A micro história tornou-se abordagem popular mundialmente
entre os anos 1980 e 1990, e mantém-se hoje uma mistura de método e domínio da
história que oferece novas perspectivas a historiadores e estudantes, sobretudo
aqueles que desejam recuperar a história (e a relevância) de indivíduos do
povo. Por meio de seus expoentes italianos, Giovanni Levi e, principalmente,
Carlo Ginzburg (autor do seminal O queijo
e os vermes, de 1976), e com a colaboração de historiadores proeminentes de
outros países, como a norte-americana Natalie Zemon Davis (autora de O retorno de Martin Guerre, 1983), a
micro história teve forte impacto na historiografia. O enfoque microscópico ao
estudo de grandes problemas, o uso da documentação restrita e original, e o
papel importante conferido à narrativa e ao indivíduo estão entre os motivos
para a grande repercussão que essa abordagem obteve entre os historiadores.
O uso do termo “micro história”, porém, tem origens que
remontam à América Latina. Em 1968 o historiador mexicano Luis González y González publicou Pueblo en vilo: Microhistoria de San Jose de
Gracia (Cidade do México, 1968) uma história de seu vilarejo ao longo de
quatro séculos. O livro teve repercussão mundial, e foi traduzido para o inglês
e o francês. González teorizou sobre sua abordagem, identificando-a a história
local e à tradição do antiquariato (uma forma de estudo da história que
enfatizava costumes, cultura e instituições em detrimento da história política,
e se valia especialmente de fontes não-escritas). Mais ainda, González ofereceu
expressões alternativas para definir sua prática: história mátria (pois lidava com o mundo da família e da pequena comunidade,
remetendo a um mundo sentimental, feminino, materno) – em contraposição à
tradição da história pátria (história nacional, política) na América Latina -,
ou história yin, em referência ao
termo taoísta (oposto ao yang) que evoca o feminino, terrestre, conservador,
doce, obscuro e doloroso.
Ao se referir ao vilarejo que toma como objeto de seu
estudo, González esclarece que San José de Gracia “no aparece citada en ningún
otro libro de historia de México, ni se menciona siquiera en alguna historia de
Michoacán [província onde se localiza o município]” (GONZÁLEZ, 1995, p. 15).
Mais ainda:
“No se ha dado allí ninguna batalla de nota, ningún tratado
entre beligerantes, ningún ‘plan revolucionario’. La comunidade josefina no ha
producido personalidad de estatura nacional o estatal; nada de figuras
sobressalientes en las armas, la política o las letras. No ha dado ningún fruto
llamativo ni ha sido sede de ningún hecho importante. Parece ser la
insignificancia histórica en toda su pureza, lo absolutamente indigno de
atención, la nulidade inmaculada: tierras flacas, vida lenta y población sin
brillo. La pequeñez, pero la pequeñez típica” (GONZÁLEZ, 1995, p. 16).
Aos olhos do que normalmente ocuparia os historiadores, a
comunidade de San José de Gracia não ofereceria nada de chamativo: não foi
palco de batalhas, tratados, feitos considerados “históricos”; não é terra
natal de figura qualquer de relevo na história política ou cultural mexicana.
Porém, a historiografia, no momento em que escreve Luis González, já se
afastava a algumas décadas dessa concepção do que era “histórico”, restrita aos
eventos políticos, militares e diplomáticos, aos grandes nomes e obras. Sob o
influxo dos Annales, preocupava-se
mais com regularidades, com tipicidades, repetições. E nisso estava a força de
San José de Gracia como objeto histórico. De fato, o vilarejo representava a
“pequeñez”, mas a “pequeñez típica”; e, como acrescenta González,
“En su tipicidad está su fuerza. El área histórica
seleccionada no es influyente ni transcendente, pero sí representativa. Vale
como botón de muestra de lo que son y han sido muchas comunidades minúsculas,
mestizas y huérfanas de las regiones montañosas del México central” (GONZÁLEZ,
1995, p. 16).
A micro história de Luis González é um mergulho no
cotidiano, no típico, na vida do povo comum de um vilarejo comum ao longo de um
largo período de tempo. Sua excepcionalidade é sua tipicidade. O uso de micro
história nesse sentido de história local, comunitária, manteve-se no México. Um
exemplo é o trabalho de Jorge F. Hernández, La
soledad del silencio. Microhistoria del santuário de Atotonilco, sobre um
santuário localizado na pequena Atotonilco, província de Guanajuato, México. Na
localidade “não se realizaram batalhas determinantes nem se firmaram decretos
presidenciais” (HERNÁNDEZ, 1991, p. 15), embora tenha ouvido os gritos de
Hidalgo e dos insurgentes de Dolores em 1810, como esclarece o autor na
Introdução. Recebe, pois, uma “microhistoria”, uma história da terra mátria,
local, através de seu santuário. O livro é dedicado a Luis González y González,
que assina o prólogo.
Ao
pensarmos em micro história, certamente continuaremos a nos lembrar do moleiro
Mennocchio e do camponês Martin Guerre, retratados nas obras já clássicas
listadas acima; mas podemos reservar um espaço para essa outra micro história,
mexicana, latino-americana, um caminho para pensarmos a história local e
popular.
Capa
da segunda edição de Pueblo en vilo (1972). Imagem extraída de https://introduccionalahistoriajvg.wordpress.com/2012/07/15/%E2%9C%8D-pueblo-en-vilo-microhistoria-de-san-jose-de-gracia-1968/, acesso em 19 de setembro de 2016.
Referências bibliográficas e indicações de leitura:
DAVIS, Natalie Zemon. O
retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as
idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
__________. “Micro-história: duas ou três coisas que sei a
respeito”. O fio e os rastros.
Verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo
Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 249-279.
GONZÁLEZ Y GONZÁLEZ, Luis. Pueblo en vilo: microhistoria de San José de Gracia. Zamora,
Michoacán: El Colegio de Michoacán, 1995 (Primeira edição: 1968).
HERNANDEZ, Jorge F. La
soledad del silencio. Microhistoria del santuário de Atotonilco. México, D.
F. Fondo de Cultura Económica, 1991.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos