No texto A história
em jogo: a atuação de Michel Foucault no campo da Historiografia,
Durval Muniz de Albuquerque, questiona o motivo de alguns eventos
célebres como jogos e carnavais, que fazem parte da cultura brasileira, serem
vistos pela historiografia do País como eventos secundários ou simples quebras
de rotina.
O autor
analisa como o jogo é pensado pela
filosofia, ao longo dos séculos e afirma que no campo da filosofia não há
muitas reflexões em torno desses temas, pois ao que parece para os filósofos e
pensadores esses não eram temas dignos o suficiente de serem versados.
Albuquerque
esclarece que no pensamento da tradição cristã o ato de jogar poderia ser
considerado um momento de descanso para o retorno renovado ao trabalho, mas com
muita moderação, pois o mesmo poderia ser classificado como um ato pecaminoso
por levar ao desregramento e ao vício.
O jogo
também já foi classificado como uma prova da engenhosidade humana e nos
ensinaria a pensar, além de endossar a incerteza e despertar a vontade, desse ponto de vista era
considerado como a necessidade do sujeito de divertir a si mesmo para esquecer
a morte. O filósofo prussiano Immanuel Kant
(1724-1804) classifica o jogo como a expressão da liberdade humana diante a
natureza, pois é através do jogo que o Homem teria consciência de sua
autonomia, vontade e razão, percebe que ele é sua própria lei, seu próprio
limite.
Posteriormente
o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), consideraria o jogo um
fundamento epistemológico e ético da história e sociedade humana, tornando-se
um modelo de representação do mundo para luta, rivalidade e guerras, o que para
Nietzsche, é a base central da elaboração das culturas.
Guiado
pela influência do pensamento nietzschiano, o filósofo francês Michel Foucault
(1926-1984) irá defender que a história é resultado de jogos múltiplos de
afrontamentos entre forças e saber e por isso é necessário que a História seja
praticada como genealogia, pois assim
ela restabelece os diversos sistemas de submissão, os diversos jogos casuais de
dominação. Para Foucault, a História não tem uma essência rica de sentido, ela
nada mais é do que a disputa entre o dominador e o dominado.
Partindo do
pensamento foucaultiano, Durval Muniz expõe para seus leitores como a pesquisa
histórica se assemelha a um jogo. Como em uma partida de futebol, há na
história diversos imprevistos e dependendo de quem está com a bola, tudo pode
acontecer.
Considerando
tais reflexões, o autor critica a vontade dos historiadores de chegar a uma
suposta essência, pois ainda que houvesse uma, a História não se constitui
apenas de um evento e vai muito além de um único fato histórico.
A vontade
dos historiadores de narrar grandes eventos históricos ou grandes personagens
da história, como a revolução francesa ou o imperador Carlos Magno, impede que os
historiadores possam se debruçar sobre o cinza, o “pleno e simples” cotidiano.
Para Durval
Muniz, mesmo entre aqueles historiadores adeptos da Micro-História ou da
História vista de baixo, se corrompem pela vontade de narrar grandes eventos ou
personagens. Cria-se a narrativa do operário que supera a posição de oprimido e
representa há toda uma classe, tornando-se um herói, um personagem que possui
em sua essência o poder da diferença.
Os historiadores continuam pensando o saber
científico como uma prática que eleva o ser para olhar do ponto de vista mais
alto, mesmo quando se diz se ver a partir de baixo, adora-se as exceções mesmo
quando se quer tratar das estruturas.
Baixemos
a bola, tentemos pensar que a história também deve olhar para os peladeiros,
para os canhotos, para os cabeças-de-bagre, para os pés-murchos que também atuam
na história e são responsáveis pelo seu resultado final (Albuquerque, 2007, p.
85)
Durval Muniz defende a importância
de se ver e pensar o mundo como um jogo, pois dessa forma seria possível se
interpretar as práticas e conflitos humanos, sem que necessariamente elas
precisassem possuir uma essência ou significação. A história é resultado das
batalhas em torno do poder e da verdade, a luta dos homens por domínio
político ou conhecimento.
Para tanto,
a linguagem representa uma das principais armas, já que é através dela que se
demarcam os espaços de poder, as identidades e lugares de cada sujeito e os
pactos sociais. A sociedade é um conjunto complexo de relações, funções,
táticas e estratégias, onde a qualquer momento se pode ganhar ou perder a
partida do jogo.
Além
do mais, Durval Muniz defende a ideia Foucaultiana de que o ato de interpretar
é na prática apoderar-se de um sistema de regras para submetê-las a novas
regras. O trabalho interpretativo é dar aos discursos novas significações,
novas máscaras e inverter o sentido do jogo.
Seja na
história humana ou nos jogos, as relações de poder são fundamentais. Em ambas
há um grupo ou sujeito que possui o poder de selecionar e ditar quais serão as
regras e como os outros grupos de sujeitos devem se comportar.
Levando o pensamento de Foucault adiante, Durval
Muniz defende que a história deve ser vista como um jogo de poderes, pois as
relações sociais têm como seu fundamento a divisão entre aqueles possuem o
poder e aqueles que são subordinados. Quem dita as regras do jogo em
determinado momento histórico é quem as detêm nas mãos.
O grande jogo da história será de
quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para
revertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham
imposto (Albuquerque, 2007, p. 89)
Para Albuquerque, a História é
movimento e ações criativas e mesmo que os sujeitos sejam limitados por regras,
normas e um espaço-tempo delimitado, serão sempre capazes de lutar contra a imposição da repetição para criarem o
diferente.
Michel Foucault e Durval Muniz de Albuquerque
O
historiador lembra a importância de tornarmos a História um saber sedutor para
os leitores, alertando que para isso é necessário superar a ideia de que ela
está documentada apenas nas súmulas escritas, guardadas nos arquivos. A
História está documentada nos corpos, nas dores, nos prazeres e nas alegrias.
Para o autor: “cada ferida cicatrizada é um monumento a um instante dolorido
que passou, é um resto de tempo petrificado.” (Albuquerque, 2007, p. 92)
Durval Muniz
explica em seu texto que, para Foucault, pensar a história como jogo
corresponde a uma postura epistemológica e a uma postura ética. Em suas últimas
obras Foucault (1984, 1985) estava
preocupado em entender através de que jogos construímo-nos como sujeitos de uma
sexualidade e de uma moralidade. Sua preocupação era procurar pensar o sujeito
para além da imposição socrático-platônica de conhecer a si mesmo. Sua ideia era deslocar essa questão a partir
da pergunta nietzschiana, que era: o que estamos fazendo de nós mesmos?
É por isso
que Foucault propõe três maneiras para praticar a história, que reafirmam a
necessidade do caráter subjetivo e político de nossa atividade:
1- O uso
irônico, que se opõe à história vista como uma imagem lembrada do passado, ou algo que
se conserva na memória, propondo uma história praticada como riso, como
destruição das versões consagradas da realidade, como produção de um
distanciamento entre nós e aqueles que nos antecederam.
2- O uso
dissociativo e destruidor da identidade, que se opõe à história como
continuidade e tradição, propondo uma história praticada como afastamento da
continuidade e dilaceramento de modelos de identidade que nos chegam do passado
e se impõem como indispensáveis.
3- O uso sacrificial e destruidor da verdade,
que se opõe à História-conhecimento, expressando uma história praticada como
desconfiança em relação a todas as verdades que nos chegam prontas, a todas as
certezas que nos chegam sem questionamento.
Para Foucault, a história tem todas
as características de um saber pensado como jogo, pois ela implica a
brincadeira com as máscaras, a violência do embate e do combate, a entrada em
cena do acaso e da sorte e o desejo de vertigem, da perda das referências fixas
que amarram nossos corpos e mentes a dadas identidades, razões e lugares. A
história é agôn, é álea, é mimecry e é ilinx, ou seja, conflito, acaso,
simulação e Vertigem (Albuquerque, 2007, p. 97)
Durval
faz uma defesa ao pensamento de Foucault, que por ter rompido com a vontade dos
historiadores de chegar a uma essência, um fato, ou um herói que determina os
cursos da História, é mal avaliado como um pensador que quis acabar com ela,
mesmo que tenha dedicado toda a sua vida a fazê-la. Por quebrar paradigmas é
mal avaliado injustamente como um invasor pelos historiadores. Para isso Durval
diz:
Michel
Foucault é da genealogia dos craques, dos fora de série, daqueles que, mesmo
quando são nosso adversário, só nos resta sentar e aplaudir (Albuquerque, 2007,
p. 98)
Referência:
ALBUQUERQUE
Jr. Durval Muniz de. História: a arte de
inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007.
Fontes para
as imagens:
Foto
Foucault: https://www.todoestudo.com.br/sociologia/michel-foucault
Foto Durval Muniz: https://www.saibamais.jor.br/author/durvalsaibamais-jor-br/page/6/
Foto partida de Futebol: https://blogs.gazetaesportiva.com/albertohelena/2018/07/05/pelo-menos-um-belo-jogo/
Acessos em 16/07/2020
Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História Bacharelado da UNILA, e bolsista do projeto de extensão Blog de História da UNILA