Pular para o conteúdo principal

As inter-relações entre os conceitos de Gênero, Raça e Sexualidade: o pensamento de Ochy Curiel e María Lugones

 Pretendemos desenvolver nesta postagem um diálogo entre o artigo “Gênero, raça e sexualidade, debates contemporâneos” de Ochy Curiel, uma das mais importantes teóricas feministas da América-Latina e Caribe; e o ensaio Colonialidade e Gênero de María Lugones, uma das pioneiras nos estudos de feminismo decolonial. Desse modo, buscamos refletir a respeito dos conceitos de Gênero e Raça e suas inter-relações na história da América-Latina.

A antropóloga e cantora Ochy Curiel. Imagem disponível em https://revistaidees.cat/wp-content/uploads/2020/01/def_Ochy_Curiel.jpg, acesso em 14/10/2021

A antropóloga afro-dominicana Rosa Inés Curiel Pichardo, mais conhecida pelo nome Ochy Curiel (1963-58 anos), pretende abordar em seu trabalho a genealogia dos conceitos de Gênero, Raça e Sexualidade dentro da estrutura do pensamento social. A autora busca contextualizar e relacionar os debates que cercam esses conceitos, considerando que as três categorias se encontram e se articulam na realidade, gerando efeitos materiais que concretizam as opressões em formas de subordinação, exclusões e assassinatos.

Para tanto, a autora se posiciona a partir da perspectiva teórica feminista, por ser uma proposta interdisciplinar que tem dado diversas contribuições importantes relacionadas às categorias de Sexo e Gênero. No entanto, não se esquece que uma análise que se proponha a interligar essas categorias deve abranger as formas em que o conceito de Raça foi implementado na América-Latina e no Caribe, uma vez que a ideia de Raça reproduz um Neocolonialismo que afeta principalmente as mulheres racializadas e pobres.

Segundo Ochy Curiel, com base na inter-relação dessas três categorias é possível compreender como a miscigenação enquanto ideologia nacionalista e homogeneizadora, através de uma lógica heteronormativa, permitiu que os homens se apropriassem e violassem dos corpos de mulheres negras e indígenas. Além do mais, essa inter-relação permite compreender como o regime da heterossexualidade afeta não só todas as mulheres, mas também todas as pessoas sem a sexualidade normativa.

A socióloga argentina María Lugones. Imagem disponível em https://claudia.abril.com.br/wp-content/uploads/2020/07/Lugones-667x1000-1.jpg?quality=85&strip=info&w=667&h=453&crop=1, acesso em 14/10/2021

Para dar continuidade ao diálogo sobre a inter-relação das categorias, a socióloga argentina María Lugones (1944-2020), investiga em seu ensaio Colonialidade e Gênero (2008), a intersecção entre Raça, Gênero e Sexualidade, a fim de dar uma resposta à indiferença dos homens em relação às violências sistêmicas que as mulheres de cor sofrem. Além do mais, a partir do conceito de "Colonialidade do Poder”, de Aníbal Quijano, a autora caracteriza o sistema de gênero como colonial/moderno, para entender o alcance destrutivo da imposição da heteronormatividade pelo poder colonial.

Para María Lugones, antes de tudo é necessário entender o lugar que o conceito de Gênero de modo geral ocupava nas sociedades pré-colombianas, pois somente assim pode-se compreender o seu desenvolvimento no processo de desintegração das relações igualitárias ligadas ao pensamento ritual e a autoridade na hora da tomada de decisões coletivas e econômicas. Portanto, segundo Lugones, há uma relação dialética entre a imposição do sistema de Gênero e a Colonialidade do Poder, sendo uma formada e sustentada pela outra.

Devido a isso, o Sistema de Gênero desenvolveu um lado Visível/Iluminado e um Oculto/Obscuro; o lado Visível/Iluminado constrói hegemonicamente o Gênero e suas as relações, dando forma ao significado Colonial/Moderno de “Homem”/“Mulher”, que  formam o sistema heterossexualista e que permeia o controle patriarcal e racializado da produção material e imaterial. Já o lado Oculto/Obscuro é caracterizado pela sua violência contra todos aqueles que não se enquadram na dualidade construída por esse Sistema.

Neste sentido, a inter-relação entre Gênero, Raça e Sexualidade, também defendida por Ochy Curiel, é essencial para mudar essa realidade. No entanto, essa prática requer novas estruturas interpretativas que levem em conta a complexidade desses fenômenos. Por isso, a autora identifica os grandes desafios que as ciências sociais precisam enfrentar:

  • Eliminar completamente a dicotomia entre natureza e cultura;
  • Reconhecer o feminismo como teoria social;
  • Reconhecer as contribuições do Feminismo crítico latino-americano para compreender as diferentes relações de poder e as inter-relações que ocorrem em torno das categorias de Raça, Sexo, Classe e Sexualidade;
  • Reconhecer o conhecimento que é produzido na região da América-Latina;
  • Reconhecer o conhecimento que é produzido a partir das práticas políticas dos Movimentos Sociais.

Por fim, para a antropóloga Ochy Curiel, a partir desses reconhecimentos é possível colocar as ciências sociais hegemônicas em um processo real de crise e descolonização. No entanto, María Lugones entende que há uma indiferença diante da violência sofrida pelas mulheres de cor, bem como há uma indiferença diante das transformações sociais nas estruturas comunais. Portanto, é necessário compreender a organização do aspecto social dessa estrutura de poder colonial, para que se torne visível a colaboração de cada indivíduo na manutenção da violência de gênero sistematicamente racializada, e isso dependerá de como cada cientista social e ativista se posiciona em relação ao mundo que quer construir.

 

Referências:

CURIEL, Ochy. Gênero, Raça, Sexualidade: Debates Contemporâneos. Disponível em: Microsoft Word - Javeriana _Conferencia_ (urosario.edu.co).

LUGONES, María. Colonialidade e Gênero. Worlds and Knowledge Otherwise, vol. 2, Dossiê 2, Abr 2008, Durham: Duke University, p. 1-17.

 

Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História – América Latina da UNILA

Postagens mais visitadas deste blog

A política cultural da Revolução Cubana: o suplemento cultural "El Caimán Barbudo".

El Caimán Barbudo surgiu no ano de 1966, como encarte dentro do jornal Juventud Rebelde. O encarte tinha como objetivo mostrar a capacidade intelectual existente dentro dos novos escritores dos anos 50 em diante em Cuba, ou seja, o que o diretor Jesús Díaz realmente queria era que a juventude intelectual começasse a se desprender dos escritores mais antigos, como é o exemplo de José Martí.   El Caimán Barbudo teve suas crises logo no início, pois no primeiro ano Jesús Díaz teve que abandonar a direção do suplemento devido a artigos polêmicos, principalmente artigos de Herberto Padilla. A saída de Jesús Díaz deu origem à segunda fase do suplemento, quando se intensifica o controle da União de Jovens Comunistas sobre o jornal Juventud Rebelde.   A Revolução começou a se fixar em Cuba e a partir de então começava uma grande discussão para definir como seriam as obras revolucionárias, escolhas essas não somente de tema, mas também de linguagem, como se evidenciou no segundo ...

Preservação ambiental x Modernidade: O caso das cataratas

A evolução das tecnologias e de seu progresso na sociedade moderna pode causar em nós a impressão de que os avanços tecnológicos são, ou serão em breve, capazes de corrigir os danos ambientais acumulados de um extenso período de uso e exploração de recursos naturais pela sociedade moderna, cada vez mais numerosa e caracterizada principalmente pelo consumo. Entretanto, se torna cada vez mais clara uma crise ambiental marcada pelas mudanças climáticas, pela poluição do ar, da água e do solo, impactando a vida das pessoas e as relações econômicas nas sociedades, causando desequilíbrio nos ecossistemas. A perspectiva caótica da crise somada a falta das aguardadas soluções tecnológicas sugere uma revisão dos valores colocados nas relações entre o homem e a natureza, em direção a um desenvolvimento que seja essencialmente sustentável.  Disponível em: Google Maps, 2024. Parque Nacional das Cataratas do Iguaçu, PR. -25°68'18.8"N, -54°43'98.2"W, elevation 100M. 3D map, Buildi...