Todos os povos experimentam a história e o
tempo da mesma maneira? Em todas as culturas existiria a distinção entre passado,
presente e futuro? A representação do passado seria sempre guiada por
tentativas de produzir conhecimento socialmente aceito sobre o que se passou em
outras épocas? Em busca de respostas a essa questão, antropólogos e
historiadores têm se voltado para o estudo de distintas “historicidades”, isto
é, distintas formas culturais de perceber o passado, e de se relacionar com
ele.
Em antropologia, pelo menos desde a
distinção de Claude Lévi-Strauss entre as sociedades “quentes” e “frias”, pelo
modo como se relacionam com o passado (buscando anular a passagem do tempo por
meio de rituais ou mitos, ou incorporar a mudança), estudiosos têm observado
que o modo ocidental moderno de lidar com o tempo e a história não são
universais. O chamado historicismo ocidental, a percepção de que o passado é
diferente do presente, e inacessível direta e imediatamente, é uma construção
histórica relativamente recente (datando, aproximadamente, do final do século
XVIII). Sendo o passado diferente, ele se torna, para as sociedades ocidentais,
objeto de conhecimento, e não pode ser acessado imediatamente; isto é, não
temos como trazer o passado diante de nossos olhos diretamente – seu
conhecimento é apenas indireto, obtido por meio de vestígios preservados, que
permitem uma limitada reconstituição por parte dos historiadores do que teria
se passado, segundo regras de método socialmente aceitas.
Antropólogos e historiadores têm
confrontado essa forma de conceber e se relacionar com o passado com formas
presentes em outras culturas. Essas pesquisas revelam uma variedade ampla de
“historicidades”: o passado que se manifesta diretamente no presente por meio
de deuses ou espíritos que aparecem e se comunicam com indivíduos no presente;
ou uma conexão afetiva com o passado que permite uma identificação direta com
as pessoas e eventos relembrados, por exemplo. O primeiro caso, com variações
importantes, aparece em pesquisas sobre tribos nativo-americanas, ou
comunidades xamânicas, e em culturas asiáticas; o segundo caso aparece, por
exemplo, nas preces e orações da população bósnia posteriores às guerras dos
anos 1990, nas quais a ligação afetiva entre os sobreviventes e os mártires do
conflito aproximava presente e passado (exemplos presentes em STEWART, 2016).
Estes são exemplos (descritos aqui de
forma bastante genérica) de pesquisas sobre diferentes “historicidades”. O
conceito de historicidade tem
tradição na filosofia e teoria da história, que remonta especialmente às
considerações do filósofo Martin Heidegger (1889-1976), em particular na obra O Ser e o Tempo (1927). Atualmente, o
conceito passa por momento de debates e definições, mas tem sido utilizado para
pensar a variedade de relações com o passado a que nos referimos, e a forma
como essas relações são culturalmente formadas e moldadas. Embora a temática se
aproxime dos estudos sobre as formas sociais de recuperação e apropriação da
memória, a historicidade abrange uma dimensão temporal maior do que aquela
compreendida nas recordações pessoais ou coletivas, ou em experiências que
podem ser recuperadas.
Tais estudos têm sido empreendidos pela
antropologia em etnografias da historicidade, mas também correspondem a
pesquisas que ocupam a Teoria da História a algumas décadas (com autores como
Paul Ricouer ou Hayden White), e, mais recentemente, a história global
(pensando o próprio conceito de história como transcultural), e os estudos
pós-coloniais (autores como Dipesh Chakrabarty e Sanjay Seth, por exemplo,
confrontando as formas ocidentais de conceber o passado e a história com os
épicos e mitos do pensamento indiano e sul-asiático). São estudos que englobam
uma ampla variedade de possibilidades, além de textos escritos e ideias ou
conceitos. As relações com o passado podem ser estudadas por meio de
performances (danças, rituais, representações teatrais), cultura de massas
(filmes, livros, games etc.), museus
e patrimônio, entre outros objetos. De grande interesse nessa reflexão é a
possibilidade de interculturalidade envolvida: uma mesma cultura comporta
diferentes historicidades, e os contatos entre culturas e as migrações vão
tornando as interações entre historicidades mais complexas e ricas.
Um exemplo aparece no
documentário La Piedra Ausente
(2016), de Sandra Rozental e Jesse Lerner. O documentário retrata o transporte
de uma enorme pedra talhada do povoado de San Miguel Coatlinchan, no município
de Texcoco, para o Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México, em
1964. A pedra representava uma deidade pré-hispânica relacionada à água, e sua
remoção gerou revolta entre os habitantes do povoado. Na Cidade do México, a
pedra tornou-se símbolo de identidade nacional; para os habitantes de
Coatlinchan, porém, desde que a pedra foi removida, deixou de chover no
povoado. A “pedra ausente” permanece viva nas recordações dos habitantes do
povoado e em reproduções no local. Para o povoado, a pedra não era uma relíquia
ou artefato do passado, mas a presença da própria deidade, ligada à atualidade
em uma larga temporalidade (cf. mais sobre o documentário em http://www.lapiedraausente.com/, acesso em
26/04/2017).
Imagem presente em http://www.lapiedraausente.com/
Discutimos anteriormente em nosso blog
diferentes possibilidades de experiências do tempo (a partir do filme A Chegada). As etnografias da
historicidade nos permitem conhecer maneiras distintas, e culturalmente
moldadas, de nos relacionarmos com o passado, desnaturalizando a ideia
ocidental de história e a separação entre passado e presente.
Referências
bibliográficas e indicações de leitura:
STEWART,
Charles. “Historicity and Anthropology”. Annual
Review of Anthropology, vol. 45, p. p. 79-94, out. 2016.
SETH, Sanjay. “Razão ou Raciocínio? Clio ou
Shiva?”. História da Historiografia,
Ouro Preto, no. 11, abril 2013, p. 173-189.
Prof. Pedro Afonso
Cristovão dos Santos