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Tecnologias, calendário e tempo no cotidiano: O início e o fim do Ramadã

 

Na semana passada, países de maioria muçulmana anunciaram publicamente o encerramento do Ramadã, mês sagrado para a religião islâmica. Em Foz do Iguaçu (PR), cidade com a segunda maior comunidade árabe do Brasil, e onde fica a sede da UNILA, o encerramento do mês de jejuns foi celebrado na manhã da última sexta-feira (21/04).

Malásia, Cingapura, Indonésia, Arábia Saudita e Argélia, entre outros países, determinaram o início do período marcado por jejuns e atividades espirituais para o dia 23 de março, uma quinta-feira. As ruas de Londres, na Inglaterra, se iluminaram para marcar a data:

 

Foto de Anna Gordons, da agência Reuters. Extraída de https://sicnoticias.pt/mundo/2023-03-22-Londres-ilumina-se-pela-primeira-vez-pelo-Ramadao-fa65b43e, acesso em 28/04/2023

 

Ao mesmo tempo, um rápido olhar para as notícias referentes ao início do Ramadã indica a particularidade da determinação do começo do período: enquanto os países citados acima anunciavam o marco inicial do mês sagrado, outros países, como Marrocos, ainda aguardavam a confirmação por parte de suas autoridades religiosas responsáveis. Isso porque o Ramadã é observado no nono mês do calendário lunar islâmico, e seu início é determinado a partir da observação da lua crescente, observação que pode variar dependendo do ponto do globo terrestre em que é realizada. Também por depender do ciclo lunar, o Ramadã por durar 29 ou 30 dias (podendo ser maior ou menor dependendo do país). Como o jejum que marca o mês ocorre entre o nascer e o pôr do sol, sua duração também varia dependendo da região do mundo em que estão os fiéis.

A partir do século XIX, o mundo moderno passou a contemplar a possibilidade da sincronicidade do tempo global, por meio do avanço das telecomunicações e do estabelecimento de formas de relacionar o tempo em diferentes partes do mundo (como os fusos horários). Em 1910, o fim do Ramadã foi objeto de controvérsia dentro do mundo islâmico, justamente ao pôr em relevo a questão da possibilidade de uma uniformização do “tempo islâmico” global. Seriam possíveis um único calendário e uma única medida de tempo para a população islâmica de todo o globo, ou ao menos para o mundo islâmico concentrado entre o Mediterrâneo oriental e o norte da África? Poderiam o início e o fim do Ramadã serem “simultâneos” para todos os países muçulmanos?

O que ocorreu em 1910, que motivou debates no mundo islâmico? Da mesma maneira que seu início tem como marco o avistamento da lua crescente, o fim do Ramadã é determinado a partir do primeiro avistamento da nova lua crescente (em caso de impossibilidade de ver a lua, como em dias de céu encoberto, o Ramadã encerra-se na contagem de trinta dias de seu início). Em 1910, discutiu-se em particular o que ocorre quando a lua nova já foi avistada em determinada região, mas não em outras, por vezes prejudicadas por condições não ideais de observação astronômica. Em particular, a disputa se deu em torno da possibilidade de usar tecnologias modernas de comunicação (no caso, o telégrafo) para informar o avistamento da lua nova, e assim determinar o fim do mês sagrado. Eruditos e intelectuais muçulmanos, bem como autoridades religiosas, discutiram se estaria de acordo com a lei islâmica o uso de uma tecnologia como o telégrafo para determinar o fim do Ramadã. O debate ocorreu em particular em jornais na Síria (então parte do Império Otomano) e no Egito (onde tomou parte o importante intelectual islâmico Rashid Rida [1865-1935]). A historiadora Vanessa Ogle descreveu a controvérsia no livro The Global Transformation of Time (1870-1950):

 

Estava de acordo com as premissas da lei islâmica simplesmente enviar uma mensagem telegráfica relatando que alguém avistara o crescente e oficialmente agir a partir dessa informação – isto é, determinar o início ou fim do Ramadã? (OGLE, 2015, posição 3246, tradução minha).

 

O que estava em questão, complementa a historiadora, não era apenas o uso da tecnologia em questões religiosas, mas a relação entre autoridades políticas, religiosas e jurídicas no mundo islâmico do início do século XX. Envolvia também a avaliação crítica da mensagem recebida (o avistamento da nova lua), parte de uma longa tradição no Islã, que remontava à investigação e comprovação de palavras e atos atribuídos por terceiros ao Profeta, investigação que teria se tornado verdadeira ciência entre os séculos VIII e IX da Era Comum (as mensagens a serem avaliadas por sua credibilidade, contendo os feitos do Profeta, eram designadas pela palavra khabar). No contexto específico do início do século XX, porém, o uso do telégrafo e novas formas de determinar o início e o fim do Ramadã foram vistas por parte dos clérigos islâmicos como um risco à própria cultura. Seriam sintomas de uma “Europeização” dos costumes. O erudito Jamal al-Din al-Qasimi (1866-1914), nascido em Damasco, na Síria, interessou-se pela questão a ponto de coletar diferentes opiniões de autoridades religiosas, jurídicas e eruditos islâmicos sobre o tema. Publicou os resultados de sua pesquisa em 1911, no livro Guiando a Humanidade no agir segundo a Mensagem Telegráfica (na tradução dada por Vanessa Ogle para o inglês, Guiding Mankind on Acting Upon the Telegraphic Message). Vanessa Ogle explica que al-Qasimi, no livro, aponta que o Islã já havia incorporado outras inovações, sendo um modo de vida flexível, capaz de se adaptar a novas circunstâncias. Al-Qasimi não via, na tradição islâmica, nenhum impedimento para o uso da tecnologia. Ogle ainda expõe que o telégrafo fazia parte da vida do Império Otomano desde a Guerra da Crimeia (1853-56), com o Levante (região correspondente, grosso modo, ao Mediterrâneo oriental) recebendo a primeira linha em 1861 (entre Beirute e Damasco). Al-Qasimi argumentava, inclusive, que muitas transações dentro do Império já eram realizadas por comunicações via telégrafo. Para o erudito, o telégrafo era apenas o meio, e não o próprio testemunho do avistamento da lua (assim, não cabia incluí-lo na tradição jurídica islâmica de crítica de testemunhos).

Capa de The Global Transformation of Time (1870-1950), de Vanessa Ogle

Outro instrumento tecnológico para uso na contagem do Ramadã a causar controvérsia foi o relógio. Em particular, a marcação pelo relógio do horário preciso das cinco orações diárias praticadas no Islã. Novamente, nesse caso o uso da tecnologia também viria a substituir a observação da natureza, da sombra do sol durante o dia e do crepúsculo à noite, como indicativos dos horários certos para as orações. Foi a vez de outro erudito importante do Islã na passagem do século XIX para o XX, Muhammad ‘Abd al-Baqi (m. 1905) estudar a questão. Na obra O Livro das Lições Úteis nas Opiniões sobre o Telégrafo e os Relógios (1897), segundo Vanessa Ogle, ‘Abd al-Baqi manifestou a compreensão do relógio como uma inovação de costumes, que não necessariamente impedia a observação da natureza, tampouco afetava os princípios básicos a serem mantidos para as cinco orações diárias (como os padrões de purificação prévios às orações). Para ‘Abd al-Baqi, como para al-Qasimi no caso do telégrafo, as novas tecnologias poderiam ser incorporadas às práticas diárias do Islã sem prejuízo à essência da religião.

No mundo conectado de hoje, ainda mais permeado de tecnologias incorporadas a práticas do dia a dia, uma celebração como o Ramadã pode ser vivenciada como um evento global de forma mais palpável. As tecnologias, porém, não substituíram as práticas de determinação do início e fim do mês sagrado. Como demonstra Vanessa Ogle, técnicas de contar e medir o tempo, e de comunicar esses dados através de vastas distâncias, criaram uma sensação de sincronicidade e simultaneidade, e marcaram a transição para uma transformação global da percepção do tempo, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX (tema de nossa postagem do Blog aqui). No entanto, as especificidades de diferentes culturas quanto a contagem e marcação do tempo não são simplesmente apagadas nesse processo. O tempo como um artefato cultural, ligado à observação local da natureza, torna a história da difusão de um tempo abstrato e único pelo globo um tema mais complexo, e impede que vejamos a difusão das tecnologias e das concepções de tempo como uma narrativa linear e unidirecional.

 

Referência:

OGLE, Vanessa. The Global Transformation of Time (1870-1950). Harvard: Harvard University Press, 2015.

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos¸ professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA.

 

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