Segundo Michel de Certeau, “Em história,
tudo começa com o gesto de selecionar,
de reunir, de, dessa forma, transformar em ‘documentos’ determinados objetos
distribuídos de outra forma”. Essa tarefa consiste em “produzir tais documentos”, “em ‘isolar’ um corpo”, formando uma “coleção”
(CERTEAU, 1976, p. 30, grifos no original). Para Certeau, o primeiro ato do que
chama de operação histórica, a
produção do conhecimento em história, é a formação de um conjunto de fontes por
parte do historiador. Certeau compreende que o historiador “produz” suas fontes
porque estas não existem em si; isto é, um registro do passado, um artefato,
não é por si só uma fonte para o historiador. Depende do gesto deste último,
que retira os artefatos de seu circuito original, separa-os e denomina-os arquivos. Seus questionamentos farão o
arquivo falar, constituindo-os com fontes para o problema que move a
pesquisa do historiador.
Indo além da prática de historiadores, em
particular, como podemos pensar a constituição de arquivos públicos, de uso geral? Pois o historiador não necessita das fontes apenas para
si, mas para submeter seus escritos à aceitação mais ampla. A historiografia,
em sua prática moderna (especialmente a partir do século XIX), se baseia (ao
menos em teoria) na ideia de uma esfera pública (conceito do filósofo alemão
Jurgen Habermas). A existência de um espaço público que permita o acesso aos
leitores dos textos de história das mesmas fontes de que se valeram os
historiadores que os escreveram é essencial para a historiografia moderna. Ao
menos teoricamente, o leitor não tem obrigação de acreditar no que encontra nos
textos de história apenas fiando-se no historiador como autoridade, mas pelo
fato de que poderá verificar, com seus próprios olhos, as fontes utilizadas
pelo historiador. Como, então, se constituiriam os arquivos públicos essenciais
para a prática da história, tanto para sua escrita como para sua leitura?
Segundo o historiador indiano Dipesh
Chakrabarty (2015), duas forças sociais, em linhas gerais, comandam esse
processo: o Estado e o mercado. Os Estados, em especial a partir do século XIX,
assumem a tarefa de tomar para si documentos particulares e guardá-los em
instituições públicas, sob a alegação de que passam a ser registros de
interesse público, necessários à preservação da memória e à escrita das
histórias nacionais. Por outro lado, o mercado emerge, mais ou menos no mesmo
período, como força constituidora dos arquivos modernos. Surge um mercado de
livros raros e documentos antigos, que transforma esses artefatos em objetos de
desejo para colecionadores, que passam a pagar, às vezes, preços altos por eles.
Como aponta Chakrabarty, os arquivos modernos são instituições ao mesmo tempo
democráticas e autoritárias: por um lado, disponibiliza-se para o grande
público um conjunto de registros do passado; por outro, artefatos particulares
passam a ser tomados de seus proprietários originais, e têm seu estatuto alterado
(perdem o sentido original que possuíam nos domínios privados, e passam a ser fontes, arquivos).
Chakrabarty faz
observação para o caso da escrita da história na Índia, que pode ser
interessante para pensar a formação dos arquivos no Brasil e outros países da
América Latina: o modelo europeu de uma esfera
pública, burguesa, não necessariamente se aplica a outros países. Nesses
casos, a formação dos arquivos se deu em meio a uma relação entre público e
privado distinta, na qual muitas vezes os historiadores faziam-se
colecionadores, e guardavam para si documentos históricos cujo acesso deveria
ser público. A essas peculiaridades se soma também a difícil relação do poder público com os arquivos.
O
Archivo General de la Nación, em Buenos Aires (extraído de http://www.eldiariodebuenosaires.com/2017/03/16/%F0%9F%97%84-investigadores-historiadores-y-organizaciones-piden-que-el-gobierno-no-destruya-documentos-historicos/, acesso em 13 de julho de 2017)
Os arquivos públicos possuem várias outras
funções sociais além de servirem à escrita da história. No caso desta última, a
formação e uso dos arquivos remetem ao caráter público da historiografia, à
transparência na relação entre o historiador e seus leitores, no que concerne a
verificação do que é dito por meio das fontes. A preservação dos arquivos, em
suas características originais, é essencial para a memória e história das
sociedades. Atualmente, no Brasil, discute-se justamente um projeto de lei, o
PLS 146/2007, que prevê a destruição de documentos físicos após sua
digitalização. No início deste ano, debate sobre a destruição de documentos
históricos também mobilizou pesquisadores e historiadores argentinos (cf. http://www.eldiariodebuenosaires.com/2017/03/16/%F0%9F%97%84-investigadores-historiadores-y-organizaciones-piden-que-el-gobierno-no-destruya-documentos-historicos/,
acesso em 13 de julho de 2017). Tais discussões colocam um debate essencial a
respeito das políticas nacionais de preservação de arquivos.
Referências
bibliográficas
CERTEAU, Michel de. “A operação histórica”.
In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História:
Novos Problemas. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 17-48.
CHAKRABARTY,
Dipesh. The Calling of History: Sir Jadunath Sarkar
ad his Empire of Truth. Chicago: University of Chicago, 2015.
Prof. Pedro Afonso
Cristovão dos Santos