Este texto analisa alguns trechos da obra Comentarios Reales de los Incas de Gómez Suárez de Figueroa (1539-1616), também popularmente conhecido como Inca Garcilaso de la Vega. Narro aqui, o ponto de vista do autor acerca da sociedade peruana, as percepções e discursos que ele, como mestiço, possuiu durante o processo colonizatório que estava em andamento na história do Peru. Alguns enfoques dados pelo autor envolvem a análise do conjunto de indivíduos que habitavam esta região, sua condição de bárbaros e a ausência de estratos sociais que auxiliassem o progresso ou evolução dos ditos povos. Acima de qualquer aspecto, se aponta o modo de considerar necessária a transição do culto de “seres inferiores”, para a substituição pelo cristianismo e a influência exercida decisivamente pelos incas sobre os outros povos, através do domínio soberano de seu Império.
Em sua narrativa é resgatada uma espécie de “pré-história” do Peru, que ocorre em uma trajetória linear a partir dos costumes e culturas que antecederam os incas, enfatizando a maneira pela qual se relacionavam com suas divindades e o caráter idolátrico que as mesmas possuíam. Categorizam-se os cultos mais simples e com direta veneração à natureza, animais, astros e objetos como inferiores; e paralelamente se mostra a Antiguidade greco-romana em uma posição elevada e com a forma aparentemente “mais desenvolvida” de estabelecer contato com a sua espiritualidade:
“Y así vinieron a tener tanta variedad de dioses y tantos que fueron sin número, y porque no supieron, como los gentiles romanos, hacer dioses imaginados como la Esperanza, la Victoria, la Paz y otros semejantes, porque no levantaron los pensamientos a cosas invisibles, adoraban lo que veían, unos a diferencia de otros, sin consideración de las cosas que adoraban, si merecían ser adoradas, ni respeto de sí propios, para no adorar cosas inferiores a ellos; sólo atendían a diferenciarse éstos de aquéllos y cada uno de todos.” (INCA GARCILASO DE LA VEGA. 1976. p. 27.)
Essa progressão é utilizado por Inca Garcilaso para exemplificar duas épocas bem específicas na história do Peru: o antes do Império Inca, e a chegada dos espanhóis. O antes é caracterizado pela barbárie, ausência de capacidade de raciocínio pelo mundo ao redor, desordem. E o Império Inca, sendo a ferramenta civilizatória, é o auge para todas sociedades incorporadas a ele durante tal período. Esta incorporação, segundo ele, permitiu a cristianização dos povos originários posteriormente.
Thaynã Junio Pascini dos Santos, discente do curso de História da América Latina.
Retrato do Inca Garcilaso de la Vega, Casa del Inca, Montilla, (Córdoba, Espanha). (Extraído de https://pt.wikipedia.org/wiki/Inca_Garcilaso_de_la_Vega, acesso em 05/04/2018)
É interessante investigar a maneira que ele torna próximo o Império Inca da Espanha, formando no seu imaginário uma ideia de hierarquização entre esses agrupamentos de pessoas que viviam em um mesmo território de maneira dinâmica e complexa, e inseridos numa lógica de Estado tributário semelhante ao que se via na Europa. Além da relação feita entre estas coisas, e também as analogias entre os incas e cristãos, notam-se conflitos de identidade na figura do Inca Garcilaso que são expressos no decorrer de seu texto. Seu livro é dedicado aos incas na primeira parte, e a segunda à conquista espanhola. Seria esse caráter ambíguo uma tentativa de reconciliar vencedores e vencidos? Um possível indício desta consideração seria tanto o orgulho nacional, como o orgulho mestiço.
Acredito que seja impossível concluir, mesmo que uma breve análise textual como a desempenhada aqui, sem mencionar a importância que há na escrita da História e a contribuição que a Literatura proporciona. Devido às características bem tendenciosas que cada relato histórico pode demonstrar, o distanciamento temporal torna impraticável o conhecimento absoluto da verdade, fazendo com que o exercício contínuo da reescrita cumpra a função de produzir uma narrativa cada vez mais efetiva. Uma contínua investigação por novos esclarecimentos torna-se um dos traços mais particulares na escrita da História. E isto não significa, é claro, que a Literatura seja isenta de verdades pois há uma verdade literária que é diferente da verdade histórica. Enquanto esta tem o vínculo da documentação, a verdade literária tem ligação com entender o mundo descrito. A verdade literária difere da histórica pois a Literatura consegue mostrar incoerências e nuances do comportamento humano que o historiador tende a não conseguir apontar. Nesta crônica da conquista, espero ter dialogado com certa pertinência em alguns dos pontos que tornaram essa obra tão amplamente conhecida, como também criticada. Fama devida à maneira como ela impactou o subconsciente de uma população em períodos posteriores à sua publicação, e como sua contribuição para a historiografia e literatura auxiliou na compreensão de construções sociais ao longo dos tempos.
Referências
INCA GARCILASO DE LA VEGA. 1976. Comentarios Reales de los Incas. Prólogo,
edición y cronología de Aurelio Miró Quesada. 2 tomos. Caracas: Biblioteca
Ayacucho.Thaynã Junio Pascini dos Santos, discente do curso de História da América Latina.