Como as obras de literatura podem ser usadas como fontes
pelo historiador? Como podem ajudá-lo a conhecer melhor uma época ou sociedade?
Certamente a literatura não funciona como banco de dados, ou registro de
informações históricas precisas (datas, falas, eventos), a serem extraídos pelo
historiador. O que podemos buscar na literatura, portanto, para nossos estudos
históricos?
A historiadora brasileira Sandra Jatahy Pesavento
(1946-2009) dedicou-se a pensar esse uso da literatura enquanto fonte em
estudos como “O mundo como texto: leituras da História e da Literatura”
(PESAVENTO, 2003). Pesavento discute nesse texto dois tipos de relação entre
essas escritas: a relação epistemológica, voltada a pensar as fronteiras entre
verdade e ficção, e o uso da Literatura como fonte pela historiografia. No
segundo caso (sobre o primeiro falaremos mais em nosso próximo post), Pesavento
resume o que o historiador pode (e não pode) esperar obter da leitura de obras
de ficção:
Se o historiador
estiver preocupado com datas, fatos, nomes de um acontecido, ou se buscar a
confirmação dos acontecimentos do passado, a literatura não será a melhor fonte
a ser usada... Mas, se o historiador estiver interessado em resgatar as
sensibilidades de uma época, os valores, razões e sentimentos que moviam as
sociabilidades e davam o clima de um momento dado no passado, ou em ver como os
homens representavam a si próprios e ao mundo, a Literatura se torna uma fonte
muito especial para o seu trabalho (PESAVENTO, 2003, p. 39).
Sensibilidades, valores, razões, sentimentos,
representações, estão entre os aspectos do passado que a Literatura ajuda a
revelar. Pesavento faz ainda uma observação metodológica de fundamental
importância: “A Literatura (...) é sempre fonte de si mesma, ou seja, diz sobre
o presente da sua escrita e não sobre a temporalidade do narrado” (PESAVENTO,
2003, p. 39). Isto é, um romance cuja narrativa se passa em um período
histórico distinto ao de seu autor nos diz mais sobre o momento histórico no
qual o romance foi escrito, do que sobre o momento no qual se passa a
narrativa. Por exemplo, o romance O
Guarani, de José de Alencar, publicado em 1857, desenvolve uma narrativa
que se passa no início do século XVII, nos princípios da colonização portuguesa
da América, em particular do Rio de Janeiro. A leitura da obra, porém, nos
permite compreender mais a mentalidade da sociedade e da época de
seu autor, José de Alencar (1829-1877), isto é, a cultura letrada do Segundo
Império brasileiro e, em particular, o romantismo, do que o Rio de
Janeiro do início do século XVII. Isso se buscarmos, como aconselha Sandra
Pesavento, não informações e registros de eventos históricos, mas valores,
sensibilidades e representações.
O mesmo vale para obras de ficção que representam não o
passado, mas o futuro. Utopias (ou distopias, narrativas de futuros sombrios
para a humanidade) igualmente nos dizem mais sobre os temores e expectativas a
respeito do futuro existentes na época em que os livros são escritos, do que
sobre previsões concretas sobre o porvir. Nesse sentido, comparando as diversas
formas de representação do futuro ao longo do tempo, podemos escrever uma
“história do futuro”, ou observar os diferentes “futuros passados” (como na
expressão de Reinhardt Koselleck), as imaginações do futuro que ficaram no
passado.
Encerramos nosso post com duas indicações: a bibliografia de
Sandra Jatahy Peavento foi digitalizada, e está disponível no site do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, no endereço: http://www.ihgrgs.org.br/. A iniciativa,
procedente da família da historiadora, torna acessível (gratuitamente) o
conjunto de sua obra, marcada por vários interesses, em particular reflexões
sobre a História Cultural, e as fronteiras entre História e Literatura.
Por fim, sugerimos também o vídeo abaixo, no qual o
historiador Sidney Chalhoub (Unicamp) discute as relações entre História e
Literatura, em entrevista à jornalista Mônica Teixeira para a Univesp TV:
Referência bibliográfica:
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo como texto: leituras da
História e da Literatura. História da
Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 14, p. 31-45, set. 2003.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos