Pular para o conteúdo principal

O que é um fato histórico? “Fatos alternativos”, pós-verdade e o romance 1984

A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos trouxe à tona debates relevantes sobre as noções de verdade e fato. A recusa do então candidato Trump, em determinadas situações, de embasar suas afirmações em evidências concretas, ou de aceitar fatos comprovados, e a permanência desse comportamento no agora presidente, fazem parte, de acordo com analistas, de um cenário cada vez mais discutido atualmente, em especial nas redes sociais: a disseminação e aceitação de informações falsas.
Tal cenário baseou a escolha da “palavra do ano” do dicionário Oxford. Todo ano, o dicionário Oxford, editado pela universidade britânica de mesmo nome, elege uma palavra de destaque em língua inglesa. A palavra destacada em 2016 foi pós-verdade, que, segundo o dicionário, foi cunhada originalmente em 1992, mas teve seu uso aumentado em 2.000% no ano passado (cf. https://www.cartacapital.com.br/revista/933/a-era-da-pos-verdade, acesso em 19/04/2017). Segundo o dicionário, pós-verdade é um adjetivo definido como “relacionado ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes para moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (cf. https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016, acesso em 19/04/2017). Isto é, sobretudo nos debates políticos, as pessoas estariam menos dispostas a acreditar em argumentos que apresentam “fatos objetivos” em seu apoio, e mais em narrativas que se adequam às emoções pelas quais passam no momento (medo, insegurança, incertezas quanto ao futuro, ressentimento, orgulho) ou às suas convicções pessoais (políticas, religiosas, ideológicas).
Mas o que seriam “fatos objetivos”? O que define se podemos chamar algo de “verdade” ou não? Entre os historiadores, tais questões são de suma relevância, e fazem parte de reflexões fundamentais em Teoria da História, adquirindo importância maior nas últimas décadas do século XX, a partir dos efeitos do chamado pós-modernismo sobre a disciplina. Mas desde o início do século passado esse debate mereceu importantes considerações. Nas primeiras décadas do último século, os historiadores, vivendo um clima de renovação epistemológica geral às ciências do período, reformularam antigas crenças na objetividade de sua prática. Em particular, a ideia de que fatos históricos são elementos brutos, dados, que o historiador “extrai” de suas fontes, foi seriamente questionada. Lucien Febvre, um dos expoentes da chamada Escola dos Annales, defendia que a história, como todas as ciências, “fabrica” seu objeto, “fabrica” seus fatos. Febvre define os fatos como “ganchos” que o historiador forja, e nos quais pendura suas teorias. Para o historiador francês, o historiador escolhe, seleciona, revela seus fatos, mas essa escolha não é arbitrária. É pré-concebida, a partir de teorias e hipóteses: “sem teoria prévia, sem teoria preconcebida, não há trabalho científico possível” (MOTA, 1992, p. 106). Como apontou Carlos Alberto Vesentini, comentando o raciocínio de Febvre, “Existem, portanto, limites ao voo, à especulação” (VESENTINI, 1997, p. 88); “O fato, produto da escolha, passa por elaboração” (VESENTINI, 1997, p. 89). Fato e interpretação, nesse sentido, não estão separados: não há o fato bruto, objetivo, puro, e a interpretação do historiador sobre ele, numa fase posterior da pesquisa. O fato aparece para o historiador após um trabalho que já é de interpretação. Portanto, ao estudarmos um fato, estamos estudando também as interpretações que o fizeram chegar até nós; essas interpretações podem nos impor o fato como efetivado, bem como uma lógica de exclusão: um conjunto de outros fatos que é negado ou silenciado nesse processo de seleção e interpretação, como aponta Vesentini, estudando, em particular, a presença do fato Revolução de 1930 na memória histórica brasileira. Por isso sua ênfase em procurarmos a “teia do fato”, o emaranhado de interpretações que fazem um fato chegar até nós.
A noção do fato histórico como construção do historiador foi compartilhada e desenvolvida por vários historiadores e filósofos da história. A questão, porém, sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970, tornou-se mais delicada: se os fatos são construções dos historiadores, e não realidades objetivas em si, pode a história considerar seu conhecimento objetivo? Isto é, se temos apenas interpretações a partir de inferências, relatos de eventos, seria então o conhecimento histórico apenas um consenso provisório dos historiadores, ou seja, um conhecimento relativo? Em outras palavras, se todo o conhecimento produzido pelos historiadores se resume a interpretações, seria a capacidade de convencimento de cada interpretação o fator decisivo para sua aceitação, e não sua relação com um passado objetivo. O problema do relativismo atingiu momentos de tensão elevada, por exemplo a partir do chamado negacionismo, movimento de rejeição do Holocausto como fato histórico. Por isso, segundo Carlo Ginzburg, o “limite do relativismo é, ao mesmo tempo, cognitivo, político e moral” (GINZBURG, 2002, p. 38). O autor retoma as importantes considerações da pensadora feminista Donna Haraway, em “Conhecimentos situados”, que afirma a necessidade de buscarmos uma “ideia utilizável, mas não inocente, da objetividade” (apud GINZBURG, 2002, p. 39), que deixe para trás a recusa do relativismo em assumir a responsabilidade de uma averiguação crítica. Haraway (1995) procura uma visão crítica da ciência, que desconstrua a figura do sujeito neutro do conhecimento (de fato, o olhar do homem branco eurocêntrico), mas sem abandonar a busca por possibilidades de conhecimento objetivo.
Apresentamos aqui questões complexas, que certamente retomaremos em outras postagens de nosso blog. É importante ressaltar que pensar os fatos como construções dos historiadores não significa abandonar quaisquer critérios para determinar ou limitar tais construções. Para Ginzburg, por exemplo, o convencimento, a retórica, no trabalho do historiador, está ligada à noção de prova, e a uma manutenção, mesmo que crítica, de preceitos de objetividade.


Capa da edição argentina de 1984, de George Orwell (extraído de http://flavorwire.com/190248/george-orwells-1984-a-visual-history, acesso em 20/04/2017)

No início do governo Trump, uma de suas principais assessoras, Kellyanne Conway, utilizou a expressão “fatos alternativos”, para apresentar a versão oficial do governo para fatos contestados pela imprensa. Logo nas primeiras semanas de governo Trump o site de vendas Amazon registrou, na semana de 26 de janeiro, o livro 1984, de George Orwell (1903-1950), originalmente publicado em 1949, como primeiro lugar entre seus best-sellers (cf. http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/26/cultura/1485423697_413624.html, acesso em 19/04/2017). Na distopia de Orwell, uma denúncia do stalinismo, o governo possui um Ministério da Verdade, encarregado de decidir o que é verdadeiro e falso e transmitir (apenas o que ele decide que é verdade) à população. O aumento nas vendas do clássico de Orwell nos EUA seria motivado pelos paralelos que os americanos faziam entre o cenário descrito no livro e as formas como seu novo governo tratava a ideia de verdade. Tanto no caso dos cidadãos norte-americanos, como no contexto global mais amplo de debates nas redes sociais e nas esferas públicas, a discussão parece ser sobre o risco de não haver mais a possibilidade de pensarmos uma definição de verdade socialmente aceita, baseada em critérios e regras acessíveis a todos, e intersubjetiva, isto é, que vá além de experiências, crenças e emoções pessoais e possa levar, inclusive, a que aceitemos fatos que contradigam nossas posições pessoais, forçando-nos a repensá-las (ao invés de apenas aceitarmos fatos que confirmam o que já acreditamos). Um problema semelhante ao que preocupa os historiadores há várias décadas.

Referências bibliográficas:

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HARAWAY, Donna J. “Conocimientos situados: la cuestión científica en el feminismo y el privilegio de la perspectiva parcial”. Ciencia, cyborgs y mujeres. La reinvención de la naturaliza. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995, p. 313-346.
MOTA, Carlos Guilherme. Lucien Febvre. São Paulo: Editora Ática, 1992.
VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo: Hucitec, 1997.

Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos


Postagens mais visitadas deste blog

A perspectiva na pintura renascentista.

Outra característica da pintura renascentista é o aprimoramento da perspectiva. Vejamos como a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais se refere ao tema: “Técnica de representação do espaço tridimensional numa superfície plana, de modo que a imagem obtida se aproxime daquela que se apresenta à visão. Na história da arte, o termo é empregado de modo geral para designar os mais variados tipos de representação da profundidade espacial. Os desenvolvimentos da ótica acompanham a Antigüidade e a Idade Média, ainda que eles não se apliquem, nesses contextos, à representação artística. É no   renascimento   que a pesquisa científica da visão dá lugar a uma ciência da representação, alterando de modo radical o desenho, a pintura e a arquitetura. As conquistas da geometria e da ótica ensinam a projetar objetos em profundidade pela convergência de linhas aparentemente paralelas em um único ponto de fuga. A perspectiva, matematicamente fundamentada, desenvolve-se na Itália dos séculos XV e

"Progresso Americano" (1872), de John Gast.

Progresso Americano (1872), de John Gast, é uma alegoria do “Destino Manifesto”. A obra representa bem o papel que parte da sociedade norte-americana acredita ter no mundo, o de levar a “democracia” e o “progresso” para outros povos, o que foi e ainda é usado para justificar interferências e invasões dos Estados Unidos em outros países. Na pintura, existe um contraste entre “luz” e “sombra”. A “luz” é representada por elementos como o telégrafo, a navegação, o trem, o comércio, a agricultura e a propriedade privada (como indica a pequena cerca em torno da plantação, no canto inferior direito). A “sombra”, por sua vez, é relacionada aos indígenas e animais selvagens. O quadro “se movimenta” da direita para a esquerda do observador, uma clara referência à “Marcha para o Oeste” que marcou os Estados Unidos no século XIX. Prof. Paulo Renato da Silva. Professores em greve!