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200 anos do nascimento de Karl Marx, 130 anos da Abolição da Escravatura: datas históricas, momentos de comemoração e reflexão

2018 é o ano de celebração do bicentenário de nascimento de Karl Marx (1818-1883). É também o ano que marca os cinquenta anos das manifestações de Maio de 1968, na França, da Primavera de Praga, na então Tchecoslováquia, e da violenta repressão às manifestações estudantis na Praça das Três Culturas, Tlatelolco, na Cidade do México. Completam-se cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial, cento e trinta anos do fim da escravidão no Brasil, e setenta anos da fundação do estado de Israel e da Nakba (a “catástrofe”), o êxodo de palestinos expulsos de suas casas em 1948.
O estudo da história foi, em certas épocas, marcado pela importância das efemérides, datas consideradas significativas em razão de acontecimentos políticos, sociais ou artísticos dignos de formar uma cronologia nacional ou mundial. O ensino de história acentuava a importância da memorização dessa cronologia pelos estudantes, parte de uma educação cívica nacionalista que reforçava os momentos de comemoração de eventos específicos da história nacional, dispostos pelo calendário oficial em feriados e datas cívicas.
No entanto, as disputas simbólicas em torno de datas consideradas históricas retoma a importância da cronologia de sua função de preencher o “tempo homogêneo e vazio” da história, como Walter Benjamin descreveu o tempo histórico burguês do século XIX e início do XX (BENJAMIN, 1987, p. 229). As datas tornaram-se espaços de comemoração e reavaliação de eventos e ideias considerados cruciais para nossa cultura e atualidade, formadores de nossas identidades históricas. Quando pensamos em comemoração, não queremos com isso dizer celebração, mas o ato de rememorarmos juntos, co-memorarmos uma lembrança comum.

Estátua de Marx em Trier, Alemanha: imagem em https://www.dw.com/en/karl-marx-statue-unveiled-in-trier-for-200-anniversary-celebrations/a-43674334, acesso em 14 de agosto de 2018

O caso do bicentenário natalício de Karl Marx trouxe debates interessantes a esse respeito. O ano de 2018 tem sido repleto de eventos acadêmicos pelo mundo, discutindo o legado e a atualidade do pensamento marxista nos dias de hoje (como o colóquio “Karl Marx – 200 anos”, realizado em 19 de junho na UNILA). Na cidade natal do autor de O Capital, Trier, na Alemanha, a exposição de uma estátua de cerca de 4.4 metros do pensador causou controvérsia. A estátua foi presente da República Popular da China, e cerca de 150 mil chineses visitam a cidade todo ano para conhecer o lugar de origem do pensamento no qual, teoricamente, se baseia o Estado chinês atual (informações em http://www.latimes.com/world/europe/la-fg-germany-marx-2018-story.html#, acesso em 9 de agosto de 2018). A cidade, localizada na antiga Alemanha Ocidental, não poderia pensar em estampar a figura de Marx com tanto desembaraço há apenas trinta anos, quando o país e o mundo ainda viviam sob as determinações e condicionamentos da Guerra Fria. Na Alemanha, vítimas e/ou familiares de vítimas de perseguição pelo regime comunista da Alemanha Oriental criticaram as celebrações. Nas comemorações locais, Marx é assumido, de certa forma, sem o marxismo; sua transformação em ícone pela cidade o inscreve num circuito turístico que faz de sua imagem uma importante mercadoria para Trier, servindo de mote para souvenirs vendidos por comerciantes da cidade. Por outro lado, a crise econômica de 2008 e suas consequências trouxeram novamente à tona a relevância do pensamento marxista, despertada pelo confronto com os limites e problemas estruturais do capitalismo.

Obras da exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, expostas no MASP: imagem em https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas, acesso em 14 de agosto de 2018

No Brasil, a rememoração dos 130 anos da Abolição da Escravatura (em 13 de maio de 1888, por meio da chamada “Lei Áurea”), trouxe questionamentos a respeito da data como marco de um novo momento nas relações raciais no país. Isto é, a Abolição significou de fato a conquista, para os negros, da cidadania plena no Brasil? Os altos índices de jovens negros assassinados no Brasil todo ano, bem como a incidência do desemprego sobre a população negra, e os casos de racismo observados cotidianamente (muitos deles não registrados em boletins de ocorrência) apontam para uma resposta negativa. Assim argumenta, por exemplo, a antropóloga Lilia Schwarcz, (cf. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/05/nao-ha-motivo-para-celebrar-os-130-anos-da-lei-aurea-diz-antropologa.shtml, acesso em 9 de agosto de 2018). A antropóloga faz parte da curadoria da exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, no MASP e Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, que apresenta obras artísticas retratando relações raciais ao longo de vários séculos.
Quando pensamos, pois, nas datas como recursos de memória, desencadeadores de comemorações, não pensamos apenas no aspecto de celebração, ou exaltação, que um marco pode despertar. O que observamos nos momentos de lembrança coletiva são espaços para reflexão e avaliação de heranças, legados e atualidades. Cada geração, ou época, pode trazer novas interpretações e significados para uma obra intelectual, marco político ou evento. Novas vozes somam-se ao debate, ampliam o coletivo que relembra em conjunto, e recuperam as datas não como artifícios de memorização da história, mas como exercícios de olhar para o passado com os olhos do presente. Localizando, assim, a história como o passado que não passou, vivo ainda entre nós.

Referências

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-234.
KIRSCHBAUM, Erik. “Karl Marx is turning 200, and that's creating a stir in Germany, which was literally divided over his ideas”, http://www.latimes.com/world/europe/la-fg-germany-marx-2018-story.html#, acesso em 9 de agosto de 2018.
SCHWARCZ, Lilia. “Não há motivo para celebrar os 130 anos da Lei Áurea, diz antropóloga”, https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/05/nao-ha-motivo-para-celebrar-os-130-anos-da-lei-aurea-diz-antropologa.shtml, acesso em 9 de agosto de 2018.

Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos


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