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A importância da documentação: arquivos, diários e testemunhos da pandemia


Poucos anos (ou épocas) tiveram tanta clareza daquilo que os marcará historicamente quanto o ano de 2020. Começamos a escrever esta postagem em meados de abril; com cerca de três meses e meio do ano de 2020, parece não haver dúvidas de como o presente ano será lembrado. Ao menos nós, que o vivemos, parecemos certos do que recordaremos de 2020 no futuro.

Uma certeza tão clara daquilo que marca nossa época tem gerado um impulso de deixar a experiência da pandemia e da quarentena (a forma como a pandemia impacta nossas vidas no cotidiano) registradas e documentadas para a posterioridade. O blog Café História nos noticia duas iniciativas que envolvem historiadores profissionais: na Alemanha, um grupo de historiadores decidiu criar uma plataforma online que servirá de arquivo da pandemia, um “Coronarquivo” (https://www.cafehistoria.com.br/https-www-cafehistoria-com-br-memorias-da-pandemia-do-novo-coronavirus/?fbclid=IwAR2wdJXxyuqen0n0usNsfk_gnwf6GBa-X4cNRmqGnFNwK5pyosfSWcK1NOU, acesso em 17/04/2020). A plataforma, disponível em alemão (https://coronarchiv.geschichte.uni-hamburg.de/projector/s/coronarchiv/page/willkommen, acesso em 17/04/2020) permite aos usuários carregar diferentes documentos de suas experiências de pandemia e quarentena (vídeos, áudio, imagens, relatos escritos, entre outros). A ideia dos historiadores alemães é estabelecer parcerias com museus do país, integrando o arquivo a coleções de cultura material.

Usuário alemão enviou à plataforma do “Coronarchiv” imagem de sua vizinhança na primeira semana de isolamento em Berlim, notando que nunca vira tantas pessoas em casa à noite (https://coronarchiv.geschichte.uni-hamburg.de/projector/s/coronarchiv/item/2137, acesso em 23/04/2020)


Por outro lado, nos EUA, a Associação dos Historiadores Públicos do Estado de Nova Iorque pediu a seus associados que documentem suas experiências da pandemia (https://www.cafehistoria.com.br/associacao-pede-a-historiadores-que-documentem-a-pandemia-de-coronavirus/?fbclid=IwAR3U9H6bFAlooQ7aY-TM_e6rN8T2nS3WJ9sNPZqC_AC7d4W3FV2kaMKtsZc, acesso em 17/04/2020). A iniciativa ressalta a necessidade, pelos historiadores, de se preocuparem não apenas com a documentação do passado, mas também com os registros do presente. Ambas as iniciativas, na Alemanha e nos Estados Unidos, partem de historiadores que se identificam com a História Pública, uma vertente atenta às formas de produção e circulação da história fora das academias.

Em proposta semelhante, uma escola de design também de Nova Iorque (a Parsons School of Design) lançou projeto chamado de Atlas of Everyday Objects (Atlas de Objetos do Cotidiano, em http://www.observationalpractices.org/atlas-of-everyday-objects/, acesso em 23/04/2020). O projeto convida pessoas a fazerem montagens de fotos nas redes sociais retratando objetos do dia a dia que ganharam novos significados em tempos de confinamento e isolamento social (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/13/O-projeto-que-re%C3%BAne-os-objetos-pessoais-que-marcam-o-isolamento?utm_campaign=a_nexo&utm_source=newsletter, acesso em 17/04/2020). Sacos de farinha, por exemplo, ganharam presença mais constante em algumas casas, com a adoção do costume de fazer pão em casa.

Relembrar o desenvolvimento da Covid-19 pelo mundo, ao mesmo em que recordavam o que faziam enquanto o novo coronavírus se alastrava, foi o ponto de partida da iniciativa dos historiadores brasileiros Valdei Lopes de Araujo e Mateus Henrique de Faria Pereira, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Ambos compilaram um diário dos primeiros cem dias da doença, desde que a China informou à OMS a existência do novo vírus, em 31 de dezembro de 2019 (https://jornalistaslivres.org/covid-19-100-dias-que-mudarao-o-mundo/?fbclid=IwAR231Sds2V0aKjRfjzUFVEFsLnOhHtu5s7qAOA8I0mdDS_oxByW36CDV1QU, acesso em 17/04/2020). O diário, mesclando as notícias sobre o alastramento do vírus com o diário pessoal do cotidiano dos próprios historiadores, produz um efeito muito interessante nos leitores, lembrando-nos a velocidade com que nosso dia a dia foi modificado a partir das medidas de contenção do vírus. Paralelamente, o diário dos 100 primeiros dias da Covid-19 transforma em história nossas últimas semanas (literalmente), numa história imediata. Essa transformação em história não significa transformação em um passado fechado e acabado; antes, significa a abertura para reflexão desse tempo que ainda é o nosso, fazendo-nos ver como a situação se desenvolveu - e como poderia ter se desenvolvido, quais escolhas foram feitas, e em que momentos, determinando os rumos da resposta humana à pandemia.

Pichação em Hamburgo, Alemanha, onde se lê: “Corona é luta de classes”. Foto feita em 30 de março de 2020 (https://coronarchiv.geschichte.uni-hamburg.de/projector/s/coronarchiv/item/2054, acesso em 23/04/2020).

Como essas, outras iniciativas pelo mundo têm, de alguma forma, documentado as experiências pessoais da pandemia do Covid-19. O significado de documento é, nestes casos, amplo e criativo, envolvendo todo aspecto (material e imaterial) e vestígio de nossas vidas que se transformou em símbolo da situação atual, e que, futuramente, será um gatilho para nossas memórias, trazendo de volta os dias passados num contexto, para as atuais gerações, praticamente sem precedentes. O registro garante que evitemos esquecimentos sumários (que podem servir a propósitos políticos nos debates sobre responsabilidades e alternativas diante da crise), e nos permite marcar um antes e depois, assinalando, pela introdução de novas práticas e objetos a nosso cotidiano, e ressignificação de outros, as mudanças que sentimos hoje. Como historiadores, a preocupação com a documentação nos lembra constantemente nossa ligação com a ideia de arquivo (seja ele uma instituição, um conjunto de memórias, ou nossas próprias bibliotecas e pertences), e o caráter social da escrita da história, impossível sem um trabalho socialmente disseminado e difuso de preservação de vestígios do passado. Para os historiadores, documentar e registrar são também peças fundamentais na garantia da riqueza de futuras visões retrospectivas do que vivemos agora, visões que possam mostrar de diversos ângulos como as diferentes esferas de nossa vida foram afetadas em 2020. Pois, apesar de alguns eventos históricos parecerem impor-se à consciência daqueles que os presenciam, como é o caso da Covid-19 em 2020, é importante lembrar que, para os historiadores, um evento histórico não necessariamente é algo totalmente perceptível, à primeira vista, para seus contemporâneos. Que novas transformações podem estar acontecendo em nossas vidas, que não estamos percebendo, ao longo de 2020? Para garantir que possamos escrever a história dessas transformações, desde as mais visíveis, até as mais sutis, nossos arquivos pessoais, relatos e lembranças pedem um tratamento especial.

Obs.: Os direitos de reprodução das imagens pertencem aos usuários e à plataforma Coronarchiv.

Prof. Pedro Afonso Cristovão dos Santos (UNILA)



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