Durante o início do século XX, a colonização alemã foi seguida pelo colonialismo belga em Ruanda e introduziu a aplicação do racismo científico, notadamente após a Primeira Guerra Mundial (1914-1919) . Antes da chegada dos colonizadores belgas, os habitantes de Ruanda estavam integrados ao Ubwami bw’u Rwanda (reino de Ruanda).Os colonizadores belgas, ao chegarem em Ruanda se depararam com uma estrutura hierárquica, liderada por um monarca, o Mwami, e estabeleceram um sistema de governo indireto, mobilizando as elites tutsis como intermediários no processo de colonização.
Contudo, os belgas sustentavam a crença na superioridade dos indivíduos tutsis com base na melanina cutânea, uma vez que exibiam uma tez mais clara em comparação aos Hutus, que ostentavam uma pigmentação dérmica mais escura. A morfologia física também foi empregada como critério classificatório e justificativa para a segregação racial. Sob essa perspectiva, tais atributos eram considerados como determinantes para a subscrição da premissa de que os hutus, apesar de constituir a maioria, se mostrariam moral e intelectualmente subalternos aos tutsis. Através da implementação de um sistema de identificação, foram emitidas principalmente a partir da década de 1930, carteiras de identidade como parte da política governamental. Em decorrência disso, os acessos a recursos e oportunidades foram alocados de acordo com a afiliação étnica de cada indivíduo.
Embora houvesse a identificação de grupos sociais com os rótulos hutu, twa e tutsi, é crucial destacar que essas designações não se traduziam em etnias ou raças distintas. Em vez disso, elas representavam categorias sociais dentro do contexto sociopolítico da época. Os Tutsis eram associados à posse de rebanhos, enquanto os Hutus desempenhavam funções predominantemente agrícolas. Um indivíduo podia transitar de Hutu para Tutsi ao adquirir um rebanho, e o inverso também ocorria, com Tutsis tornando-se Hutus ao perderem seu gado e se dedicarem à agricultura. Foi o imperialismo Belga que concebeu o conceito de “raças” tutsi e hutu, visando a facilitar o controle e a exploração da população.
As Consequências do racismo científico: Tustis e Hutus e o genocidio de 1994 em Ruanda.
Fonte da foto: Fevereiro de 2004- Crânios de vítimas do genocidio são expostos no memorial da igreja de Ntrama, em Ruanda. Fonte Gialuigi Guercia - AFP |
RACISMO CIENTÍFICO
O racismo científico desempenha um papel crucial na fundamentação de argumentos e atitudes preconceituosas, sob a falaciosa premissa de uma hierarquização racial. Essa doutrina pseudocientífica, que desenvolveu ao longo do século XIX amparada em diversos pressupostos como, por exemplo, o evolucionismo social que sustentava a presença de categorias raciais inferiores sugeriu a possibilidade de progresso desses grupos ao longo do tempo e que se desenvolveu ao longo do século XIX.
Dando continuidade e inspirado por seu primo, Charles Darwin (1809-1882), Francis Galton (1822-1911) divulgou diversos ensaios relacionados à eugenia a partir do final do século XIX, que ele definiu formalmente como a ciência que trata de todas as influências que aprimoram e desenvolvem as qualidades inatas de uma raça. Galton também afirmou que o propósito da eugenia seria representar cada categoria ou grupo por meio de seus melhores exemplares, assegurando que eles contribuissem de forma desproporcional para a geração subsequente (NATURE).
Francis Galton, em seu enfoque acadêmico, reestruturou o princípio da seleção natural, aplicando-o ao domínio humano. Ele procurou estabelecer um processo seletivo intencional voltado para promover o aprimoramento físico e ético. Esse paradigma permeia a noção de fomentar a resiliência nacional em diversos cenários globais, no entanto, tal empreendimento resultou em desdobramentos prejudiciais, incluindo perdas de vidas, marginalização e submissão de indivíduos pertencentes a grupos étnicos, estratos socioeconômicos ou dotados de características estigmatizadas.
Este postulado serviu como base teórica para a legitimação e justificação, no âmbito racial, da exploração levada a cabo por nações europeias em suas empresas de colonização de sociedades africanas e asiáticas. A eugenia, que emerge como um desdobramento do racismo científico, foi instrumentalizada para justificar, por exemplo, o regime nazista e, por conseguinte, o desencadeamento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Anos mais tarde, o autor Aimé Césaire (1913-2008) abordou em sua obra Discurso sobre o Colonialismo, publicada no ano de 1950, num contexto posterior à Segunda Guerra Mundial (1914-1919), uma crítica ao imperialismo e racismo europeu. Em sua análise, Césaire apontou que “a Europa, moralmente e espiritualmente é indefensável” (1978), teve um papel significativo na propagação do racismo. Além disso, ele evidenciou a cumplicidade de filósofos e cientistas europeus e a influência da colonização na construção da identidade das populações colonizadas.
O autor descreve que o colonialismo não apenas engendrou uma exploração econômica das colônias, mas também resultou em consequências profundamente desumanizantes para as populações colonizadas, perpetuando a narrativa da superioridade Europeia e que os eventos que caracterizaram o colonialismo na África, ressaltaram as trágicas consequências que perduram até os dias atuais. Aimé Césaire, condenou veementemente o nazismo como um paradigma extremo de opressão e brutalidade, mas, ao mesmo tempo, sustentou que as potências coloniais europeias, que também já exerciam a opressão e exploração nos territórios africanos, usando o racismo científico para legitimar o racismo, careciam de moral para julgar o nazismo. Ele afirma que:
[...] revelar o burguês muito distinto, muito humanista, muito cristão do século XX que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler vive nele, que Hitler é o seu demônio, que o vitupera, é por falta de logica, que no fundo, o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, é o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco é o ter aplicado a Europa processos colonialistas a que até aqui só os Árabes da Argélia, os coolies da índia e os negros da África estavam subordinados. (CESARE, 1978, PG 18)
Analisando a concepção de humanidade europeia, Cesaire chega à conclusão de que tal noção se restringe exclusivamente aos indivíduos pertencentes à cidadania europeia. Sua argumentação fundamenta-se na afirmação de que em qualquer contexto geográfico externo ao continente europeu, onde a opressão colonial foi perpetrada, a humanidade não foi reconhecida. Este raciocínio implica que o fenômeno representado por Hitler já estava latente antes de sua própria existência e, adicionalmente, sugere que a possibilidade de surgimento de figuras análogas a Hitler persiste ininterruptamente. Ainda mais, a assertiva de que os alemães foram coniventes antes de se converterem em vítimas configura um elemento relevante no exame da complexa narrativa histórica.
GENOCÍDIO EM RUANDA
Em 1959, teve início uma série de episódios violentos que foram posteriormente denominados “ventos da destruição”. Os hutus, que formavam um grupo majoritário, derrubaram a monarquia tutsi e dezenas de milhares de indivíduos categorizados como tutsi, sujeitos à opressão perpetrada pelo ódio dos hutus, buscaram refúgio em Uganda e em outros países da África Central. Anos mais tarde, em 1962, ocorreu um golpe de estado que resultou no estabelecimento de um governo hutu em Ruanda. Um grupo de exilados tutsis formou um grupo rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que invadiu Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz começou a ser estabelecido em 1993.
A hostilidade em crescimento persistiu, e em 1967, surgiram relatos sobre a distribuição de facões para a população Hutu em Ruanda. A partir desse ponto, jovens revolucionários pertencentes a grupos políticos, a exemplo do “Parmahutu” que se tornaram os principais perseguidores dos tutsis, com um enfoque particular nas mulheres e meninas tutsis. Uma série de ataques sistemáticos perpetrados ao longo de um período de anos convergiu para a concretização do genocídio de 1994 em Ruanda, resultando na inexorável tragédia que assolou a população. Neste contexto, uma campanha de incitamento ao ódio foi orquestrada pelo mais alto magistrado do país, com o propósito de erradicar a população tutsi, especialmente no contexto da guerra civil entre os anos de 1980 e 1990. Paralelamente, a disseminação de narrativas difamatórias, através dos meios de comunicação, retratava os tutsis como invasores, enquanto se observava a mobilização e organização de milícias nas vias públicas.
Em 6 de abril de 1994, com a derrubada do avião que transportava os presidentes de Ruanda, chamados Juvenal Habyarimana (1973-1994), e do Burundi, Cyprien Ntaryamira (1955-1994) ambos hutus, desencadeou-se uma série de eventos que culminaram em uma das catástrofes humanitárias mais chocantes do século XX: o genocídio dos tustsis promovida pelos grupos hutus. Este episódio foi precedido por um contexto de tensões étnicas profundamente enraizadas na sociedade ruandesa, e os assassinatos dos líderes dos países serviu como estopim para um conflito que há muito estava latente. Logo após esses acontecimentos, em um período de 100 dias, cerca de 800 mil pessoas foram vítimas de um massacre brutal. Os alvos eram membros, principalmente, da comunidade tutsi batwas e os chamados “hutus moderados”, isto é, suspeitos de colaboração com os tustis.
MEMÓRIAS DE SCHOLASTIQUE MUKASONGA
Scholastique Mukasonga (1956) , uma autora originária de Ruanda, e nascida na província de Gikongoro, obteve notoriedade na literatura com o lançamento de seus romances e textos autobiograficos. Seu primeiro livro, A Mulher de Pés Descalços, foi publicado no Brasil pela editora Nós, no ano de 2017. Mukasonga seguiu seu sucesso com a publicação de Nossa Senhora do Nilo, lançado pela mesma editora. Contudo, foi em 2018 que ela consolidou sua reputação literária com a obra autobiográfica, Baratas, um título que alude à nomenclatura “inyenzis” que era utilizada pelos Hutus para designar os Tutsis, grupo ao qual a autora e sua família pertenciam.
Na análise de sua obra, somos instigados a experimentar os fragmentos de sua profunda sensação de impotência perante um evento de extermínio no qual inúmeras existências foram tragicamente aniquiladas. A autora descreve sua dor ao dizer “eu escrevo sobre coisas trágicas e terríveis. Mas são essas coisas que também podem servir para acordar as pessoas quando elas estão quase dormindo achando que está tudo bem” (MUKASONGA, Scholastique.2018). Acentua-se, nesse contexto, a imperativa obrigação de conferir identidades àqueles indivíduos que foram privados da oportunidade de encerrar suas vidas com a dignidade devida.
Como sobrevivente do genocídio, Mukasonga testemunhou a perda de 37 membros de sua família, abrangendo pais, irmãos, sobrinhos, além de vizinhos e conhecidos, cujas vidas e essências foram tragicamente subtraídas. Todavia, por meio de sua produção literária, ela conseguiu articular uma via de manifestação para suas memórias mais angustiantes, “quando você esquece está matando as vítimas uma segunda vez” (MUKASONGA, Scholastique. 2018) , assegurando, assim, que suas reminiscências não fossem subjugadas pelo inexorável avanço do tempo.
No início do episódio de violência em questão, Scholastique Mukasonga já não residia em Ruanda. Vários anos antes desse evento, sua mãe, constantemente atormentada pela perda de seus filhos, facilitou a exílio de Mukasonga e de seu irmão, André, para o Burundi. A crescente onda de discriminação que compeliria indivíduos a abandonarem seus lares e descontinuarem suas existências teve início na década de 1960 e se agravou progressivamente, culminando, nas palavras da autora, em uma situação específica e singular, um massacre em que a vida das pessoas foi subjugada pela força (2017).
Os eventos acontecidos com Mukasonga incitam a reflexão acerca da significância das memórias como mecanismo de resistência e suscitam ponderações sobre nossas obrigações diante de episódios de crueldade. Reelaborar o discurso relativo aos eventos desencadeados pelo colonialismo europeu de matriz burguesa e às barbáries perpetradas ao longo desse curso histórico, conferiu à escritora não apenas o compromisso de preservar sua afeição pessoal, mas igualmente, de acordo com o escritor angolano Mário de Andrade, a empreitada de restaurar a reconquista da identidade (1978).
Segundo o autor Jacques Le Goff , em seu livro intitulado História e Memória (1985), a história pode ter algum sentido e, um deles é, a narração. A importância do testemunho para a manutenção de histórias revela que a memória a todos aqueles que a possuem, quando é transmitida, pode ser tornar um grande patrimônio para a posteridade. No caso das lembranças traumáticas, elas servem para Mukasonga, como meio de sobrevivência, pois “a necessidade de lembrar dessas pessoas é a única coisa que me faz levantar de manhã e seguir adiante, lutando por meio da escrita”. (MUKASONGA, 2017).
A presente questão instiga uma reflexão de natureza acadêmica: De que maneira a memória traumática é mobilizada como instrumento de preservação das narrativas que foram obliteradas em virtude de tragédias históricas? A resposta a essa indagação se desvenda ao imergir nos relatos trágicos de Mukasonga, os quais metamorfoseiam-se em um memorial das tragédias que, por sua vez, se potencializa como um valioso patrimônio para a denúncia sistemática do racismo, frequentemente culminando em óbitos. É imprescindível salientar a conscientização da autora em relação a sua responsabilidade social, motivo pelo qual ela se debruça sobre a narração de sua própria existência e da história de sua nação. Esta, por décadas, encontra-se submetida ao jugo da opressão colonial, uma condição que, nos tempos atuais, perdura na psique coletiva como um legado persistente de afronta e injustiça.
CONCLUSÃO
O racismo científico, que historicamente buscou justificar a inferiorização de populações com base em pseudociência, é uma parte sombria do legado da humanidade. Scholastique Mukasonga (1956), através de suas memórias e narrativas, nos oferece uma visão perspicaz das experiências pessoais e coletivas de pessoas afetadas por essas ideologias prejudiciais. Suas palavras servem como uma lembrança poderosa das cicatrizes deixadas por essas teorias discriminatórias, mas também como um tributo à resiliência e à luta por dignidade.
Por sua vez, Aimé Césaire (1913-2008), com suas denúncias contundentes e sua teorização do conceito de negritude, desempenhou um papel fundamental na conscientização sobre a opressão racial e na promoção de uma consciência coletiva de identidade e resistência entre os povos africanos e afrodescendentes. Suas obras instigaram um movimento intelectual e político que desafiou as estruturas de poder e estabeleceu as bases para o ativismo antirracista.
Em síntese, o estudo critico e a problematização do racismo científico, aliado à apreciação das memórias de autores como Scholastique Mukasonga e às denúncias de pensadores anticoloniais como Aimé Césaire, nos conduzem a uma compreensão mais profunda da história racial e da necessidade contínua de desafiar o preconceito e a discriminação. Eles nos lembram que o conhecimento e a narrativa são armas poderosas na luta pela justiça social e pela igualdade, e que a história deve ser reconhecida e confrontada para construirmos um futuro mais inclusivo e igualitário.
REFERÊNCIAS
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1978 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp1990.p.6
MONTANINI, Marcelo. O mea culpa da revista Nature por difundir o racismo científico. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/09/30/O-mea-culpa-da-revista-Nature-por-difundir-o-racismo-cient%C3%ADfico. Acesso em: 19 out. 2023.
MOREIRA CARLOS, André. Scholastique Mukasonga. “Quando você esquece, está matando as vítimas uma segunda vez”. GZH, Cultura e lazer. 2018. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2018/11/scholastique-mukasonga-quando-voce-esquece-esta-matando-as-vitimas-uma-segunda-vez- cjp345dgt00f701mty3n3f5gn.html. Acesso em: 19 out. 2023.
MUKASONGA, Scholastique. Baratas. São Paulo: Nós, 2020.
MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. São Paulo: Nós, 2017.
Juliana Mendes Sá, estudante de História Bacharelado- América Latina na Unila
Revisão: Rosangela de Jesus Silva – professora da área de História da Unila.