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MUNDOS INVERTIDOS: CARTOGRAFIA, PODER E O PORTAL DE CARTOGRAFIA DA AMÉRICA MERIDIONAL

       Em maio de 2025, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou uma nova versão do Mapa-múndi com uma proposta ousada: colocar o Brasil no centro e o Sul no topo. O gesto provocou debates, estranhamento e até memes nas redes sociais. Mas, acima de tudo, fez o que todo bom mapa pode fazer: nos obrigou a olhar o mundo de outra forma.

Figura 1 - Mapa-múndi “invertido” do IBGE, com Brasil no centro e Sul no topo.

Fonte: IBGE (2025), disponível em Agência Gov.

A imagem desse mapa “invertido” com a América do Sul “de cabeça para cima” rompe com o padrão tradicional em que o Norte ocupa o topo e a Europa o centro. Mais do que um jogo visual, trata-se de uma intervenção simbólica e política. Como afirmou o presidente do IBGE, essa representação desafia a visão eurocêntrica herdada da cartografia moderna e afirma o protagonismo do Sul Global na reconfiguração da ordem mundial (Agência Gov, 2025).

Essa inversão nos lembra de um ponto crucial: os mapas não são espelhos da realidade. Eles são representações construídas, produtos de decisões históricas, técnicas, ideológicas e culturais. A Terra, afinal, não tem "em cima" nem "embaixo". E se nos acostumamos a ver o mundo de determinada maneira, é porque a cartografia, como qualquer linguagem, também tem gramáticas, convenções e estratégias de persuasão.

Esse tipo de reflexão é fundamental para quem estuda a história dos territórios. O planisfério de Jerônimo Marini, produzido em 1511, já apresentava uma projeção com o Sul no topo, antecipando o que hoje chamamos de mapa invertido. Mas ali, o que estava em jogo não era um gesto de afirmação geopolítica do Sul Global, e sim a multiplicidade de visões de mundo que circulavam no início da modernidade. A cartografia do século XVI era um campo em disputa, com diferentes tradições técnicas e intelectuais convivendo e competindo por autoridade.

Figura 2 - Planisfério de Jerônimo Marini.

Fonte: MARINI (1511, apud MAPAS HISTÓRICOS, 2025).

Os mapas desse período, além de instrumentos de navegação e de guerra, eram também ferramentas retóricas poderosas. Eles transformavam processos históricos em imagens fixas. Territórios conquistados, pactos diplomáticos e fronteiras indefinidas apareciam como linhas nítidas e espaços homogêneos. A agência e resistência indígena frente à invasão, por sua vez, não pode ser percebida em um primeiro olhar e justamente por isso nos dizem muito. O silêncio cartográfico revela a tentativa de apagamento de conflitos que, na realidade, eram constantes e intensos. Como nos lembra John Brian Harley (1989), os mapas têm o poder de esconder aquilo que representam, ao mesmo tempo em que criam realidades que antes não existiam.

Com o intuito de compartilhar e aprofundar o conhecimento dessa cartografia, nasce o Portal de Cartografia da América Meridional (séculos XVI e XVII) - o POCAM. O portal é um desdobramento do projeto de pesquisa “Fronteiras, estratégias e táticas geopolíticas na bacia platina”, coordenado pelo Profº Dr. Tiago Bonato, que busca compreender como se deu a invasão, ocupação e formação do território da região drenada pelos atuais rios Paraná, Paraguai, Uruguai e seus afluentes. Um espaço amplo, que inclui partes do Brasil, Paraguai, Argentina, Bolívia e Uruguai.

Ao reunir e divulgar mapas dos séculos XVI e XVII, conservados em arquivos e bibliotecas ao redor do mundo, o POCAM convida o público a pensar a história dos territórios de forma crítica. Esses mapas mostram como o espaço foi imaginado, representado e disputado por diferentes agentes: impérios coloniais, ordens religiosas, populações indígenas, mercadores, navegadores e cartógrafos. E, ao fazê-lo, ajudam a desmontar a ideia de que os limites nacionais sempre existiram tal como os conhecemos hoje.

A proposta do portal é justamente essa: virar os mapas para virar o pensamento. Convidar estudantes, professores e pesquisadores a olhar para a cartografia não como verdade objetiva, mas como construção histórica e cultural. E, quem sabe, ao fazer isso, também virar o mundo um pouco de cabeça para cima.

Acesse o portal: https://divulga.unila.edu.br/pocam/

Referências

AGÊNCIA GOV. Qual o modo de ver o mundo? IBGE lança mapa com o Brasil no centro e o Sul no topo. 06 de maio de 2025. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202505/qual-modo-de-ver-o-mundo-ibge-mapa-brasil-centro-sul-no-topo

HARLEY, J. B. Deconstructing the map. In: COSGROVE, Denis (Ed.). Mappings. Londres: Reaktion Books, 1989.

O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.

MARINI, Jerônimo. Planisfério de Jerônimo Marini, 1511. In: MAPAS HISTÓRICOS. Disponível em: http://www.mapas-historicos.com/jeronimo-marini.htm. Acesso em: 06 de maio de 2025.

Kelvin Mateus Alves, egresso do curso de Licenciatura em História na UNILA.

Revisão: Rosangela de Jesus Silva, professora da área de História na UNILA.

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