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Sandra Jatahy Pesavento e a História Cultural: a entrada em cena de um novo olhar

 

Semana passada, abordamos no blog leituras sobre a música enquanto fonte e objeto de estudo dos historiadores a partir do olhar da História Cultural, por meio das reflexões de José Geraldo Vinci de Moraes e Sandra Pesavento. Na postagem de hoje, nos deteremos um pouco mais na obra de Sandra Jatahy Pesavento (1946 - 2009), aprofundando sua visão sobre História Cultural.

Sandra Pesavento possuía graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1969), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1978) e doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (1987). Além disso, a autora realizou três pós-doutoramentos em Paris. Atuava nas áreas de História, com ênfase em História do Brasil, trabalhando com temas em história cultural, história cultural urbana, imaginário e representações, história e literatura, e patrimônio e memória.

 

Capa de História & História Cultural, de Sandra Jatahy Pesavento. Imagem disponível em 

No terceiro capítulo da obra História e História da Cultura (2003), Sandra Jatahy aborda inicialmente as mudanças epistemológicas que ocorreram para fundamentar o olhar da História para este novo campo nomeado de História Cultural. Segundo a autora, o conceito de representação, categoria central da História Cultural, incorporado pela História no início do século XX, foi o primeiro a reorientar a postura dos historiadores frente a essas novas mudanças epistemológicas.  A ideia central da Representação é o da substituição que representa o ausente; no entanto, essa representação não pretende ser uma cópia do real ou sua imagem perfeita, mas sim uma construção criada a partir da própria realidade.

A historiadora esclarece então que a representação envolve ao menos seis processos: percepção e identificação; reconhecimento e classificação; e legitimação e exclusão. Portanto, a potência da representação não se dá pelo seu valor de verdade, ao contrário, pois ele implica em eliminar do campo de análise a tradicional dicotomia entre o real e o não real. A representação pode ter a potencialidade de substituir a realidade que ela representa, construindo um mundo paralelo de sinais onde os sujeitos “vivem”. Por fim, Sandra Jatahy argumenta que o(a) historiador(a) fica diante de representações do passado que se constituem como fontes através de seu olhar, toma a fonte como uma representação do passado, e entende que a realidade do passado só pode chegar a ele(a) por meio das representações.

Neste ponto, a autora apresenta um novo conceito que faz parte das mudanças epistemológicas propostas pela História Cultural, o conceito de imaginário. Aqui, o imaginário é entendido como um sistema de ideias e imagens de representações coletivas que os sujeitos constroem em si e para si em todas as épocas com o intuito de aplicar algum sentido ao mundo. Dito isso, pode-se afirmar que o imaginário é uma categoria fundamental para exprimir a capacidade dos sujeitos de representar o mundo historicamente.

Segundo a autora, com o advento da História Cultural o imaginário se torna um conceito central para a análise do real, pois, ao traduzir a experiência do vivido e também do não vivido (expectativas), percebe-se que o real é em si uma referência da construção imaginária das pessoas sobre o mundo. No entanto, o mundo não é o reflexo da imaginação, mas as referências sobre o que é o mundo, ou como ele deveria ser, são. Nessa medida, a construção imaginária do mundo é capaz de substituir o real concreto, pois é primeiro pelo imaginário que os sujeitos conduzem a sua existência no mundo.

Outra concepção levantada por Sandra Jatahy ao refletir sobre os efeitos da História Cultural foi a de narrativa. Uma narrativa é um relato que segue uma sequência de ações e reações conectadas umas às outras; dito isso, a narrativa da História é precisamente o relato do que realmente aconteceu, distinguindo-se da Literatura, que traz a narrativa do que poderia ter acontecido. O historiador, portanto, pretende alcançar a narrativa verdadeira,  estabelecendo, por meio de teorias e métodos, um pacto com a “verdade-realidade”.

A partir do uso da narrativa, o historiador deve ser um mediador entre o real e o não real, realizando uma seleção de dados e os disponibilizando-os em uma sequência, dando inteligibilidade ao texto, reconstruindo, pois, o passado buscando consumar o pacto estabelecido com a Verdade. No entanto, a narrativa que o historiador constrói gera um terceiro tempo, que não está no passado do acontecido, e nem no presente da escritura. Assim sendo, este terceiro tempo gerado pelo texto narrado pode ser considerado uma invenção/ficção criada pelo historiador.

A narrativa ocupa o lugar do passado e substitui-o e o historiador deve ter em mente que a verdade deve estar no seu trabalho de escrita da História como um horizonte a ser alcançado, sabendo a priori que a História não é constituída por uma verdade única e absoluta. Portanto, é mais preciso afirmarmos que a História estabelece regimes de verdade e não certezas concretas.

A partir disso, o conceito de Ficção também passa a fazer parte desta nova epistemologia proposta pela História Cultural. Espera-se da História uma construção das experiências do passado, porém, nada é simplesmente colhido do passado pelo historiador como uma verdade absoluta, ou como uma História dada. O historiador inventa o mundo dentro de um horizonte de aproximação com a realidade, e a distância temporal entre a escritura da história e o objeto da narrativa potencializa essa ficção. Contudo, a expectativa do historiador é de encontrar com a narrativa uma verdade sobre o passado. O discurso histórico, pois, mesmo operando pela verossimilhança e não pela veracidade, produz um efeito de verdade, sendo uma narrativa que se propõe como verídica, substituindo o lugar do passado.

Outro conceito que se impõe com as mudanças epistemológicas implicadas no fazer de uma História Cultural diz respeito a algo que se encontra no centro do que o historiador pretende compreender na pesquisa histórica, as sensibilidades. Isso porque as sensibilidades correspondem a um núcleo primário de percepção e tradução da experiência humana no mundo.  Portanto, as sensibilidades traduzem as formas pelas quais os grupos e indivíduos se percebiam, por meio das emoções e dos sentidos humanos. Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a capturar do passado, pois essa é a própria energia da existência.

Retorna aqui, na análise das sensibilidades, a reflexão de que, se a História é uma espécie de ficção, ela é ao menos uma ficção controlada, sobretudo pelas fontes, que atrelam a criação do historiador aos traços deixados pelo passado. Portanto, o historiador precisa encontrar a tradução das subjetividades dos sentimentos em materialidades, objetos palpáveis, que operem como a manifestação exterior de uma experiência íntima, individual ou coletiva.

Em suma, a representação do imaginário, o retorno à narrativa e a entrada em cena da ficção junto às sensibilidades, levam os historiadores a repensar as possibilidades de acesso ao passado na reconfiguração de uma temporalidade, pois, colocam em evidência a escrita da história e a leitura dos textos e demais vestígios do passado convertidos em fontes pelos historiadores.

 

Referências e sugestões de consulta:

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

Acervo de Sandra Jatahy Pesavento, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul: https://ihgrgs.org.br/arquivo/Acervo_SJP.pdf


Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História – América Latina da UNILA

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