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Utopias e distopias: histórias do futuro

Pensamos, na última postagem, na construção de narrativas sobre o passado realizadas por historiadores. Na postagem de hoje voltaremos nossa atenção para narrativas sobre o futuro: utopias (a imaginação de um futuro melhor) e distopias (o vislumbre de um futuro pior para a humanidade), presentes na literatura e em obras diversas de ficção científica, como filmes, séries e livros. O que nossas histórias sobre o futuro revelam sobre nosso presente? Como pensar essas obras enquanto documentos históricos, testemunhos de seus contextos de produção?
O teórico e crítico cultural britânico Raymond Williams (1921-1988) pensou a relação entre a literatura utópica/distópica e a ficção científica no texto “Utopia e ficção científica” (publicado originalmente em 1979). Williams, teórico marxista e um dos pioneiros dos Estudos Culturais, acreditava ser possível distinguir quatro tipos básicos de ficção utópica/distópica:

(a) o paraíso, no qual uma vida mais feliz é descrita como simplesmente existente em outro lugar; (b) o mundo alterado externamente, no qual um novo tipo de vida torna-se possível graças a um acontecimento natural inesperado; (c) a transformação almejada, na qual um novo tipo de vida é alcançado pelo esforço humano; (d) a transformação tecnológica, na qual um novo tipo de vida torna-se visível graças a uma descoberta técnica (WILLIAMS, 2011, p. 267).

Por correspondência, a partir das categorias da utopia, poderíamos pensar a literatura distópica: (a) um inferno encontrado em outra parte do mundo; (b) um tipo de vida menos feliz que surge de um acontecimento natural inesperado; (c) um tipo de vida menos feliz que surge pela degeneração social; e (d) uma deterioração das condições de vida causada pelo desenvolvimento tecnológico. Segundo Williams, as modalidades utópicas e distópicas características estariam presentes nas duas últimas categorias (“a transformação tecnológica” e “a transformação almejada”). Essas generalizações nos permitem pensar a alteridade, o novo mundo que é contraposto ao presente, e as formas de transformação que levam a ele. Estas últimas podem revelar muito das ansiedades e expectativas de uma época: os medos e esperanças em relação a projetos de transformação social, ou aos avanços tecnológicos que vivenciamos. Ou, como aponta Williams, “Não podemos abstrair o desejo” (WILLIAMS, 2011, p. 274); desejos, expectativas, medos, expressos nesses obras devem ser analisados no contexto histórico em que as obras se inserem (seja o contexto de produção, seja o contexto de recepção). Nesse sentido, Williams analisa algumas obras utópicas e de ficção científica, como Notícias de lugar nenhum (1890), de William Morris, e Os despossuídos (1974), de Ursula K. Le Guin.

Capa de Os despossuídos, de Ursula K. Le Guin, obra analisada por Raymond Williams em “Utopia e Ficção Científica”. Extraído de http://io9.gizmodo.com/5607981/ursula-le-guins-the-dispossessed-when-you-want-to-like-a-book-but-dont, acesso em 30 de junho de 2017.

As potencialidades de estudar características de nosso presente (como a forma pela qual vivenciamos o tempo) por meio da ficção científica é explorada em estudo recente dos professores Mateus Henrique de Faria Pereira e Valdei Lopes de Araujo (ambos da Universidade Federal de Ouro Preto). No artigo “Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital” (2016), os autores trabalham a experiência contemporânea do tempo analisando, entre outras fontes, um episódio da série de ficção científica Black Mirror. A forma como pensamos o futuro pode dizer muito sobre nosso presente, e sobre como imaginamos o processo histórico, isto é, como as transformações históricas podem ocorrer, e em que direção elas podem nos levar.
Como nosso post anterior, o texto de hoje também remete às discussões ocorridas no âmbito das disciplinas de Teoria da História oferecidas pelo curso de História – América Latina para os cursos de História e Letras, Artes e Mediação Cultural (LAMC), devendo muito à participação dos estudantes das disciplinas nos debates ocorridos em sala.

Referências bibliográficas:

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de. “Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital”. Rev. UFMG, Belo Horizonte, v. 23, n. 1 e 2, p. 270-297, jan./dez. 2016.
WILLIAMS, Raymond. “Utopia e Ficção Científica”. In: Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos

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