A imagem da morte em contextos de epidemia: três exemplos na imprensa brasileira entre o século XIX e o XXI - Parte II
Publicamos hoje no Blog de História da UNILA a segunda parte da postagem "A imagem da morte em contextos de epidemia: três exemplos na imprensa brasileira
entre o século XIX e o XXI", escrita pela profa. Rosangela de Jesus Silva, do curso de História da UNILA e dos programas de pós-graduação em História (PPGHIS) e Literatura Comparada da UNILA. A primeira parte da postagem pode ser vista aqui. Boa leitura a todxs!
A imagem da morte em contextos de epidemia: três exemplos na imprensa brasileira
entre o século XIX e o XXI - Parte II
As
epidemias seguiram assolando a humanidade e, no início do século XX, um
episódio traumático, violento e marcante para o ocidente seria intensificado,
justamente nos meses finais de seu desfecho, por uma epidemia de gripe. Há
estimativas que apontam para a contaminação de cerca de um quarto da população
do planeta, com mortalidade que pode ter atingido por volta de cinquenta
milhões de pessoas.
Em
1918 o mundo vivia o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) na qual
inúmeras vidas foram perdidas. E foi justamente nos meses finais desse episódio
traumático que a epidemia de “Gripe Espanhola” ou “Influenza Espanhola”, sairia
das trincheiras para se disseminar pelo mundo. A pesquisadora Nara Brito indica
que, no Brasil, a epidemia teria chegado no Recife “em setembro de 1918, a bordo
do navio Demerara. De lá, expandiu-se
para o restante do país, seguindo a costa litorânea.” (BRITO, 1997, p.12). O pico da epidemia no Brasil ocorreu entre os
meses de outubro e dezembro daquele ano e a imprensa cobriu o evento com
artigos, fotos e caricaturas, mostrando os impactos da epidemia sobre a
população. Cenas de caixões e corpos amontoados, cemitérios com muitas covas
abertas, filas de pessoas em busca de remédios e alimentos, ruas vazias e
depois lotadas por procissões em busca de ajuda divina, além de ações de
caridade, ocuparam as capas e muitas páginas de revistas e jornais brasileiros
da época. Imagens e textos, alguns permeados por críticas ao poder público,
expunham uma sociedade marcada pela desigualdade social, cujos desprivilegiados
seriam os mais impactados. Os números 44 e 45 da revista Fon Fon (1907-1958),
publicados em 2 e 9 de novembro de 1918, assim como o número 842 d’O Malho (1902-1953),
também de novembro daquele ano, são bastante ilustrativos de algumas cenas
descritas acima e podem ser consultados na hemeroteca da Biblioteca Nacional brasileira.
A metáfora da morte,
através da caveira e sua foice, seria mais uma vez retomada na revista O
Malho atrelando tanto o episódio da guerra quanto da gripe espanhola em sua
capacidade de ceifar vidas.
O Malho, n. 839, 12 de outubro de 1918, Rio de Janeiro, p.25
A
morte sobrevoa o mar abraçada ao kaiser Guilherme II (1859-1941) – último
imperador alemão e rei da Prússia. Sua foice tem sangue, o que evoca a
violência das mortes provocadas na guerra. A imagem apresenta a morte, com nome
próprio – Influenza Hespanhola - como “a nova aliada do Kaiser”, além de
indicar que era pelo ar que ela chegaria: “O que anda no ar”. Naquele momento
já era certa a derrota da Alemanha na guerra. A imagem é de 12 de outubro e o
armistício com a rendição da Alemanha aos Aliados foi assinado em 11 de novembro
de 1918. Embora a imagem se refira ao contexto europeu, já se sabia dos efeitos
nefastos da gripe e de sua presença em território nacional. Tanto que o N. 842
d’O Malho, publicado em 2 de novembro – dia de finados -, apresentou ao
público uma edição recheada de imagens e comentários sobre a epidemia no Rio de
Janeiro, começando pela capa. Esta apresentava uma cena na qual o então
presidente da República Wenceslau Braz (1868-1966), juntamente com o seu
ministro da Justiça e negócios interiores Carlos Maximiliano (1873-1960), tentavam acomodar uma pilha de caixões, com
urubus sentados sobre eles, enquanto ao fundo se observa a
cidade em total penumbra.
Em
2020, enquanto ainda experimentamos os efeitos da pandemia de “novo Coronavírus
– Covid-19”, inúmeras imagens seguem evocando as experiências daqueles que nos
precederam marcadas por incertezas, medos, inseguranças, angústias e desamparo.
No século XXI, no qual a imagem é criada e propagada em poucos segundos,
algumas mazelas parecem persistir. A desigualdade social estampada em moradias
precárias nas comunidades com muitos habitantes e, consequentemente, onde estão
concentradas mais vítimas; os caixões amontoados; as covas em massa abertas nos
cemitérios, algumas com a ajuda de máquinas e registradas com imagens aéreas de
drones. O medo do vírus
desconhecido primeiro mostra um vazio, estampado em ruas desertas nos grandes
centros urbanos. Um tempo depois esses espaços são novamente ocupados e as
aglomerações voltam a surgir. Diferentemente de 1918 nas quais procissões
aglomeravam aqueles que pediam intervenção divina, agora as pessoas se
aglomeram para entrar em templos de consumo como shopping centers ou no
comércio de rua. Nesse mundo contemporâneo no qual a ciência há muito já
destrinchou e expôs o corpo, e a mídia, alimentada pela violência diária dos
grandes centros urbanos, exibe corpos dilacerados e em decomposição, a caveira
ainda é uma metáfora da morte. Mas sua aparência ainda seria tão assustadora
quando os números parecem naturalizar a morte? A pergunta talvez seja retórica
ou demasiado filosófica, no entanto a presença dessa iconografia de vários
séculos segue sendo atualizada e preenchida com novos sentidos para a morte.
O
jornal O Globo publicou em 27 de março de 2020, na terceira página
denominada Opinião - onde são publicados textos de especialistas com
análises sobre diferentes temas -, uma imagem da morte cuja origem é identificada
imediatamente na tradição visual da cultura ocidental da caveira com foice. Mas
agora a caveira, símbolo primeiro, desaparece. E em uma síntese sutil, embora
bastante contundente, permanece apenas a foice, cuja lâmina, elemento explícito
do extermínio, adquire as cores da faixa presidencial brasileira: o verde e o amarelo. O caricaturista, de forma menos explicita do que no
século XIX – embora ainda apontando para as autoridades governamentais -,
sugere uma nova configuração para a morte. No entanto, deixa que o público,
alimentado pelo contexto político brasileiro atual, construa sua própria imagem
de quem está segurando a foice.
Referências:
ARIÈS,
Philippe. Historia de la muerte en Occidente. De la Edad Media hasta
nuestros días. Barcelona:
Acantilado, 2000.
BERBARA, Maria. Epidemias, Arte e História. Live
promovida pelo Programa de pós graduação em História da Arte da UERJ, realizada
em 09 de junho de 2020 pelo google meet e em breve disponibilizada no youtube.
BRITO, Nara. La dansarina: a gripe espanhola e o
cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde. Manguinhos,
IV (1):11-30 mar.-jun. 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em
16 de junho de 2020.
CHALLOUB, Sidney. Cidade
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95-141.
SCHMITT, Juliana. Às margens da cristandade: o
imaginário macabro medieval. In: Cadernos de Estudos Culturais. UFMS, V.
8 N.16, 2016, p.165-176. Disponível
em: https://periodicos.ufms.br/index.php/cadec/article/view/4239 Acesso em 16 de junho de 2020.
SOLO. Plus de 5000 dessinateurs de presse e
600 supports en France de Daumier à l’na 2000. Vichy: Editions
AEDIS, 2004.
Rosangela de Jesus Silva, professora do curso de História da UNILA e dos Programas de Pós-Graduação em História (PPGHIS) e em Literatura Comparada da UNILA