Sujismundo ou como a ditadura nos olhava: o autoritarismo e a associação entre povo, sujeira e doenças
Retomamos as postagens do Blog de História da UNILA em 2018 com post do prof. Paulo Renato, a respeito de campanha de higiene da Ditadura Militar brasileira dos anos 1970, que muito nos revela acerca das visões daquele regime sobre o povo. Boa leitura!
Em tempos de intervenção militar no Rio de Janeiro e de
pré-campanha eleitoral na qual candidatos e eleitores expressam o seu
saudosismo pelos tempos da ditadura no Brasil, cabe lembrar que a visão
autoritária dos militares sobre o povo brasileiro se manifestava inclusive
sobre práticas simples do cotidiano. Conforme destacam Maria Hermínia Tavares
de Almeida e Luiz Weis, nos “(...) regimes de força, os limites entre as
dimensões pública e privada são mais imprecisos e movediços do que nas
democracias” (ALMEIDA; WEIS, 1998, p. 327).
Um exemplo dessa visão autoritária pode ser vista em
Sujismundo, personagem patrocinado pela ditadura na década de 1970. Sujismundo
foi para as telas da televisão e até mesmo dos cinemas para “educar” o povo
brasileiro quanto à limpeza de ambientes, higiene pessoal e prevenção de
doenças. Pode-se argumentar que seria uma questão de saúde pública e que os
militares teriam sido movidos pelas melhores intenções. Contudo, cabe prestar
bastante atenção nos vídeos de Sujismundo reunidos a seguir:
Sujismundo é sempre o culpado pelos seus atos e pelos
problemas que causa aos que estão e vivem ao seu redor. Parece viver em um
mundo ideal, onde todos teriam educação, saúde, trabalho, transporte e as ruas
seriam limpas – se não fosse o Sujismundo, claro! A poluição dos rios seria
culpa “das pessoas” que os sujariam e o grande problema seriam os “Sujismundos”
que tomariam banho neles – vale recordar que o “progresso” da ditadura aumentou
bastante os nossos problemas ambientais, mas é claro que não há uma única
palavra sobre isto nas histórias de Sujismundo. E, segundo o Dr. Prevenildo, os
que não teriam acesso à saneamento básico poderiam facilmente resolver este
problema construindo fossas por conta própria. O autoritarismo se manifesta
quando um governo se isenta de responsabilidades pelos problemas de sua
sociedade e tenta culpar grupos sociais específicos ou indivíduos que seriam
representantes destes grupos. Porém, no caso de Sujismundo, o discurso
autoritário se esconde, por exemplo, no discurso “científico” do Dr.
Prevenildo. Sidney Chalhoub, ao analisar o discurso higienista no Brasil na
segunda metade do século XIX e início do XX, destaca que o “(...) mais trágico
em toda essa história é que a alegação de 'cientificidade' (…) traz sempre em
seu cerne a violência contra a cidadania. Se os administradores (…) são eles
próprios governados por imperativos ditos 'científicos' (…), não há o que
negociar com os cidadãos, essa massa de ignorantes portadores de todos os vícios
(…).” (CHALHOUB, 1996, p. 58). O “não há o que negociar” se manifesta quando
Sujismundo é retratado como indiferente à insatisfação daqueles que estão ao
seu redor, quando é alvo de chacota ou, ainda, no episódio em seu ambiente de
trabalho, quando é colocado para trabalhar dentro da lixeira pelo seu chefe –
por isso não era chefe e nunca o seria. Eram anos de industrialização e
interessava à ditadura formar uma mão-de-obra sadia, disciplinada e produtiva.
É claro que essa associação entre povo e sujeira já existia
antes da ditadura e continua existindo sob formas variadas. Uma variação dessa
imagem é a que associa os mais pobres à violência, como estamos vendo com
frequência atualmente. É um discurso elitista que tem o objetivo de legitimar
hierarquias e exclusões sociais, como se essas práticas não estivessem
presentes em diferentes grupos sociais. Entretanto, a ditadura potencializou a
difusão dessas imagens pejorativas sobre o povo ao coibir com particular
intensidade a livre manifestação daqueles que eram e são vítimas desses
discursos preconceituosos.
Referências bibliográficas.
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-Zero e
Pau-de-Arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes
da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 4.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias
na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Prof. Paulo Renato da Silva