A relação entre comida, história e memória é
componente chave do filme Lamen Shop
(2018, Cingapura, Japão, França), de Eric Khoo. No filme, um jovem cozinheiro
japonês encontra, logo após a perda de seu pai, o diário de sua mãe, o que o
leva a uma viagem a Cingapura, em busca do lado cingalês de sua família, que
nunca havia conhecido, e dos segredos do ramen.
O ramen é uma tradicional sopa à base
de macarrão chinês, que pode conter porco, peixe ou frango, além de
ingredientes como algas e brotos no caldo. Prato bastante popular no Japão,
teve seu consumo intensificado após a Segunda Guerra Mundial (em razão de seu
baixo custo) e da criação do macarrão instantâneo, na década de 1950.
O protagonista de Lamen
Shop acaba por descobrir a razão do distanciamento de sua família
cingalesa: a mãe de seu pai rejeitou a união deste com sua mãe, por ela ser
japonesa. O motivo da rejeição foi a memória das violências cometidas no
período da ocupação japonesa em Cingapura, durante a Segunda Guerra Mundial. No
momento da viagem do protagonista a Cingapura, realizava-se no país uma
exposição marcando essa ocupação; por meio dela, o jovem cozinheiro veio a
conhecer a história de violência que marcara sua família.
Lamen
Shop
foi lançado dois anos após a celebração dos cinquenta anos de relações
diplomáticas entre Japão e Cingapura (iniciadas em 1966), celebrando o estabelecimento
da paz e amizade entre os dois países. No filme, a história e as memórias familiares
se imiscuem, e ambas estão ligadas a uma atividade cotidiana prenhe de
lembranças: a alimentação. A lembrança de pratos da infância, as receitas
transmitidas de geração em geração, a recriação familiar de comidas
tradicionais no país ou na região, ligam fortemente nossos rituais de sentar-nos
à mesa com a memória de vida de cada um e nossas histórias coletivas.
Um capítulo à parte na relação entre alimentação e
história cabe aos imigrantes. Seus deslocamentos produzem contatos culturais
múltiplos, e a comida é algo que, normalmente, carregam consigo, preservando
suas identidades e mantendo para si um senso de rotina e tradição num ambiente
novo. A descoberta de novos ingredientes, ou a falta dos ingredientes
tradicionais, leva a releituras dos pratos tradicionais. A abertura de
restaurantes ou a venda nas ruas torna suas culinárias populares nos países de
acolhida, incorporando à dieta dessas culturas novos pratos.
A exposição
“Migrações à mesa”, realizada em 2017 no Museu da Imigração, em São Paulo,
levou ao público a proposta de pensar essas questões, pedindo a descendentes de
imigrantes que emprestassem à mostra cadernos de receitas de seus antepassados.
Os cadernos foram expostos ao lado de utensílios de cozinha e outros materiais reveladores
do universo culinário de diferentes origens do mundo. Entre as atividades
especiais durante o período de isolamento imposto pelo combate ao coronavírus,
o Museu reapresentará a exposição em formato virtual, a partir de 30 de maio de
2020 (cf. http://museudaimigracao.org.br/eventos/acoes-online/lancamento-exposicao-virtual-migracoes-a-mesa).
Na região de inserção da UNILA, a feirinha de domingo na Avenida Juscelino Kubitschek, em Foz do Iguaçu, é um exemplo da forte relação entre comida e imigração, com bancas de culinária árabe, taiwanesa, japonesa, entre outras.
Imagem da exposição “Migrações à Mesa”:
http://www.museudaimigracao.org.br/exposicoes/temporarias/migracoes-a-mesa
Acesso em 07/05/2020. O site do museu também disponibiliza materiais educativos da
exposição em formato pdf (http://museudaimigracao.org.br/educativo/materias-educativos ,
acesso em 07/05/2020).
As ciências sociais, dentre elas a história, reconheceram, há pelo menos um século, a importância
da alimentação como objeto de estudo, seu valor na compreensão de uma cultura e
de relações sociais. Um estudo pioneiro na literatura brasileira é do
intelectual afrodescendente baiano Manuel Querino (1851-1923), A arte culinária na Bahia (1928). Como
em outros de seus estudos, Querino destaca, no livro, a contribuição africana à
culinária baiana, razão pela qual esta seria a primeira do país: “É notório,
pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia, na arte
culinária do país, pois que o elemento africano, com sua condimentação
requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguêsas,
resultando daí um produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais
exigente, o que excede a justificada fama que precede a cozinha baiana” (QUERINO,
1957 [1928], p. 23). Outras culinárias regionais mereceram estudos, como Feijão, angu e couve: ensaio sobre a
comida dos mineiros, de Eduardo Frieiro (Centro de Estudos Mineiros, 1966),
defensor de que, em meio à variedade interna da culinária mineira, sua essência
estaria na tríade contemplada no título da obra.
A arte culinária na Bahia (http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/wp/wp-content/uploads/2014/04/ARTE-CULINA%CC%81RIO-19282.jpg, acesso em
12/11/2018)
Manuel Querino: http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/wp/wp-content/uploads/2014/04/Retrato-de-Manuel-Querino-3.jpeg,
acesso em 12/11/2018)
A historiografia francesa da Nova História, a partir
dos anos 1960 e 1970, expandiu as possibilidades do estudo histórico da
alimentação sobremaneira, especialmente problematizando gostos, hábitos e
sensibilidades alimentares ao relacioná-los com a dinâmica social das
sociedades nas quais se inserem. Exemplo de uma das novas abordagens é a obra
de Jean-Louis Flandrin (1931-2001), que, entre outros temas na história da
alimentação, estudou a ordem de apresentação e consumo dos pratos na culinária
francesa. De que se compunham as entradas, pratos principais, sobremesas e por
que sua disposição em uma ordem específica; qual a lógica cultural por trás do
consumo do salgado antes do doce, do frio antes do quente, são casos de
problemas historicizados por Flandrin em seus estudos. No Brasil, muitos
estudiosos também têm se dedicado à temática da história da alimentação, como o
prof. Henrique Carneiro (USP), autor de Comida e Sociedade: uma história da
alimentação (2003).
A alimentação, portanto, é um tema que vem sendo
trabalhado a partir de uma variedade de problemas e perspectivas dentro da
história, em permanente interdisciplinaridade com a antropologia, a sociologia,
a arqueologia, entre outras ciências humanas. O filme Lamen shop explicita as potencialidades deste tema ao nos colocar
diante das múltiplas interseções entre memórias individuais, memórias
familiares e histórias (trans)nacionais contidas num prato de comida e naquilo
que o envolve: as tradições envolvidas na receita e os rituais associados a seu
preparo e consumo.
Referências e indicações de leitura:
BANERJEE, I (Org,) Culturas culinarias: comida y sociedad en Asia y
África. Estudios
de Asia y África,
vol. 50, n. 3, 2015. Disponível em: < https://estudiosdeasiayafrica.colmex.mx/index.php/eaa/issue/view/156
> Acesso em 07/05/2020.
CARNEIRO, Henrique. Comida e Sociedade:
uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
FRIEIRO, Eduardo. Feijão,
Angu e Couve. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1966.
MONTANARI, M. (Org.) O mundo na cozinha. História, identidade, trocas. São Paulo:
Editora Senac/Estação Liberdade, 2006.
QUERINO, Manuel. A arte culinária na
Bahia. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957. Disponível para download
na Brasiliana Digital Guita e José Mindlin (IEB/SP), em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3998,
acesso em
12/05/2020.
Prof.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos
Profa.
Mirian Santos Ribeiro de Oliveira