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Tensões na região da Fronteira Trinacional: Modernidade, Desenvolvimento e Memória


Medalha contendo imagem da estátua do "Homem de Aço", homenagem aos barrageiros de Itaipu. Imagem extraída de http://www.tudorleiloes.com.br/peca.asp?ID=3334165&ctd=8&tot=&tipo=, acesso em 19 de julho de 2018

Vivemos em uma sociedade que transborda conflitos e tensões, esses ainda estão presentes e se manifestam ao longo de nossa história e memória, dialogando diretamente com as historicidades dos indivíduos. O passado é fruto de construções e reconstruções, perpassa por aspectos políticos, culturais, sociais, econômicos e identitários. Portanto, no caso da Fronteira Trinacional a história não se mostra diferente. Palco de disputas territoriais entre Argentina, Brasil e Paraguai.
Conforme definido por Souza (2017, p.41) a região foi habitada somente por indígenas até 1880, e em meados de 1881, o lado brasileiro passou a receber os colonos pioneiros que exploravam a erva-mate, posteriormente, por volta de 1889 foi construída uma Colônia Militar, com o intuito de firmar posse desse território estratégico que aparentava ter sido esquecido pelo governo brasileiro, também auxiliando contra supostas invasões de estrangeiros. Evidentemente o processo de colonização da região não se deu de modo pacífico, senão, marcado por resistências e confrontos entre posseiros, fazendeiros e indígenas. É válido ressaltar que os nativos são vítimas deste avanço da modernidade, porém, são também participantes do processo de colonização. Pensemos o convívio com os jesuítas nas chamadas missões jesuíticas, com cunho civilizador e evangelizador. Assim como o contato com Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, considerado o “primeiro” espanhol a conhecer e descrever as Cataratas do Iguaçu.
O rio Paraná e o rio Iguaçu são descritos e associados ora ao belo, ao “natural”, ora são implacáveis, inavegáveis e cruéis, porém, o que se sobressai da modernidade é a dominação da natureza, dos recursos naturais pela cultura. As narrativas referentes à relação entre ser humano e natureza, afloram a partir de um imaginário alimentado por interesses de pequenos grupos da sociedade, e conforme esses interesses mudam, as narrativas se transformam para se legitimar. Neste sentido, atualmente as cataratas são identificadas como patrimônio natural da humanidade, me pergunto o que essa classificação representa, como se converte em lucro e favorece setores comerciais, hoteleiros, entre outros.
De acordo com o historiador francês Dominique Poulot (2008, p.32) a ideia de patrimônio tem por objetivo atestar a identidade e afirmar valores, não obstante, “o turismo, com a importância das oportunidades econômicas que mobiliza, faz da interpretação do patrimônio, e mesmo de sua simulação, um instrumento muitas vezes decisivo para o desenvolvimento local.” (POULOT, 2008, p.26)
Se por um lado,

[...] o fascínio dos humanos sobre a natureza os fez constituir profundas relações de dependência, respeito e admiração entre eles e Ela, por outro, o desejo de entendê-La também se traduz num profundo anseio por dominá-La (KARPINSKI, 2011, p.133).

De fato, o ser humano depende da natureza para sua sobrevivência, mas passou a transformar, controlar e regular sua relação com ela. Posto que, em um determinado momento histórico, traçado pela modernidade e em prol de seu desenvolvimento, o trabalho se tornou primordial para tal transformação, controle e regulação.
Nesta perspectiva, a sociedade moderna para garantir seu desenvolvimento, seu progresso, também se utiliza de signos para reforçar e atingir seus ideais, isso é evidenciado nas fotografias apresentadas na dissertação de Solange Portz, em que analisa o conjunto das relações sociais presentes na documentação fotográfica do “Plano de Colonização” do Oeste do Paraná,  pela Indústria Madeireira e Colonizadora Rio Paraná S/A – MARIPÁ em 1955. Alguns signos retratados e enaltecidos a partir da ótica do trabalho são as figuras do trator de esteira, caminhões e barcos que transportavam madeira. Ou seja, “a potência do motor, sua agressividade, sua forma com traços fortes são sinais de superioridade e de domínio; expressão de virilidade, um meio de conquista e de satisfação, um símbolo da transformação através do trabalho” (PORTZ, 2002, p.78). A empresa se encarregou de construir uma identidade ao povo do Oeste do Paraná nos moldes da modernidade, “tendo como base a implantação da ciência e da tecnologia, na fé e no progresso, os recém-chegados à região nutriam-se de um sentimento de pertencimento a ela” (PORTZ, 2002, p.86).
Uma sociedade planejada para o futuro, desenhada para se estabelecer e se desenvolver a qualquer custo, mas em que implica a garantia de seu desenvolvimento para o futuro? Pensemos o contexto do regime ditatorial brasileiro que buscava implementar o crescimento industrial do país, mas para alcançar esse crescimento seria necessário assegurar o fornecimento de energia, assim, esses interesses levaram à construção da hidroelétrica de Itaipu.
E esse processo de construção levou muitos operários a óbito, pessoas a perderem seus lares, e sua identidade com a região. Como também territórios indígenas e milhares de hectares da natureza desapareceram numa gigantesca inundação, como exemplo a das Sete Quedas, que era a principal atração e fonte de renda do município de Guaíra. Em suma, o fato é que o impacto ambiental e social é imenso, e para garantir o progresso, é necessário passar por cima de tudo que se opor a este processo, desprezando populações, costumes, cultura, identidades, valores locais e a memória.

O processo de escolha dos elementos para compor a memória oficial da usina implicou no silenciamento dos debates e negociações que Itaipu enfrentava no início das obras, em desvincular a imagem da hidrelétrica projetada e iniciada durante os governos militares, que ao seu final estava associado a um período de recessão e crise, associando sua imagem em proporcionar o desenvolvimento econômico do país com o fornecimento energético estabelecido num governo democrático (MANARIN, 2008, p.140).

Nessa conjuntura, é possível afirmar que a natureza foi ressignificada em prol de satisfazer os anseios governamentais de crescimento econômico. A memória também é ressignificada, posto que, segundo Odirlei Manarin (2008, p.140) atualmente a Itaipu traz programas de “responsabilidade social”, para a comunidade local e região, promovendo a ideia de um bem-estar social de quem vive em sua área de influência. Cria-se uma memória oficial construída e fundamentada no discurso da administração da hidrelétrica que vai na contramão da memória de muitos operários que ali trabalharam. A usina simplesmente reelabora sua memória para legitimar e justificar sua própria existência e seus impactos em todos os aspectos sobre nossas vidas.

Referências Bibliográficas:

KARPINSKI, Cezar. Navegação, Cataratas e Hidrelétricas: discursos e representações sobre o Rio Iguaçu. 2011. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis. p. 133-229.

MANARIN, Odirlei. Peões da Barragem: memórias e relações de trabalho dos operários da construção da hidrelétrica de Itaipu (1975-1991). 2008. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Marechal Cândido Rondon. p. 92-137.

PORTZ, Solange. As Paisagens da Memória: um estudo sobre as fotografias do plano de colonização da empresa Maripá (1946-1955). 2002. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói. p. 58-97.

POULOT, Dominique. Um olhar contemporâneo sobre a preservação do patrimônio cultural material. Organização: Cláudia S. Rodrigues Carvalho, Marcus Granato, Rafael Zamorano Bezerra, Sarah Fassa Benchetrit. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008. P. 24 – 43.

SOUZA, Rafaela Cristina Silva de. As Comunidades Árabes Muçulmanas de Foz do Iguaçu no Contexto de Securitização da Tríplice Fronteira: uma perspectiva analítica da construção social de ameaças. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos – IELA) – Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), 2017, Foz do Iguaçu.

Texto: Tarcísio Moreira de Queiroga Júnior. Graduando do curso de História Licenciatura pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana.

Revisão: Pedro Afonso Cristovão dos Santos



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