores interpretariam os textos e ideias de Machado? Questões como essas motivaram Hélio de Seixas Guimarães na pesquisa e escrita de Os leitores de Machado de Assis: O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século XIX (GUIMARÃES, 2004).
Podemos discutir o impacto das ideias do Iluminismo no final do século XVIII, com todas as consequências futuras para nossas formas de pensar a sociedade e a política. Mas como essas ideias circularam naquele período? Robert Darnton pesquisou esse tema através de um estudo dos leitores e compradores da famosa Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, revelando uma série de aspectos antes não observados, como a existência de edições piratas, alterações e intervenções indevidas nos textos, contrabando de livros, entre outros (DARNTON, 1996).
O que podemos pensar sobre a própria prática da leitura ao longo da história? Das diferenças entre os espaços onde a leitura se dá (o espaço privado da casa, ou o espaço público das bibliotecas e gabinetes de leitura), até a recepção das ideias de um texto pelo leitor, muitas possibilidades surgem para os historiadores. Segundo um dos principais estudiosos do livro e da leitura na história, Roger Chartier, o pesquisador acaba por operar dentro uma tensão entre dois extremos: considerar o livro como “todo-poderoso”, impondo seu significado sobre o leitor, ou enxergar como “primordial a liberdade do leitor”, ou seja, pensar que cada leitura é única e irredutível, que cada leitor interpreta o que lê de acordo com sua própria experiência de vida. Para Chartier, cabe ao pesquisador buscar, “para cada época e para cada meio, as modalidades partilhadas do ler”, os “processos pelos quais, face a um texto, é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação” (CHARTIER, 1990, p. 121).
Desse modo, há muito que considerar quando pensamos nesse ato tão cotidiano para nós. Os leitores de nosso blog que nos acompanham agora podem refletir sobre suas próprias experiências de leitura. Aliás, ler no computador, conteúdos da internet (como nosso blog) ou versões digitais de livros, é um gesto muito distinto da leitura de livros no papel? Para nos ajudar a refletir sobre essa questão, vale mais uma referência a Roger Chartier: A aventura do livro: do livro ao navegador (CHARTIER, 2009), uma conversa do historiador sobre as mudanças que a era digital trouxe a nossos hábitos de leitura.

Referências bibliográficas:

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
__________. A aventura do livro: do livro ao navegador. Conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Editora da UNESP, 2009.
DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século XIX. São Paulo: Nankin/EdUSP, 2004.

Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos

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