A eleição de Donald Trump à presidência
dos Estados Unidos trouxe à tona debates relevantes sobre as noções de verdade e fato. A recusa do então candidato Trump, em determinadas situações,
de embasar suas afirmações em evidências concretas, ou de aceitar fatos
comprovados, e a permanência desse comportamento no agora presidente, fazem
parte, de acordo com analistas, de um cenário cada vez mais discutido
atualmente, em especial nas redes sociais: a disseminação e aceitação de
informações falsas.
Tal cenário baseou a escolha da “palavra
do ano” do dicionário Oxford. Todo
ano, o dicionário Oxford, editado
pela universidade britânica de mesmo nome, elege uma palavra de destaque em
língua inglesa. A palavra destacada em 2016 foi pós-verdade, que, segundo o dicionário, foi cunhada originalmente
em 1992, mas teve seu uso aumentado em 2.000% no ano passado (cf. https://www.cartacapital.com.br/revista/933/a-era-da-pos-verdade,
acesso em 19/04/2017). Segundo o dicionário, pós-verdade é um adjetivo definido como “relacionado ou denotando
circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes para moldar a
opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (cf. https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016,
acesso em 19/04/2017). Isto é, sobretudo nos debates políticos, as pessoas
estariam menos dispostas a acreditar em argumentos que apresentam “fatos objetivos”
em seu apoio, e mais em narrativas que se adequam às emoções pelas quais passam
no momento (medo, insegurança, incertezas quanto ao futuro, ressentimento,
orgulho) ou às suas convicções pessoais (políticas, religiosas, ideológicas).
Mas o que seriam “fatos objetivos”? O que
define se podemos chamar algo de “verdade” ou não? Entre os historiadores, tais
questões são de suma relevância, e fazem parte de reflexões fundamentais em
Teoria da História, adquirindo importância maior nas últimas décadas do século
XX, a partir dos efeitos do chamado pós-modernismo
sobre a disciplina. Mas desde o início do século passado esse debate mereceu
importantes considerações. Nas primeiras décadas do último século, os
historiadores, vivendo um clima de renovação epistemológica geral às ciências
do período, reformularam antigas crenças na objetividade de sua prática. Em
particular, a ideia de que fatos históricos são elementos brutos, dados, que o
historiador “extrai” de suas fontes, foi seriamente questionada. Lucien Febvre,
um dos expoentes da chamada Escola dos
Annales, defendia que a história, como todas as ciências, “fabrica” seu
objeto, “fabrica” seus fatos. Febvre define os fatos como “ganchos” que o
historiador forja, e nos quais pendura suas teorias. Para o historiador francês,
o historiador escolhe, seleciona, revela seus fatos, mas essa escolha não é
arbitrária. É pré-concebida, a partir de teorias e hipóteses: “sem teoria
prévia, sem teoria preconcebida, não há trabalho científico possível” (MOTA,
1992, p. 106). Como apontou Carlos Alberto Vesentini, comentando o raciocínio
de Febvre, “Existem, portanto, limites ao voo, à especulação” (VESENTINI, 1997,
p. 88); “O fato, produto da escolha, passa por elaboração” (VESENTINI, 1997, p.
89). Fato e interpretação, nesse sentido, não estão separados: não há o fato
bruto, objetivo, puro, e a interpretação do historiador sobre ele, numa fase
posterior da pesquisa. O fato aparece para o historiador após um trabalho que já é de interpretação. Portanto, ao estudarmos
um fato, estamos estudando também as interpretações que o fizeram chegar até
nós; essas interpretações podem nos impor o fato como efetivado, bem como uma
lógica de exclusão: um conjunto de outros fatos que é negado ou silenciado
nesse processo de seleção e interpretação, como aponta Vesentini, estudando, em
particular, a presença do fato Revolução
de 1930 na memória histórica brasileira. Por isso sua ênfase em procurarmos
a “teia do fato”, o emaranhado de interpretações que fazem um fato chegar até
nós.
A noção do fato histórico como construção
do historiador foi compartilhada e desenvolvida por vários historiadores e
filósofos da história. A questão, porém, sobretudo a partir das décadas de 1960
e 1970, tornou-se mais delicada: se os fatos são construções dos historiadores,
e não realidades objetivas em si, pode a história considerar seu conhecimento
objetivo? Isto é, se temos apenas interpretações a partir de inferências,
relatos de eventos, seria então o conhecimento histórico apenas um consenso
provisório dos historiadores, ou seja, um conhecimento relativo? Em outras palavras, se todo o conhecimento produzido
pelos historiadores se resume a interpretações, seria a capacidade de
convencimento de cada interpretação o fator decisivo para sua aceitação, e não
sua relação com um passado objetivo. O problema do relativismo atingiu momentos
de tensão elevada, por exemplo a partir do chamado negacionismo, movimento de rejeição do Holocausto como fato
histórico. Por isso, segundo Carlo Ginzburg, o “limite do relativismo é, ao
mesmo tempo, cognitivo, político e moral” (GINZBURG, 2002, p. 38). O autor
retoma as importantes considerações da pensadora feminista Donna Haraway, em “Conhecimentos
situados”, que afirma a necessidade de buscarmos uma “ideia utilizável, mas não
inocente, da objetividade” (apud
GINZBURG, 2002, p. 39), que deixe para trás a recusa do relativismo em assumir
a responsabilidade de uma averiguação crítica. Haraway (1995) procura uma visão
crítica da ciência, que desconstrua a figura do sujeito neutro do conhecimento (de
fato, o olhar do homem branco eurocêntrico), mas sem abandonar a busca por possibilidades
de conhecimento objetivo.
Apresentamos aqui
questões complexas, que certamente retomaremos em outras postagens de nosso
blog. É importante ressaltar que pensar os fatos como construções dos
historiadores não significa abandonar quaisquer critérios para determinar ou
limitar tais construções. Para Ginzburg, por exemplo, o convencimento, a
retórica, no trabalho do historiador, está ligada à noção de prova, e a uma manutenção, mesmo que
crítica, de preceitos de objetividade.
Capa da edição argentina de 1984,
de George Orwell (extraído de http://flavorwire.com/190248/george-orwells-1984-a-visual-history,
acesso em 20/04/2017)
No início do governo Trump, uma de suas
principais assessoras, Kellyanne Conway, utilizou a expressão “fatos
alternativos”, para apresentar a versão oficial do governo para fatos contestados
pela imprensa. Logo nas primeiras semanas de governo Trump o site de vendas Amazon registrou, na semana de 26 de
janeiro, o livro 1984, de George
Orwell (1903-1950), originalmente publicado em 1949, como primeiro lugar entre
seus best-sellers (cf. http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/26/cultura/1485423697_413624.html,
acesso em 19/04/2017). Na distopia de Orwell, uma denúncia do stalinismo, o
governo possui um Ministério da Verdade, encarregado de decidir o que é
verdadeiro e falso e transmitir (apenas o que ele decide que é verdade) à
população. O aumento nas vendas do clássico de Orwell nos EUA seria motivado
pelos paralelos que os americanos faziam entre o cenário descrito no livro e as
formas como seu novo governo tratava a ideia de verdade. Tanto no caso dos
cidadãos norte-americanos, como no contexto global mais amplo de debates nas
redes sociais e nas esferas públicas, a discussão parece ser sobre o risco de
não haver mais a possibilidade de pensarmos uma definição de verdade
socialmente aceita, baseada em critérios e regras acessíveis a todos, e
intersubjetiva, isto é, que vá além de experiências, crenças e emoções pessoais
e possa levar, inclusive, a que aceitemos fatos que contradigam nossas posições
pessoais, forçando-nos a repensá-las (ao invés de apenas aceitarmos fatos que
confirmam o que já acreditamos). Um problema semelhante ao que preocupa os
historiadores há várias décadas.
Referências
bibliográficas:
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
HARAWAY, Donna
J. “Conocimientos situados: la cuestión científica en el feminismo y el
privilegio de la perspectiva parcial”. Ciencia,
cyborgs y mujeres. La reinvención de
la naturaliza. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995, p. 313-346.
MOTA, Carlos Guilherme. Lucien Febvre. São Paulo: Editora
Ática, 1992.
VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo: Hucitec,
1997.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos