Quanto do trabalho dos historiadores consiste em “contar
histórias”? Isto é, qual o papel da narrativa na escrita da história? Essa
questão provocou intensos debates ao longo das últimas décadas entre
historiadores e teóricos da história, sobretudo pela possibilidade de
aproximação entre o que faz o historiador e o que fazem romancistas e
escritores em geral.
Em linhas gerais, a discussão se estabeleceu, no mundo
anglo-saxão, em meados do século XX, a respeito do que significa compreender um
texto de história. Para alguns filósofos da história (como W. B. Gallie, Arthur
Danto e Morton White), compreender uma obra de historiador seria basicamente
reconhecer os traços característicos da narrativa que este constrói. Ou seja,
para entendermos história teríamos de nos valer das mesmas operações de
compreensão que utilizamos para compreender qualquer narrativa ou história que
nos é contada, ou que lemos. Entender quem
fez o quê, onde e quando, em uma
sequência de eventos, cuja lógica nos leva a pensar no que veio antes e no que
virá depois (nos fatos antecedentes e nos fatos subsequentes). Por outro lado,
Maurice Mandelbaum defendeu que os historiadores não contam histórias,
simplesmente, mas realizam inquéritos,
investigações. Nesse sentido (e retomando posição já presente em R. G. Collingwood),
para Mandelbaum, compreender história é acompanhar o jogo de perguntas e
respostas que os historiadores fazem com suas fontes. Cada parte de sua
narrativa não se relaciona com a parte que veio antes e com a que virá depois,
mas com o todo, isto é, com a
investigação geral que realiza o historiador, com a pergunta central que este
busca responder em seu trabalho.
Ao longo do século XX, porém, em processo que vinha desde o
século XIX, houve uma tendência, entre algumas correntes historiográficas, de considerar
a narrativa uma forma não-científica de apresentação dos resultados de
pesquisa. Tal atitude seria característica, por exemplo, da segunda geração da
Escola dos Annales, e da história
quantitativa. Considerando que a história procurou estabelecer seu estatuto de
conhecimento científico diferenciando-se, ao longo do século XIX, da literatura
(pois antes a história estava ligada à retórica, e era considerada um gênero da
prosa), a rejeição da narrativa viria como consequência desse processo. A tal
ponto a história esteve ligada à literatura que em 1902 o Prêmio Nobel de
Literatura foi concedido ao historiador alemão Theodor Mommsen (1817-1903),
grande estudioso da história romana. Se no último ano assistimos à polêmica surgida
pela concessão do prêmio ao cantor e compositor americano Bob Dylan, o que
pensaríamos se um historiador, atualmente, voltasse a receber a honraria?
Caricatura de Theodor
Mommsen, Prêmio Nobel de Literatura de 1902 (extraída de http://www.uzh.ch/en/about/portrait/nobelprize/mommsen.html,
acesso em 22 de junho de 2017). Ao lado, foto de Bob Dylan, Nobel de Literatura
de 2016 (extraída de http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/2016/dylan-facts.html,
acesso em 22 de junho de 2017).
A atitude de rejeição à narrativa sofreu forte revisão entre
os historiadores a partir da década de 1970, levando ao que o historiador inglês
Lawrence Stone chamou de “O retorno da narrativa”, em artigo publicado
originalmente em 1979. Uma revalorização da história política, das biografias
históricas, e a crítica a modelos estruturalistas ou funcionalistas de
descrever a história levaram a uma revisão da importância da narrativa para
compreensão das experiências de vida estudadas pelos historiadores. Novas
abordagens como a micro-história também mostraram essa importância para o
estudo de pessoas comuns na história.
Dessa maneira, entre os anos 1970 e 1980 relevantes
trabalhos de teoria da história e história da historiografia se voltaram para a
narrativa. É o caso de Tempo e narrativa
(três volumes, 1984-1988), do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005),
voltado para pensar o papel da narrativa na organização da experiência e na
escrita da história. O trabalho mais polêmico, talvez, seja Meta-história (1973), de Hayden White,
por considerar a escrita de uma narrativa o cerne do trabalho do historiador,
mais do que a pesquisa de fontes ou a busca pela verdade histórica. Assim, para
White, o que faz o historiador não difere essencialmente do que fazem os
escritores de ficção.
Nesse período surgiram inclusive defesas mais radicais do
papel da narrativa. Para o filósofo americano David Carr, em “A narrativa e o
mundo real: um argumento em favor da continuidade” (original em inglês de
1986), a narrativa não seria algo que impomos à nossa experiência, para dotá-la
de sentido. Seria, antes, parte dessa própria experiência: vivemos narrativas, nos posicionamos constantemente como
protagonistas, leitores ou narradores do mundo real.
Tais debates colocaram no centro do trabalho do historiador
sua escrita: sua capacidade (e necessidade) de narrar para transmitir seu conhecimento,
ou passar ao leitor a compreensão das experiências históricas de que trata.
Continuaremos no próximo post do blog a discutir esse tema, que trazemos aqui a
partir das aulas da disciplina de “Teoria e Metodologia da História:
Modernidades e Narrativas”, oferecida pelo curso de História – América Latina
ao curso de Letras, Artes e Mediação Cultural (LAMC) da UNILA. Nossos
agradecimentos aos estudantes da disciplina pelos debates realizados nas aulas.
Indicações de leitura:
CARR, David. “La
narrativa y el mundo real: un argumento en favor de la continuidad”. Revista de la dirección de estudios
históricos del Instituto Nacional de Antropología e Historia, Número 14
México, D.F. Julio-Septiembre 1986, p. 15-28.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas, SP:
Papirus, 1994 (três volumes).
WHITE, Hayden. Meta-história:
a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2008 [1973].
Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos