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Os processos migratórios e a favelização de Foz do Iguaçu nas páginas da revista Painel

 

A revista Painel foi fundada em 1973 em Foz do Iguaçu, onde circulou até 2017. Em seus 261 números, a revista busca principalmente envolver o leitor sobre assuntos que são inerentes a Foz do Iguaçu e à fronteira trinacional. Contudo, também aborda temáticas pertencentes ao âmbito nacional e internacional.

Utilizando a Painel como fonte de pesquisa, buscamos problematizar algumas de suas publicações que abordam o tema da favelização da cidade de Foz do Iguaçu, sendo visto como um processo danoso para o planejamento urbanístico de uma cidade com foco no turismo, em que as favelas trariam um cunho negativo como “a falta de desenvolvimento” da região. Interessa-nos indicar como a construção da usina hidrelétrica de Itaipu, iniciada efetivamente a partir de 1975, desencadeou um expressivo processo de migração para a cidade, o que desencadeou problemas de moradia. Neste artigo priorizaremos a segunda metade da década de 1970.

Na história dos problemas de moradia e favelização no Brasil, o Rio de Janeiro seria um caso emblemático. No final do século XIX, as reformas urbanas promovidas na cidade geraram despejos de moradores de cortiços, tendo-se como referência o “Cabeça de Porco”, um dos mais conhecidos na cidade. Ao serem despejados, os moradores, sem quase nenhuma outra assistência de moradia, teriam começado o processo de favelização da cidade do Rio de Janeiro, já que não lhes restavam outras opções. É dito por Sidney Chalhoub em seu livro Cidade Febril que o processo de favelização do Rio de Janeiro seria inclusive anterior à derrubada do “Cabeça de Porco”:

 

O destino dos moradores despejados é ignorado [...] O prefeito Barata, num magnânimo rompante de generosidade, mandou “facultar à gente pobre que habitava aquele recinto a tirada das madeiras que podiam ser aproveitadas" em outras construções. De posse do material para erguer pelo menos casinhas precárias, alguns moradores devem ter subido o morro que existia lá mesmo por detrás de uma estalagem. Um trecho do dito morro já parecia até ocupado por casebres, e pelo menos uma das proprietárias do Cabeça de Porco possuía lotes naquelas encostas, podendo assim até manter alguns de seus inquilinos. Poucos anos mais tarde [...] O lugar passou então a ser chamado de ‘morro da Favela’ (CHALHOUB, 2004, p. 17).

 

Apesar das particularidades de cada caso e das décadas que os separam, esse processo possui semelhanças com a cidade de Foz do Iguaçu no tocante ao desamparo da população. A usina de Itaipu é conhecida pela construção das vilas A, B e C para comportar as famílias de empregados que se locomoviam para a cidade. Contudo, a migração para a cidade foi muito além daqueles e daquelas que conseguiram emprego na obra, o que gerou um expressivo déficit habitacional na cidade. Além disso, durante a construção, ocorriam demissões para ajustar o número de empregados à demanda de cada etapa da obra. Finalmente, quando a construção foi concluída, houve demissões em massa em plena década de 1980, marcada por uma acentuada crise econômica internacional. Muitos dos demitidos durante e após a construção da barragem engrossaram a fileira daqueles que enfrentavam problemas de moradia na cidade.

A migração para Foz do Iguaçu foi potencializada devido ao êxodo rural na década de 1970, o qual consiste na migração dos espaços rurais para os urbanos. O campo brasileiro passava por um processo de concentração fundiária e de mecanização, o que levou milhares de camponeses e pequenos proprietários a migrarem para as cidades. Com isso posto, vemos o embrião do “problema” da favelização que é citado pela Painel diversas vezes. As migrações geraram uma falta de estrutura dentro da cidade, o que culmina nas moradias insalubres feitas em regiões periféricas ao núcleo urbano.

As vilas A e B construídas por Itaipu abrigavam os empregados dos consórcios responsáveis pela construção da usina, notadamente supervisores, coordenadores, engenheiros e a diretoria das obras. Na vila C residiam os barrageiros, os trabalhadores braçais que ergueram a barragem da hidrelétrica. Apesar das diferenças entre as vilas, as quais acompanhavam o perfil socioeconômico de seus moradores, havia relativa infraestrutura em cada uma delas, o que alimenta a memória sobre os legados que a construção da usina teria deixado para a cidade. Contudo, desde a construção de Itaipu, surgiram e cresceram na cidade comunidades carentes como Monsenhor Guilherme, Favela da Marinha e Favela do Monjolo, marcadas pelo esquecimento da Prefeitura, sem que haja qualquer tipo de apoio efetivo por parte do poder municipal.

Em todo o Brasil foi gerada uma mística ao redor de Foz do Iguaçu no que diz respeito ao crescimento econômico provocado pela construção de Itaipu e as possibilidades de emprego. Assim, a migração que a cidade recebeu foi maior do que a demanda. Dessa forma, muitos indivíduos que chegavam durante a década de 1970 na cidade eram obrigados a encontrar subempregos no centro urbano. Esse processo é assim descrito por Danilo George Ribeiro:

 

O período de recessão econômica e inflação que afetou todo o continente refletiu no custo da reprodução da força de trabalho, constituindo um cenário de arrocho salarial e redução de renda, no qual o trabalhador não possuía um salário que dessa conta de comprar a mercadoria habitação formal, preço que é fixado pelo mercado imobiliário. Trabalhadores inclusive “fichados” possuem muitas vezes um salário insuficiente para pagar o custo da moradia do mercado formal (RIBEIRO, 2015, p. 140).

 

Por conta dessa migração surgiram e cresceram as favelas na cidade, já que nem todas as pessoas que chegavam a Foz conseguiam um emprego na construção da usina de Itaipu. Em uma matéria da Painel intitulada “Um problema e sua origem”, a revista sintetiza que:

 

Se não existisse a ideia da ‘maior hidrelétrica do mundo’, nossa cidade hoje estaria contando com uma população de 40 a 45 mil habitantes; [...] Foz seria uma cidade comum, em ritmo de marcha lenta e pacata, sem favelas organizadas porque não atrairia pessoal de fora para tentar trabalho aqui, uma vez que o mercado de ofertas seria minimizado pela monotonia local (PAINEL, dez. 1977, p. 17).

 

Nesse trecho percebemos o posicionamento de indignação da revista em relação à negligência quanto às complicações geradas pela construção da usina, já que no olhar da Painel as favelas são um problema no espaço urbano. No artigo “Cohapar e a casa própria”, publicado em abril de 1978, a Painel explicita novamente alguns dos problemas habitacionais vividos pela cidade – independentemente da qualificação e condição social dos moradores –, os quais estariam finalmente sendo enfrentados pela COHAPAR (Companhia de Habitação do Paraná):

 

Trabalhadores qualificados convivendo em favelas com companheiros de menor nível profissional, membros da chamada classe média residindo em hotéis ou pensões ou cômodos concedidos, enfim um desajustamento total e descômodo a tirar o brilho das condições de boa fama que Foz do Iguaçu granjeou com o régio presente que recebeu com a construção da binacional Itaipu (PAINEL, abr. 1978, p. 14).

 

Apesar das críticas, é possível ver um alinhamento da revista com a idealização de Itaipu como parte constituinte de Foz do Iguaçu, sabendo que ela trouxe e traria grandes investimentos para a região. Ainda que os problemas habitacionais fossem muitos, a revista fala em “régio presente” recebido pela cidade com a construção de Itaipu. Assim, as críticas da Painel não se dirigiam necessariamente à construção da usina, mas à falta de suporte necessário para as obras e seus desdobramentos.

Tratando-se da década de 1980, período que ficou conhecido como a “década perdida” devido à recessão econômica no país e internacional, Ribeiro (2015) ressalta a diminuição da renda ativa da população em 21%. Esse quadro, as demissões em massa na usina hidrelétrica que se iniciaram em 1982 em razão do término de suas construções e a migração que se manteve em grandes números resultaram no aumento crescente das habitações informais durante toda a década de 1980. É apontado por Ribeiro ainda que:

 

A estrutura local permaneceu e permanece articulada à ingerência da usina, não mais de forma centralizadora, mas, a base econômica via Itaipu afeta o setor do turismo, serviços, comércio e da própria infraestrutura urbana, que dependem em grande medida do capital que circula a partir da usina na cidade; a mesma possui forte poder político, por ser uma instituição consubstanciada como extensão das políticas do governo federal no município (RIBEIRO, 2015, p. 52).

 

Assim, compreendemos que apesar do planejamento urbano feito pela usina para construir as vilas dos trabalhadores, empregos que eram alheios à Itaipu também foram gerados, muitos deles informais. Sendo Foz do Iguaçu uma cidade pensada e planejada pela elite local para ser um centro turístico, as crescentes favelas destoavam do projeto idealizado por essa elite. Por isso visualizamos na Painel o entusiasmo com a proposta de desfavelamento da cidade como um processo de “desenvolvimento” e “progresso”.

 

A prefeitura Municipal de Foz, através da Supervisão de Departamento Social, vem dando prosseguimento ao atendimento às famílias residentes nas áreas faveladas. [...] Paralelamente a este atendimento, vem sendo processado o levantamento socioeconômico da população, primeira etapa preliminar para o desfavelamento que se objetiva (PAINEL, fev. 1978, p. 11).

 

Para a revista, uma das consequências do crescimento acelerado e desigual da cidade foi o aumento da criminalidade. Nessas circunstâncias, as favelas costumam ser associadas à criminalidade. Na Painel não foi diferente. Entretanto, também vemos na revista uma visão mais complexa do problema, o que exigiria ações muito além da tradicional repressão policial. No artigo A Violência publicado em 1980, portanto, ainda sob a ditadura militar (1964-1985), o autor Walter Souza defendeu a melhoria dos indicadores sociais e reformas no Judiciário para combater o problema:

 

Alguma coisa deve ser feita para o combate ao crime, ampliando, talvez o poder repressivo e ostensivo da polícia, ou como única solução viável, a melhoria das condições de vida da população. Como disse o Jurista Heleno Fragoso [...]: ‘estamos vivendo melancólicos aspectos desta terrível desigualdade do sistema de justiça, que é um sistema seletivo, extraordinariamente opressivo e substancialmente injusto’. Este é outro grave problema (PAINEL, fev. 1980, p. 10).

 

Itaipu foi uma das principais vitrines da ditadura militar, elemento essencial de sua propaganda política pautada nos lemas do “progresso” e do “desenvolvimento”. A Painel, sob muitos aspectos, compartilhou dessa perspectiva. Entretanto, a inserção e circulação da revista especialmente em Foz do Iguaçu também permitiu que a Painel relatasse experiências e consequências adversas da obra, as quais afetaram os moradores e outros setores das elites da cidade ligados, por exemplo, ao turismo. Assim, a partir do tema da moradia – e de outros –, a Painel permite um questionamento importante à memória do legado positivo que Itaipu teria deixado à cidade.

 

Referências

 

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Editora Companhia das Letras, 2018.

PAINEL. Cohapar e a casa própria. Painel, Foz do Iguaçu, n. 51, abr. 1978,

PAINEL. Primeira etapa. Painel, Foz do Iguaçu, n. 49, fev. 1978.

PAINEL. Um problema e sua origem. Painel, Foz do Iguaçu, n. 47, dez. 1977.

RIBEIRO, Danilo George. METAMORFOSES NA CIDADE: TENSÕES E CONTRADIÇÕES NA PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO EM FOZ DO IGUAÇU. 2015. 263 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Ciências Sociais, Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, 2015. Disponível em: https://tede.unioeste.br/handle/tede/2026. Acesso em: 28 jul. 2022.

SOUZA, Walter. A violência. Painel, Foz do Iguaçu, n. 83, fev. 1980.

 

Guilherme Henrique Damasceno Vanzella, estudante do curso de História-Licenciatura da UNILA.

 


O texto acima é fruto de projeto de Extensão desenvolvido pelo discente com bolsa da Fundação Araucária (FA) do Estado do Paraná e apoio da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da UNILA.

       Praticamente todo o acervo da revista Painel está disponível para consulta. Mais informações em: <https://unilahistoria.blogspot.com/p/acervo-digitalizado-da-revista-painel.html>.

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