Pular para o conteúdo principal

A história vista-de-baixo e a história do povo

A preocupação de escrever uma história fora da ótica das elites motivou um grupo de historiadores britânicos no século XX a desenvolver uma abordagem que teria influência global nos estudos históricos: a história vista-de-baixo. Contando com uma já existente tradição de história popular, e refletindo sobre a escrita da história a partir do marxismo, autores como E. P. Thompson, Eric. J. Hobsbawm, Christopher Hill, Rodney Hilton, Raphael Samuel, entre outros, renovaram o estudo do povo na história.
A história do grupo tem origem no Partido Comunista Britânico, ao qual a maioria dos autores citados era filiada na primeira metade do século XX. Embora a grande maioria, com exceções como Hobsbawm, tenha deixado o partido em 1956, após a invasão da Hungria pela União Soviética, e se afastado da orientação stalinista do partido, o grupo permaneceu nas fileiras do socialismo, e pensando suas práticas historiográficas dentro do marxismo.
Mais do que uma escolha temática, uma opção de estudar as classes populares, a história vista-de-baixo oferece uma perspectiva distinta: essas classes vinham sendo estudadas, mas sob o olhar superior e condescendente das classes superiores, em grande medida determinado pelo olhar dos observadores que registraram para a posteridade a vida dessas mulheres e homens. Uma visão eivada de preconceitos de classe, que deixava soterrada no passado as formas de pensar e sentir das classes populares.
Para renovar essa visão, a história vista-de-baixo dialogou com uma tradição de história popular (ou People’s history) já existente. Peter Burke, fazendo uma breve história da história popular, identifica seu surgimento no final do século XVIII. Para Burke, desde meados do século (por exemplo, com o Ensaio sobre os costumes, de Voltaire), o estudo sobre a vida cotidiana e popular começa a aparecer. No fim do Setecentos teria surgido, com o pensador alemão Johann Gottfried Herder (1744-1803), a ideia de “cultura popular”, que se propagará, disseminando os estudos sobre o “folclore”; no mesmo período, também na Alemanha, destaca-se a obra dos irmãos Grimm.  Ainda segundo a investigação de Burke, no início do século XIX surgem as primeiras histórias com a palavra “povo” no título, como a History of the Swedish people [História do povo sueco], de E. G. Geijer, e a History of the Czech people [História do povo tcheco], de Palacky (ambos os autores, na juventude, teriam se dedicado a recolher canções tradicionais por seus países). Estas obras, segundo Burke, inserem-se nos “movimientos de autodescubrimiento nacional de principios del siglo XIX” (BURKE, c. 1984, p. 73).  As obras de história, neste século, passam a conter capítulos em que o autor dá “o estado do povo”, ou “o estado do país”: uma apreciação da vida social e econômica do país estudado, e uma descrição do povo, das classes sociais que o compunham e sua vida cotidiana.

Capa da primeira edição de A formação da classe operária inglesa, de Edward Thompson (extraído de http://www.andrewwhitehead.net/blog/the-enormous-condescension-of-posterity, acesso em 09/05/2017). A ilustração da capa faz referência ao massacre de Peterloo (em Manchester, 1819), onde quinze pessoas morreram e centenas ficaram feridas após a cavalaria avançar sobre manifestantes que demandavam reformas no sistema eleitoral inglês

Dentro da historiografia social marxista britânica, A formação da classe operária inglesa (primeira edição, 1963), de E. P. Thompson, tornou-se referência obrigatória na bibliografia da história vista-de-baixo. Estudando o período de 1780 a 1832, Thompson examina a experiência social da classe trabalhadora inglesa nos anos da Revolução Industrial, suas formas de organização e mobilização. Ao focar na experiência como categoria central de sua análise, Thompson chama a atenção para a forma como os trabalhadores viveram os anos de profunda transformação social por que passou a Inglaterra entre o fim do século XVIII e o início do século XIX. Dessa maneira, seu conceito de classe social não é uma definição sociológica adequada para o estudo de uma sociedade estática, mas é baseado na forma como os próprios trabalhadores passam a se ver a partir de um conjunto de experiências que os aproxima como coletividade, e estabelece seu antagonismo em relação a outra classe (a burguesia) – por isso, a noção de classe social nunca poderia vir desacompanhada da noção de luta de classes. Desse modo, para Thompson, classe social é definida por homens e mulheres “enquanto vivem sua própria história” (THOMPSON, 1987, p. 12). Assim, o estudo da classe social deve ser histórico, o estudo desse “viver a história” dos sujeitos que buscamos. O objetivo de Thompson era resgatar a história desses sujeitos e suas lutas “dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade”, a partir da concepção de que suas “aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência” (THOMPSON, 1987, p. 13).
A obra de Thompson, embora muito influente, recebeu também críticas relevantes. O pouco espaço dedicado às mulheres na obra foi, talvez, a principal delas. No âmbito conceitual, Joan Scott produziu importante revisão do conceito de experiência (SCOTT, 1998). Os Estudos Subalternos, também em parte inspirados pela história vista-de-baixo, mantiveram, entretanto, postura crítica em relação à manutenção de uma narrativa emancipatória das classes populares eminentemente eurocêntrica. Essa narrativa é observável na própria obra de Thompson, na ideia de que o que a Inglaterra viveu na Revolução Industrial seria, grosso modo, semelhante ao que outros países em processo de industrialização poderiam experimentar (“Causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas na Ásia ou na África”; THOMPSON, 1987, p. 13). A universalização da experiência europeia e da narrativa da industrialização foi problematizada por estudiosos da América Latina, África, Ásia, e mesmo partes da Europa e América do Norte.
Entre possibilidades e limitações, a história vista-de-baixo teve grande impacto na historiografia ao redor do mundo, e ainda oferece muito aos historiadores que buscam pensar as classes populares a partir de sua própria ótica.

Referências bibliográficas:
BURKE, Peter. “Historia popular o historia total”. In: SAMUEL, Raphael (ed.). Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Editorial Crítica, c1984.
SCOTT, Joan W. “A invisibilidade da experiência”. Projeto História, São Paulo, 16, fev. 1998, p. 297-325.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos

Postagens mais visitadas deste blog

A perspectiva na pintura renascentista.

Outra característica da pintura renascentista é o aprimoramento da perspectiva. Vejamos como a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais se refere ao tema: “Técnica de representação do espaço tridimensional numa superfície plana, de modo que a imagem obtida se aproxime daquela que se apresenta à visão. Na história da arte, o termo é empregado de modo geral para designar os mais variados tipos de representação da profundidade espacial. Os desenvolvimentos da ótica acompanham a Antigüidade e a Idade Média, ainda que eles não se apliquem, nesses contextos, à representação artística. É no   renascimento   que a pesquisa científica da visão dá lugar a uma ciência da representação, alterando de modo radical o desenho, a pintura e a arquitetura. As conquistas da geometria e da ótica ensinam a projetar objetos em profundidade pela convergência de linhas aparentemente paralelas em um único ponto de fuga. A perspectiva, matematicamente fundamentada, desenvolve-se na Itália dos séculos XV e

"Progresso Americano" (1872), de John Gast.

Progresso Americano (1872), de John Gast, é uma alegoria do “Destino Manifesto”. A obra representa bem o papel que parte da sociedade norte-americana acredita ter no mundo, o de levar a “democracia” e o “progresso” para outros povos, o que foi e ainda é usado para justificar interferências e invasões dos Estados Unidos em outros países. Na pintura, existe um contraste entre “luz” e “sombra”. A “luz” é representada por elementos como o telégrafo, a navegação, o trem, o comércio, a agricultura e a propriedade privada (como indica a pequena cerca em torno da plantação, no canto inferior direito). A “sombra”, por sua vez, é relacionada aos indígenas e animais selvagens. O quadro “se movimenta” da direita para a esquerda do observador, uma clara referência à “Marcha para o Oeste” que marcou os Estados Unidos no século XIX. Prof. Paulo Renato da Silva. Professores em greve!