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A peste enquanto metáfora: política e doença

Esse texto foi escrito para introduzir a obra do filósofo e escritor Albert Camus, no intuito de comparar para compreender as atuais questões políticas-filosóficas construídas ao longo da história em meio ao avanço da extrema direita em paralelo com a pandemia de Coronavírus. Retomamos aqui as reflexões de postagem anterior do blog, em que utilizamos o pensamento de Camus para pensar as revoltas contra o racismo.


A peste (1947) é considerada a grande obra do filósofo Albert Camus, embora no Brasil O estrangeiro (1942) seja sua obra mais lida. Como escritor, Camus ganhou o prêmio Nobel em 1957. Três anos depois, o autor sofreu um fatal acidente de carro que lhe custou a vida com apenas 46 anos de idade.
O romance foi publicado em 1947, durante os últimos anos da segunda guerra mundial e sua história se passa em uma cidadezinha da Argélia, chamada Oran. No início da obra, descobrimos a cidade, que era tranquila, pacata e para os mais céticos, banal. A cidade não possuía muitos acontecimentos além daqueles já previstos pela rotina, até que em um dia o bacilo da peste chegou.

“Em Oran como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.”

No início da narrativa os leitores acompanham o dia do médico da cidade, o Dr. Rieux;  enquanto surgia na população um estranhamento quanto ao números de ratos emergindo na cidade e agonizando até a morte, um indicativo de que  algo estava errado naquele contexto.
Para além desse fato, uma febre estava acometendo, em casos ainda isolados, a população, o que gerava uma complexidade maior por se tratar de vidas humanas, que se esvaíam em condições lastimáveis.
Depois de acompanhar esse cenário, o Dr. Rieux, correlacionando os acontecimentos, já não tinha dúvidas ao dar o temido diagnóstico: não poderia ser outra coisa, se não fosse ela, a Peste.

Capa de edição de bolso de A Peste. Fonte: https://br.pinterest.com/pin/454019206161980313/, acesso em 22/06/2020

O perfil dos personagens da história representa metáforas, que são utilizadas para pensar sobre os papéis e deveres dos sujeitos em uma sociedade aterrorizada pelo absurdo. O protagonista da história, Dr. Bernard Rieux, representa a importância da ética da medicina, e é a personificação do homem revoltado, tema que Camus desenvolve  em seu ensaio filosófico O Homem Revoltado (1951). Mesmo à frente do absurdo e da impotência, enfrenta o bacilo da peste, o inimigo invisível.
O personagem coadjuvante Jean Tarrou é uma grande incógnita aos leitores, já que nada de seu passado é revelado, entretanto, assim como Rieux, Tarrou é um grande humanista que personifica a revolta, não aceita o absurdo e o recusa, resistindo mesmo que nesse caso a resistência leve à morte.
O jornalista parisiense, Raymond Rambert, representa na história a liberdade de expressão. Estando em Oran a trabalho, com o intuito de pesquisar sobre as condições de vida dos Árabes, quando o governo local instaura o estado de sítio, é separado do grande amor de sua vida. Na narrativa o personagem é obrigado a perder sua liberdade e lutar contra a peste.
O personagem ex-suicida Cottard representa na narrativa o sistema capitalista, para ele, assim como para o capitalismo, a crise representa algo de positivo, pois em meio a peste ele encontra a oportunidade precisa para driblar a fiscalização. Cottard precisa da crise para sobreviver.
O Padre Paneloux, representa a instituição da igreja e com a peste, passa exercer em Oran o papel de pregar sermões públicos, quase sempre afirmando que a peste era uma punição divina. Neste quesito, o personagem torna-se de suma importância para a discussão moral na obra.

No romance A peste, Camus trabalha com a experiência da morte, como ela é estranha para os sujeitos, sem aviso e repentina, o que gera o sentimento de absurdo para vida. Porém, há maneiras de escapar do sentimento de absurdo, que no entanto são altamente condenáveis, já que para optarmos por elas, somos obrigados a abrir mão da revolta ou da própria vida, como atentou Cottard.
Além do suicídio pessoal, para Camus existem outras formas de suicidar-se, que são tão condenáveis quanto atentar contra própria vida, como: o suicídio político que o sujeito comete quando escolhe a alienação ideológica; e o suicídio filosófico, no qual o sujeito abre mão da revolta e aceita o absurdo para si, buscando encontrar o agradável e não o verdadeiro.
Camus defende que há muito tempo os filósofos versam sobre a vida que vale a pena ser vivida, mas se isso é realmente importante, versar sobre a desistência dela também deveria ser. Aliás, muitos sujeitos já cometeram algum tipo de suicídio justamente por não encontrarem na vida verdadeiro sentido. A questão sobre o Sentido da Vida (ou a falta dele) é fundamental para a humanidade.

Reprodução de Guernica (1937), de Pablo Picasso. Fonte: https://medium.com/revista-subjetiva/fascismo-um-checklist-92d9b5207915, acesso em 22/06/2020

Para o Dr. Rieux, mesmo que a peste não tenha um significado subliminar, como para o padre Paneloux que acreditava em castigo divino mesmo que todos naquela narrativa fossem atingidos ou não pelo bacilo da peste, pelos princípios éticos da medicina, ele continuaria a lutar.
 O sentido que o protagonista encontra para sua vida está na ação de fazer algo com o fim em si mesmo, mesmo sabendo a priori que sua ação não terá força de potência suficiente para combater a peste, ele a nega e para concretizar isso luta contra ela.
Em Camus, o significado de aceitar a não existência de Deus, é aceitar que somos livres para construir um sentido para nossa própria existência, pois o sentido da vida não está e não poderia estar nas coisas exteriores ao próprio sujeito. Com a revolta Camusiana, o sujeito torna-se capaz de reconhecer e superar o absurdo.
Essas questões são abordadas de maneiras diversas no romance, por exemplo na construção da persona de Tarrou que enfrenta o absurdo sem usar conceitos exteriores, aos quais ele não sabe se são verdadeiros. Em um determinado momento, Tarrou diz querer ser um “santo sem deus”. Em outras palavras é exatamente o que Camus defendeu em sua filosofia: é preciso cravar as unhas no abismo do nada e viver com o que se tirou de lá, reconhecendo o absurdo para então enfrentá-lo e não o aceitar passivamente.
Ao pontuar a escolha da morte pela peste - dolorosa, repentina e incurável -, Camus usa a alegoria ideal para representar o que chamou de “Peste marrom”, o nazismo.  Entretanto o filósofo defende que infelizmente o Nazi-Fascismo é como o bacilo da peste, ele não morre, apenas espera o seu momento ideal para retornar e aterrorizar nossas vidas. Portanto, precisamos sempre estar prontos para reconhecer o absurdo e contra ele se revoltar, caso contrário a existência estará condenada ao suicídio, seja ele o pessoal ou político-filosófico.  

          A Peste voltou a ser buscada por leitores nesse contexto de pandemia, ao lado de outras obras que nos ajudam a pensar a invasão da vida cotidiana por doenças e comportamentos que desafiam nosso "normal", como Ensaio sobre a Cegueira, do autor português José Saramago.

Referências e recomendações:


Gilson José de Oliveira Neto

Revisão: Pedro Afonso Cristovão dos Santos

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