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Pessoas e suas motivações: teoria da história, criminologia e quadrinhos

Uma das principais discussões em Teoria da História talvez seja sobre seu tema mais básico: qual o objeto de estudo dos historiadores? Para a teoria idealista da história e alguns de seus desdobramentos, o objeto de estudo dos historiadores são as ações humanas. Mas o historiador faz, evidentemente, mais do que apenas registrar essas ações. Procura explicá-las, o que gera uma consequência importante daquela definição: os historiadores devem reconstituir e explicar as ações humanas. Seu objeto principal, por isso, são as causas, motivações e finalidades das ações humanas na história.

 

É desse modo que se expressa, por exemplo, o filósofo da História William Dray: “a história é um estudo da ação humana”; porém, essa “simples concepção (...) requer, portanto, que a versão do historiador se apresente em termos amplamente finalísticos” (Dray, 1977, p. 43), isto é, em termos de finalidades. Para compreender uma ação, devemos compreender os fins que a motivaram. Dray indica um historiador e filósofo da História fundamental para a concepção idealista da História: Robin George Collingwood (1889-1943), cuja publicação póstuma A Ideia de História (1946) tornou-se um dos livros de teoria da História mais influentes do século XX. Para Collingwood, para poder conhecer o passado o historiador deveria “reconstituir o passado, no seu próprio espírito” (Collingwood, 1972, p. 343). Essa reconstituição envolve repensar pensamentos, reconstruir, na nossa mente historiadora, o que pensaram aqueles indivíduos que estudamos, ou que produziram os fatos e objetos históricos que estudamos. Assim, motivações e finalidades dos agentes históricos se tornam fundamentais para o trabalho do historiador. Para Collingwood, como salientou o também filósofo da História William H. Walsh, pensamentos não são apenas subjetivos ou individuais: têm expressão externa nas ações e têm alcance e natureza coletiva (ou social).

 

Por isso, como afirma Walsh, “el concepto central de la historia para Collingwood es el concepto de acción, es decir, de pensamiento que se expresa en conducta externa. Los historiadores tienen – según él creía – que partir de lo meramente físico o de descripciones de lo meramente físico; pero su designio es penetrar más allá de esto hasta el pensamiento que está en su base” (Walsh, 1983, p. 57). Os historiadores deveriam partir das ações, para chegar aos pensamentos que as motivaram. Assim, uma história que define seu objeto como as ações humanas preocupa-se fundamentalmente com os pensamentos (motivações, causas, objetivos) que explicariam essas ações. Essa concepção parece pensar a história apenas em termos de indivíduos. Para a teoria idealista, entretanto, mesmo grupos ou grandes estruturas podem ser pensados em termos de ações-pensamentos, pois, por um lado, grupos e estruturas dependem de ações individuais; por outro, certas ações individuais possuem um caráter social, sendo a continuação, por exemplo, da obra de outros indivíduos, ou a participação numa ação social mais ampla. Dessa maneira, autores como Walsh refutavam a interpretação de que suas teorias seriam caracterizadas por um “individualismo metodológico”, ressaltando o caráter social e coletivo das ações.

 

Ao longo do século XX, a questão das motivações e intenções dos sujeitos na história permaneceu relevante, especialmente em domínios como a história das ideias. Quentin Skinner, importante historiador britânico dessa área, discutiu, por exemplo, “Motivos, intenções e interpretação” e “O ‘Significado Social’ e a Explicação da Ação Social” em textos teóricos reunidos no volume Visões da política: sobre os métodos históricos. Para a história das ideias, pensar nas intenções de um autor ao escrever uma obra, em suas motivações e no sentido social assumido por seus conceitos mantém-se um problema teórico e metodológico relevante. Pensar motivações e intenções individuais também é uma preocupação teórica importante para estudos centrados em indivíduos, as biografias históricas.

 

A vinculação entre ações e pensamentos (motivações e finalidades) embasou outras disciplinas que tiveram grande desenvolvimento, modernamente, no contexto de surgimento das teorias idealistas da história, a partir do final do século XIX (com filósofos como Wilhelm Dilthey, de quem já falamos aqui no blog). A criminologia, particularmente, cresce a partir daquele período, entre as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX. O pensamento do italiano Cesare Lombroso (1835-1909) foi particularmente influente no final do século XIX, ancorado em uma abordagem baseada na associação entre criminalidade e traços físicos. A medição de partes do corpo (antropometria) servia de fundamento para as explicações sobre a incidência de crimes. Essa abordagem perdeu força e crédito ao longo do século XX, dando lugar a interpretações sociais, culturais e psicológicas. Estudando o comportamento criminoso, a criminologia busca compreender as ações, a mente, as motivações e as causas desse comportamento. Se o historiador parte, como pensava Collingwood, do concreto, das ações realizadas e estabelecidas a partir da análise de seus vestígios, conhecendo o autor da ação para chegar a suas motivações (a “repensar seus pensamentos”), a criminologia pode proceder de forma dedutiva: a partir das ações, formar um perfil do potencial criminoso, auxiliando a investigação a chegar a um suspeito concreto. A criminologia utiliza-se (como também a historiografia) da psicologia, sociologia, antropologia e outras ciências sociais para suas análises.

 

A personagem Júlia Kendall, criação de Giancarlo Berardi. Imagem extraída de https://confrariabonelli.org/?p=1662, acesso em 29/10/2020

Se o final do século XIX, início do XX, foi o período de conformação de um saber científico e dos primeiros tratados de criminologia, foi também período de grande proliferação das representações da investigação criminal na ficção, com a explosão da literatura policial. Uma das mais ricas representações da criminologia per se surgiria muito mais tarde, porém, no mundo das histórias em quadrinhos. A emblemática editora italiana Sergio Bonelli (conhecida no Brasil pelas histórias de faroeste Tex e por personagens como Dylan Dog e Zagor) começou a publicar, na Itália em 1998, a HQ Júlia Kendall, as aventuras de uma criminóloga (como ficou conhecida ao passar a ser publicada no Brasil, pela Mythos Editora). A personagem-título, criação de Giancarlo Berardi (com visual inspirado na atriz Audrey Hepburn), é uma professora universitária de criminologia que auxilia a polícia da fictícia cidade norte-americana de Garden City a solucionar crimes. “Só me interessam as pessoas e suas motivações”, é como a criminóloga resume seu trabalho na história “O repouso do guerreiro” (edição 121, ano 2016, Mythos Editora, p. 207).

 

Para a História, as possibilidades de estudo abertas por esse universo são variadas: por um lado, podemos pensar os quadrinhos como objeto cultural em si, compreendendo sua linguagem, sua arte e seu lugar na cultura contemporânea (postagens futuras do blog trarão um pouco mais sobre a relação entre historiografia e quadrinhos). Por outro,  podemos encará-los como fontes para pensar a história cultural de nossa época. No caso, as noções existentes de crime, culpabilidade, responsabilidade individual, causalidade (como nossa sociedade pensa relações de causa e efeito?), e as representações da mente humana e da nossa psicologia estão entre as imagens que podem ser objeto de uma história da cultura. São noções que foram formadas e alteradas ao longo do tempo. É um interessante problema para a História pensar por que, em uma época específica, em diferentes domínios do saber (como a própria teoria da história), surge uma preocupação semelhante com ações, causas e motivações. Que mudanças históricas estavam ocorrendo naquele momento, para fazer surgir essa preocupação? 

 

Noções modernas de indivíduo, responsabilidade (e culpabilidade), mente humana e do caráter das ações tiveram reverberações em distintos campos do conhecimento, especialmente no período que assinalamos, entre o final do século XIX, início do século XX. Para alguns filósofos da história, o trabalho do historiador seria estudar as ações humanas; para isso, deveríamos chegar à mente dos agentes, a refazer seus pensamentos para compreender seus objetivos e a lógica particular de suas ações (mesmo que não concordemos com essa lógica). As “pessoas e suas motivações”, como expressou Júlia Kendall, seriam objeto fundamental de estudo dos historiadores.

 

Referências:

 COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Lisboa: Editorial Presença, 1972.

DRAY, William. Filosofia da História. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

SKINNER, Quentin. Visões da política: sobre os métodos históricos. Algés, Portugal: Difel, 2005.

WALSH, W. H. Introducción a la filosofía de la historia. México, D. F.: Siglo Veintiuno, 1983.

 

Sobre os quadrinhos de Júlia Kendall: https://confrariabonelli.org/?p=1662


Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA

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