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O NEGRO COMO AGENTE HISTÓRICO: A MÚSICA NEGRA COMO FONTE HISTÓRICA

 

Capa do álbum Outras Esferas, que contém a música Da Lama/Afrontamento de Tássia Reis e Stefanie (2016). Disponível em: https://i.scdn.co/image/ab67616d0000b27354fca47820e9f3e0adc617bd Acesso em: 01/04/25.

O processo de marginalização é algo que a população negra já vivencia no Brasil desde o momento em que o primeiro navio negreiro desembarcou na costa brasileira. Sendo que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão (1888), e, ao contrário do que os livros de história ainda contam, isso não foi graças a uma princesa branca, mas sim fruto de uma luta violenta e persistente ao longo de séculos, protagonizada por negros que lutaram para que sua liberdade fosse respeitada. Como já coloca Elza Soares (2002) em sua música “A Carne”, o local do negro na sociedade brasileira é bem definido, sendo ele,

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio

E para debaixo do plástico

Que vai de graça pro subemprego

E pros hospitais psiquiátricos.

A exclusão social do negro ainda ocorre hoje em todas as esferas da sociedade. Como aponta Bento (2022), um dos pactos que mantém a sociedade racista brasileira é o Pacto da Branquitude. É por meio dele que se perpetuam os privilégios dos brancos em ocuparem espaços de poder, como o ambiente universitário, que ainda é um local quase exclusivamente ocupado por professores brancos. 

Conforme o conceito de necroeducação, de Heloise da Costa Silva (2019), compreendido como políticas educacionais escritas e não escritas que visam

[...] o apagamento, subalternização, animalização e silenciamento dos alunos negros, além de sua (sub)representação no sistema educacional, exercendo o direito de deixar morrer aqueles que se deseja extinguir (SILVA, 2019, p. 126).

Considerando que as formas de enfrentamento da Necroeducação e do Pacto da Branquitude perpassam as artes, a música é um exemplo disso, como o Rap, que serve como fonte de denúncia da violência contra negros e periféricos desde a sua criação até os dias atuais.

Para demonstrar a possibilidade de realizar um trabalho histórico sem recorrer ao cânone branco eurocêntrico, este trabalho se propõe a utilizar apenas autores e músicos negros, ou seja, uma abordagem afrocentrada.

Como afirmam os Racionais MC’s na música “Diário de um Detento” (1997), o tratamento dado ao negro é o de ser colocado na prisão – espaço destinado ao descarte da população indesejável, que cometeu o "grave crime" de ter nascido negro e pobre no Brasil.

O ser humano é descartável no Brasil

Como Modess usado ou Bombril

Cadeia? Guarda o que o sistema não quis

Esconde o que a novela não diz

Ratatatá! Sangue jorra como água

Do ouvido, da boca e nariz.

Além da prática de encarceramento em massa da população negra, existe a falta de inserção de professores negros, principalmente nas universidades públicas brasileiras. Um exemplo é o caso da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), que, mesmo propondo-se a promover a integração latino-americana, continua estruturada no racismo institucional. Um dos possíveis motivos para essa falta de inserção é apresentado pela poetisa Bel Puã, que, como uma mulher negra, narra ter ouvido de um playboy:

Me falou de mérito, disse que os bacana olhavam pra ele e previam: esse aí vai dar pra médico. Tá aí a diferença da cor no nosso destino. Meu tio, ainda criança, ainda menino, já sentenciavam: esse aí vai dar é pra bandido (PUÃ, 2018).

Conforme dados do Observatório da Presença Negra no Serviço Público (2023), a presença de professores negros na instituição é de apenas 22,7%, enquanto os brancos representam 74,6%, enquanto que a média das universidades federais de 70,08% de brancos e 27,4% de pessoas negras. Vale salientar que se for realizar a comparação com outra instituição de integração temos a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) que possui um perfil de professores totalmente diferente da Unila, com a maioria sendo negra (53,5%), como pode ser visto no Gráfico 1:

Gráfico 1: Comparação do perfil racial dos professores

Fonte: Adaptado de Observatório da Presença Negra no Serviço Público (2023).

Pode-se verificar que o perfil racial dos professores da UNILA e a média geral das universidades federais não apresentam grandes diferenças: ambos têm predominância de professores brancos (74,60% na UNILA e 70,08% na média nacional), enquanto a presença negra também é semelhante (22,70% na UNILA e 27,40% na média).

No entanto, ao comparar esses dados com os da UNILAB, observa-se uma mudança significativa, com maioria negra (53,50%) – valor que se aproxima do Censo 2022, que apontou, pela primeira vez na história, que a maioria da população brasileira se autodeclara negra (55,4%), superando os brancos (43,5%). Ou seja, em relação à composição racial do país, há uma sub-representação de negros na UNILA -32,7% (em comparação com os 55,4% da população geral) e super-representação de brancos: +31,1% (contra os 43,5% nacionais).

Essa ausência de docentes negros pode explicar a falta de diversidade racial nas fontes históricas utilizadas academicamente. Como ilustra a música “Inferno Colorido” (1980), de Bezerra da Silva, a narrativa do povo periférico – majoritariamente negro – muitas vezes é marginalizada nos discursos oficiais:

Em cada canto da cidade tem uma favela

Que não tem beleza, nem riqueza também

Tem é um bocado de povo esquecido

Representando o inferno colorido.

E que, por não ter seu registro em documentos oficiais, ainda carece de inserção, pois retrata as vivências do que hoje são a maioria da população brasileira: negros e pobres, mas que a academia custa a aceitar como parte tão essencial quanto as obras do cânone da história, que em sua maioria é constituído por homens brancos (DAYRELL, 2002). Este pacto da branquitude que vigora entre os professores também está na representação racial dos alunos de História, Bacharelado e Licenciatura.

A população branca é a maioria dos estudantes de história na Unila, mesmo que ainda há um ingresso da população negra, a diferença continua em mais de 10 p.p., outro dado importante é a presença de 8,06% de alunos que não se declaram como pertencente a qualquer raça, também tem um ingresso de indígenas e asiáticos. Essa falta de representação negra para fora dos espaços de criminalidade, como autores e intelectuais, nos coloca Reis e Stefanie, em sua música Da Lama/Afrontamento (2016), como uma das causas de exclusão social:

É indecente, é angustiante

Formar uma mente já conflitante

Para que ela seja mais consciente

E não se torne um assaltante

Mas não oferecem nada decente

É revoltante e alarmante.

O ingresso da população negra a partir da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, popularmente conhecida como Lei de Cotas, fez com que houvesse uma demanda para que a academia utilize essas fontes históricas não brancas e não convencionais, que, como já aponta Dayrell (2002, p. 134), a música, como o rap e o funk, tem a capacidade de se mostrar como “[...] uma referência na elaboração e vivência da condição juvenil, contribuindo de alguma forma para dar um sentido à vida de cada um, num contexto onde se veem relegados a uma vida sem sentido.”

Nesse sentido, tem-se a utilização da música negra como um elo entre a comunidade acadêmica branca e a negra, mas deve-se observar que a inclusão das populações não é um favor que se faz a elas, mas sim a obrigação de um país que foi construído a partir da exploração de sangue, suor e lágrimas da população negra e indígena. E essa integração não será necessariamente feita sem confronto, como nos coloca Emicida, Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin em Mandume (2015):

Eles querem que alguém

Que vem de onde nóis vem

Seja mais humilde, baixe a cabeça

Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda

Eu quero é que eles se fodam!

Não se pode esperar que a reivindicação de ocupar os locais brancos se dê com uma grande “ciranda”.

REFERÊNCIAS:

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. Companhia das letras, 2022.BENTO, Cida. O pacto da branquitude. Companhia das letras, 2022

DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. Educação e pesquisa, v. 28, n. 01, p. 117-136, 2002.

EMICIDA. Mandume (part. Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin). Laboratório Fantasma, 2015. 1 música (6 min 30 s). Disponível em: https://www.letras.mus.br/emicida/mandume/. Acesso em: 18 fev. 2025

IBGE. Censo Demográfico 2022. mar. 2024.

OBSERVATÓRIO DA PRESENÇA NEGRA NO SERVIÇO PÚBLICO, 2023. Disponível em: https://www.observatoriopresencanegra.com.br/.

PUÃ, Bell. Tá na hora do pau comer! 2018. In: Slam das Minas. Recife, 2018. Disponível em:https://cultura.uol.com.br/videos/65384_ta-na-hora-do-pau-cume.html. Acesso em: 18 fev. 2025.

REIS, Tássia; STEFANIE. Da Lama/Afrontamento. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8X4o_mHN77w. Acesso em: 18 fev. 2025.

SILVA, Bezerra da. Inferno Colorido. Intérprete: Bezerra da Silva. Composição: Jorge Costa Araújo. [S.l.]: [s.n.], 1982. 1 música (3 min 30 s). Disponível em: https://www.letras.mus.br/bezerra-da-silva/1532155/. Acesso em: 18 fev. 2025

SILVA, H. C. O projeto EntreLivros: (re)construindo identidades negras a partir da afroperspectividade nas séries iniciais do ensino fundamental. 2019. 184 f. Dissertação (Mestrado em Relações Étnico-Raciais) — Centro Federal de Educação Tecnológica “Celso Suckow da Fonseca”, Rio de Janeiro, 2019.

SOARES, Elza. A carne. In: SOARES, Elza. Do cóccix até o pescoço. São Paulo: Tratore, 2002. 1 disco sonoro (61’), faixa 6 (3’39).

UNILA. Painel Integrado de Indicadores e Informações Institucionais. Foz do Iguaçu, PR, 2024. Disponível em: https://portal.unila.edu.br/acessoainformacao/painel-integrado 2. Acesso em: 31 mar. 2025.


Talles do Nascimento Martins,  estudante de História – América Latina (Bacharelado) na UNILA, Bolsista de IC-Voluntária da Fundação Araucária. tn.martins.2021@aluno.unila.edu.br

Revisão: Rosangela de Jesus Silva, professora da área de História da Unila.



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