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Pesquisando as relações entre Paraguai e Brasil - e Argentina (1954-1989) na UNILA

Nesta série de entrevistas, apresentaremos as professoras e professores colaboradores do Blog de História da UNILA, projeto de extensão vinculado ao Laboratório de Estudos Culturais (LEC) da UNILA. As entrevistas mostrarão um pouco dos interesses de pesquisa e áreas de atuação destas pesquisadoras e pesquisadores.

 

A conversa de hoje é com o prof. Paulo Renato da Silva, professor de História da América Latina contemporânea na UNILA e pesquisador das relações entre Brasil, Paraguai e Argentina especialmente na segunda metade do século XX. O prof. Paulo atua nos cursos de graduação em História da UNILA e nos programas de mestrado em Estudos Latino-Americanos (IELA) e Mestrado em História (PPGHIS) da UNILA.

 

1) Prof. Paulo, obrigado por colaborar com o Blog de História da UNILA. Em primeiro lugar, gostaríamos de conhecer um pouco mais sobre seus interesses de pesquisa e temas de sua preferência para orientação na graduação e pós-graduação.

Paulo Renato da Silva: Quem agradece sou eu pela oportunidade. Um primeiro tema de interesse em minha formação e trajetória profissional foi o peronismo, especialmente os dois primeiros governos do presidente argentino Juan Domingo Perón (1946-1955). Apesar de ter abraçado outros temas, especialmente depois que cheguei à UNILA, continuo muito interessado pelo peronismo. Na monografia de conclusão de curso analisei como algumas referências da historiografia analisam o papel dos trabalhadores no governo de Perón. No Mestrado e no Doutorado me debrucei sobre a produção cultural “alinhada” e “não-alinhada” com o governo de Perón. Coloco entre aspas porque as pesquisas, especialmente no Doutorado, questionaram essa divisão esquemática. De um modo geral, pude constatar que a produção cultural alinhada com o peronismo era heterogênea e apresentava, inclusive, elementos compartilhados com a não-alinhada. Por exemplo, Perón era visto por opositores como um representante do nazi-fascismo na Argentina. Naquele pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), vencida pelos Aliados, considero que parte dos peronistas sentiu necessidade de se apropriar de nomes e elementos da tradição liberal argentina para afastar Perón das associações com Hitler e Mussolini. Para citar um único exemplo, em seu primeiro número, a revista Argentina, publicada pelo Ministério da Educação entre 1949 e 1950, se colocou como herdeira do jornal Gazeta de Buenos Aires, representante da Revolução de Maio de 1810. A Revolução de Maio, de inspiração liberal, é considerada como o início do processo de independência do país.

Depois que cheguei à UNILA, comecei a conhecer melhor e a me interessar pelo Paraguai, mais exatamente pelo período da ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989). Mais do que a ditadura propriamente dita, passei a me interessar pelas relações entre Paraguai e Brasil naqueles anos. Acho que esse interesse se explica, em parte, pelo fato de estar em Foz do Iguaçu, cidade onde estão a Ponte da Amizade e a usina hidroelétrica de Itaipu, dois grandes exemplos das relações bastante próximas dos dois países no período. Além disso, há uma questão que me intriga bastante: a memória da Guerra da Tríplice Aliança (1864/1865-1870) é fortíssima no Paraguai. Como foi possível a ditadura Stroessner se aproximar tanto justamente do Brasil, considerado o principal inimigo naquela guerra?

 

2) Tendo em vista sua área de atuação, o que um potencial estudante de pós-graduação, especificamente, deveria levar em conta ao propor um projeto em seu campo de estudos?

Um potencial estudante de pós-graduação precisa levar em conta, sempre, a viabilidade do seu projeto de pesquisa. No caso das relações entre Paraguai e Brasil, ainda temos, no Brasil, pouco acesso à produção paraguaia, mesmo vivendo em uma cidade de fronteira como Foz do Iguaçu. Em países como a Argentina esse acesso é maior, mas ainda incipiente. Além disso, o Paraguai tem poucos arquivos digitais e revistas eletrônicas. Independentemente da proposta, é bastante desejável que um estudante, interessado nas relações entre os dois países, se organize para desenvolver uma pesquisa de campo no Paraguai, mesmo que o seu foco esteja em fontes e em perspectivas brasileiras. Uma pesquisa de campo é fundamental, por exemplo, para reunir bibliografia em bibliotecas e livrarias do país. Contudo, neste momento de pandemia, sabemos que é bastante complicado desenvolver qualquer pesquisa de campo.

Digo, ainda, que um estudante interessado no tema precisa estar aberto a romper preconceitos e estereótipos em relação ao Paraguai, o que se nota em vários países da região, ainda que em graus variados.

Publicação - sem data - da Subsecretaría de Información e Cultura do Paraguai exalta a aproximação entre paraguaios e brasileiros. À esquerda o ditador paraguaio Alfredo Stroessner (1954-1989) e à direita o presidente brasileiro Juscelino Kubitschek (1956-1961). Na capa a aproximação é inserida no marco das relações (inter)americanas


3) Com que fontes históricas você trabalha, ou já trabalhou? Poderia comentar um pouco sobre as especificidades dessas fontes?

Eu trabalho sobretudo com fontes impressas, especialmente a imprensa. No caso das pesquisas de Mestrado e Doutorado, eu me concentrei em jornais e periódicos culturais argentinos, mas também estudei discursos oficiais, textos literários e outras fontes como catálogos de editoras para conhecer melhor o que estava sendo publicado no período.

Mais recentemente, nas pesquisas sobre as relações entre Paraguai e Brasil, a imprensa continua sendo fundamental para mim, pois tenho interesse em saber como as relações entre os dois países eram representadas pela imprensa e apresentadas à opinião pública. Tenho interesse em saber como a memória da Guerra da Tríplice Aliança foi reelaborada para conter resistências à aproximação entre os dois países. Por exemplo, parte da imprensa, em consonância com discursos oficiais, defendia que a aproximação entre Paraguai e Brasil geraria “progresso” para ambos os países. Diante da perspectiva de progresso, defendia-se que a memória controversa da guerra precisaria ser superada para não atrapalhar o “desenvolvimento” dos dois países.

Além disso, tenho estudado um conjunto de livros paraguaios escritos por aliados da ditadura Stroessner. Eram livros escritos para saudar o ditador e a ditadura e serviam para os seus autores se promoverem politicamente ou conseguirem vantagens como a indicação a cargos públicos. Apesar de contribuírem para a propaganda da ditadura, esses livros também abordavam temas variados sobre a história e a cultura do Paraguai, como a Guerra da Tríplice Aliança, a memória do conflito e as relações com os países vizinhos.

É um conjunto muito variado de fontes impressas, cada uma com as suas particularidades. Mas, de um modo geral, é fundamental nunca analisá-las como expressão literal do que acontecia ou da opinião pública no período, mesmo no caso das fontes produzidas em períodos autoritários e ditatoriais, nos quais a oposição não tem um espaço satisfatório para se manifestar e se contrapor aos discursos oficiais. Os impressos devem ser compreendidos a partir de seus autores e dos grupos aos quais pertencem ou representam. Devem ser compreendidos a partir das tradições histórico-culturais em que estão inseridos. Devem ser analisados a partir de um público esperado - e imaginado. Os impressos precisam ser analisados, ainda, a partir das disputas culturais e políticas nos quais estão envolvidos. Gosto muito quando o Pablo Piccato sintetiza que a esfera pública não é uma estrutura estável, mas sim aberta, inacabada, em constante transformação.

 

4) No caso de sua pesquisa mais recente sobre as relações entre Paraguai e Brasil, por que você chegou a esse recorte temporal? O que esse período tem, para a pesquisa histórica, de possibilidades para novas investigações?

Por enquanto eu consigo responder melhor quanto ao início do recorte. Escolhi 1954 não apenas por ser o começo da ditadura Stroessner, período no qual houve uma grande aproximação com o Brasil. Em 1954, no dia da posse de Stroessner, a Argentina, governada por Perón, devolveu ao Paraguai os troféus de guerra que estavam em poder dos argentinos. Os troféus eram um conjunto de bens públicos e privados paraguaios que tinham sido levados para a Argentina por tropas que lutaram na Guerra da Tríplice Aliança. Paraguai e Brasil estavam se aproximando, pelo menos, desde 1941, quando Getúlio Vargas se tornou o primeiro presidente brasileiro a visitar o país. Essa aproximação era acompanhada com atenção pela Argentina, que exercia forte poder político e econômico no Paraguai. Em 1954, o Brasil estava concentrado em seus problemas internos, pois vivia a crise econômica e política que levaria ao suicídio do presidente Getúlio Vargas. Foi o momento perfeito para Perón devolver os troféus, antiga reivindicação paraguaia, e defender os interesses argentinos no Paraguai frente à crescente influência brasileira. Perón não somente devolveu os troféus, mas também assinou acordos comerciais. Em outras palavras, 1954 indica como a compreensão das relações entre Paraguai e Brasil deve contemplar o peso regional da Argentina.

Quanto ao final do recorte, por enquanto, estabeleço 1989 por ser o término da ditadura Stroessner. Além disso, pelo menos até 1988, a relação com o Brasil ainda é tema recorrente dos livros pró-governo que já analisei. Mesmo após a conclusão da hidroelétrica de Itaipu, uma das principais bandeiras de propaganda da ditadura Stroessner - e da brasileira, diga-se de passagem -, a proximidade com o Brasil ainda parecia constranger de certa forma e precisava ser justificada por aliados de Stroessner. Contudo, espero aprimorar o término do recorte temporal. Pretendo apreender variações no modo como a aproximação com o Brasil foi justificada nos quase 35 anos da ditadura paraguaia.

Esse período e tema abrem muitas possibilidades para novas investigações. Primeiramente, me parece uma boa oportunidade para explorar perspectivas transnacionais que ajudem a compreender melhor a história do Paraguai, do Brasil e da Argentina no período. Parece-me ser uma boa oportunidade para incorporar, também, temas como o peso da memória histórica nas relações entre os países. A historiografia sobre as ditaduras latino-americanas ainda é predominantemente marcada por recortes nacionais ou globais. Os recortes globais enfatizam especialmente a interferência da Guerra Fria nas ditaduras. Ainda se conhece pouco quanto às relações entre as ditaduras da região, a não ser em temas ligados à repressão como o Operativo Cóndor. Por isso o tema da memória da Guerra da Tríplice Aliança nas relações internacionais abre novas possibilidades, pois coloca em primeiro plano a existência de tensões entre as ditaduras paraguaia e brasileira, apesar da convergência em assuntos relacionados, por exemplo, à repressão.

Acabo de me referir às ditaduras, mas é importante lembrar que as relações entre Paraguai e Brasil se aprofundaram antes do golpe de 1964 no Brasil. Stroessner foi muito próximo do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), quando a Ponte da Amizade começou a ser construída. Assim, esse período e tema permitem conhecer melhor as rupturas e continuidades da política externa brasileira em relação ao Paraguai após o golpe de 1964.

 

5) Que abordagens e referências teóricas você citaria como relevantes em seu campo de pesquisa?

Minhas principais referências giram em torno da História Cultural. Para mim é bastante útil a análise de Robert Darnton sobre a opinião pública durante o absolutismo francês no século XVIII. É claro que se trata de um caso muito particular. Entretanto, creio que precisamos fazer um esforço, como o feito por Darnton no caso do absolutismo francês, para compreendermos a opinião pública e suas particularidades na América Latina, especialmente sob governos autoritários e ditatoriais. Como escreve Darnton, a opinião pública era desconsiderada pela historiografia sobre o absolutismo. Considero que a opinião pública ainda é desconsiderada por parte expressiva da historiografia sobre governos autoritários e ditatoriais na América Latina, especialmente em um país como o Paraguai. Recuso-me a pensar que os livros destinados a louvar Stroessner, que citei há pouco, eram pura propaganda política. Eles também procuravam justificar posições controversas do seu governo, como a aproximação com o Brasil. Ainda sobre a opinião pública durante a ditadura Stroessner, gosto muito do que o escritor paraguaio Augusto Roa Bastos escreveu sobre o período. Para Roa Bastos, existia uma “consciência pública do terror” naqueles anos, mas que circulava limitada pelo medo, indicando as particularidades latino-americanas que precisamos conhecer melhor.

Roger Chartier também é um nome importante em minhas pesquisas, não apenas pelo conceito de representação, mas também pela importância que dá à materialidade dos impressos. A materialidade é fundamental para compreendermos não apenas o que dizem os impressos, mas também como dizem e para quem.

 

6) Você gostaria de acrescentar algo mais, sobre seus interesses de pesquisa e possibilidades de orientação, para os leitores do Blog de História da UNILA? (Opcional)

Creio que não. Gostaria de agradecer mais uma vez pela oportunidade e me colocar ao dispor de eventuais interessados em meus temas de pesquisa através do e-mail <paulo.silva@unila.edu.br>.


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