Começamos a apresentar hoje no blog uma entrevista que nos
levará a pensar um tema de grande interesse atualmente, especialmente
importante para nós que produzimos e difundimos história pela internet: as
mudanças que a era digital trouxe para o trabalho dos historiadores. Nosso
entrevistado é Pedro Telles da Silveira, atualmente doutorando na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que possui mestrado em História pela
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Sua dissertação, sob orientação do
professor Fernando Nicolazzi, intitulada O
cego e o coxo: historiografia, erudição e retórica no Brasil do século XVIII,
foi publicada em livro em 2016, pela FAP-UNIFESP de São Paulo. Após dedicar-se
a estudos voltados à erudição histórica, Pedro Telles da Silveira têm se
debruçado sobre questões relativas à história
digital. O impacto de novas formas de arquivo digital e suas implicações
para noções fundamentais para os historiadores, como documento, evidência e
acontecimento, têm sido alguns dos temas de seu trabalho. Nessa entrevista,
conversaremos com o pesquisador sobre esses temas, de grande relevância para
historiadores e estudantes de história, confrontados com essa realidade cuja
presença já nos parece tão evidente que os riscos de uma naturalização dos
procedimentos de pesquisa na era digital se afiguram cada vez maiores.
Pedro Telles da
Silveira, primeiramente muito obrigado por aceitar o convite do blog. Você tem
estudado as mudanças provocadas na prática dos historiadores pelo contato com
arquivos digitais. Em relação à noção de documento, quais seriam, em resumo,
essas alterações?
O documento está no cerne de meu trabalho e também da
recepção dos debates da história digital. Percebo que existe uma grande
inquietação com o uso de fontes digitais, especialmente aquelas que não possuem
correspondente físico, chamadas born
digital, ou seja, geradas digitalmente. Essas fontes inquietam por sua
instabilidade (os links podem ser deletados rapidamente, elas são editadas com
frequência etc.) e por sua abundância, de modo que se torna difícil fazer o
recorte do que é interessante ou não enquanto fontes históricas. Por outro
lado, também percebo uma grande aceitação das iniciativas de digitalização de
fontes históricas manuscritas e impressas, agora passíveis de serem acessadas
com facilidade até então inaudita. Pode-se dizer, portanto, que existe uma
abundância de fontes positiva e outra, negativa. A primeira, relacionada aos
acervos digitalizados e à facilidade que isso provê à pesquisa histórica; a
última, pensada com relação aos novos tipos de fontes digitais com os quais os
historiadores, no geral, ainda não aprenderam a trabalhar. Percebe-se, desse
modo, que as fontes digitais só se tornam um problema reconhecido quando
desafiam a imagem que os historiadores e historiadoras fazem de seu ofício e os
métodos que aprenderam a utilizar em suas trajetórias de pesquisa. Sobre isso,
porém, gostaria de falar em outro momento.
Retornando
ao tema anterior, de forma surpreendente (ou nem tanto, talvez), me parece que,
nessa abundância positiva de fontes ocasionada pela digitalização de acervos,
reforçou-se algumas injunções ou imperativos ligados à exaustividade do
trabalho histórico que constituíram seu ethos
tradicional. Se há alguns anos se destacava que a nova paisagem intelectual e
tecnológica tornaria impossível o sonho do historiador ou da historiadora de
lerem “tudo” que estava disponível sobre certo assunto, parece-me que hoje
existe uma cobrança maior justamente devido à essa facilidade de acesso. “Como
assim você não leu estas fontes, se hoje em dia é tão fácil lê-las, comparado
com a minha época...?” ou “porque você não incorporou este artigo em sua
revisão bibliográfica, se temos acesso a periódicos do mundo todo?”, são frases
que ouvimos ou poderemos ouvir em algum momento. Ou podemos pensar em algo mais
prosaico ainda, o aspecto de “vício” que adquire muitas vezes a busca de
bibliografia online, principalmente nos sites que garantem o acesso ilegal à
produção acadêmica internacional. Com esses exemplos, percebe-se que os
historiadores e historiadoras têm dificuldade em selecionar os materiais em
todas as etapas que constituem suas pesquisas, para não falar de uma
credibilidade reforçada que é dada às fontes ou à diligência dos historiadores
e historiadoras acima de todos os outros aspectos de seu trabalho, como seu
juízo crítico ou sua argúcia interpretativa e que caminham na direção contrária
de nossa premente necessidade de sínteses.
Parece-me,
portanto, que existem duas reações básicas que só em aparência são diferentes.
Uma é a consolidação dos requisitos tradicionais do métier, outra, o temor de que esses preceitos básicos não sejam
atendidos. Em ambos os casos, todavia, não se volta as questões justamente para
o que compõe esse métier ou ofício do
historiador, assim como não se discute substancialmente o que são os documentos
digitais. É aqui que procuro inserir meu trabalho.
Em minha
opinião, os documentos digitais trazem questionamentos que não podem ser
inseridos de forma fácil ou simples numa narrativa que percebe o progressivo
alargamento do campo das fontes utilizadas pelos historiadores e historiadoras.
Não é como se tivéssemos passado do documento escrito para incorporar as
imagens pictóricas, depois o cinema e o vídeo, as fontes orais e, por fim, as
fontes digitais. Embora se possa dizer que todo tipo de documento possui
características que os outros não têm, em meu trabalho procuro argumentar que
as fontes digitais acabam por questionar justamente os pressupostos sobre os quais
se assentam nossa definição tradicional de fonte ou documento histórico.
Para além
de uma série de propriedades como aquelas destacadas por Lev Manovich a
respeito das novas mídias, tais como
a representação numérica, a modularidade, a variabilidade e a transcodificação
(MANOVICH, 2011, pp. 27-30), tenho trabalhado com as fontes digitais segundo o
conceito de imagem técnica, de Vilém
Flusser (2008; 2011). Imagem técnica
é, a princípio, toda imagem gerada por equipamentos e procedimentos técnicos ou
tecnológicos, e não pela mão humana. Existe, assim, um deslocamento do papel do
humano na criação dessas imagens. Isso as coloca em outro plano com relação aos
nossos sentidos. Pode-se pensar, por exemplo, numa pintura e numa imagem
digitalizada. Enquanto a pintura é o resultado de um ato que busca criar uma representação do mundo ou de algo nele
existente, uma imagem digitalizada é a apresentação
de um resultado condicionado pelas capacidades técnicas do hardware e do
software de edição de imagens e que, ao invés de proceder pela sobreposição de
camadas de tinta, reúne dados numéricos e pixels em uma forma que, aos nossos
olhos, se parece com uma imagem, mas não o é necessariamente. Como afirma outro
autor, o historiador da mídia alemão Wolfgang Ernst, multimídia é um termo
enganador, pois o computador trabalha apenas com uma “mídia”, o numérico
(ERNST, 2012, p. 71).
Tenho
procurado pensar as fontes digitais, independente de sua origem, sob o nome de fontes técnicas. Elas são criadas e
lidas por máquinas que fazem a intermediação entre o dado bruto e sua forma
perceptível aos olhos humanos. E, ao se considerar a presença de procedimentos
técnicos, maquínicos, creio que se questiona o coração do que se define por
fonte histórica. Normalmente as fontes são concebidas como vestígios ou indícios, o
que as coloca em uma relação de subtração com relação ao passado. “De tudo que
foi o passado, estes vestígios são o
que sobrou para nós...”. No caso das fontes digitais, a relação é inversa. Sua
criação não é motivada por um fator externo, como a pegada é causada pela
passagem de um indivíduo ou animal pela terra. Nesse sentido, elas são sempre
uma criação e, enquanto tal, se colocam numa relação de adição com relação ao
mundo, apresentando sempre mais do que havia nele antes de existirem.
Inverte-se a relação e é possível, então, que tenhamos mais “todos” do que
partes. Isso explicaria a desorientação causada pelo excesso de registros,
assim como possibilita pensar em “cópias” que vêm antes de seus “originais”,
até ao ponto de invalidar a própria distinção entre original e cópia...
Creio
que esse é o campo de problemas que se abre com a consideração dos documentos
digitais. Ainda não possuímos o vocabulário conceitual tampouco os
procedimentos críticos para abordá-las como se fossem mais uma das fontes históricas. Talvez nunca os tenhamos. Parece-me
que podemos abordá-las, no entanto, removendo-as do âmbito dos indícios, segundo a terminologia de Paul
Ricoeur, para levá-las ao pólo do testemunho.
Segundo Ricoeur, o indício é decifrado, enquanto o testemunho é interpretado.
Se isso se aplicar às novas fontes digitais, então os indícios são cada vez
mais passíveis de interpretação, aliás como encontramos cotidianamente em nossa
experiência política. O que isso significa é que a realidade como termo
mediador a garantir a fidelidade de nossos relatos históricos se tornará cada
vez mais um campo em disputa, em interpretação.
Referências: ERNST, Wolfgang. Digital
Memory and the Archive. Minneapolis: University of Minneapolis Press, 2012.
FLUSSER, Vilém. Filosofia
da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo:
Annablume, 2011.
_____. O universo das
imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
MANOVICH, Lev. The Language
of New Media. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2011.
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos