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De onde eu venho

 

Retomamos as postagens do Blog de História da UNILA em 2022 com texto escrito pelos estudantes do Mestrado em História da UNILA Alveralicy da Costa Gomes, Tamiris Amancio e Cesar Steven Reina Rodriguez. A postagem aborda exemplos de tratamentos literários e visuais do racismo e controle das representações imagéticas de corpos subalternizados, em particular afro-latino-americanos. Literatura, artes visuais e história se combinam para adensar nossas perspectivas sobre questões fundamentais da experiência latino-americana.

 

De onde eu venho? Da periferia, da favela, da África. Para os de fora, o lugar de onde vêm, de onde falam, de onde vivem as pessoas negras, definem automaticamente sua história, e os relegam a um lugar de subalternizados. De onde eu venho? Em um sentido oposto, da periferia, da favela, da África, para as pessoas negras é sinônimo de luta, resistência, orgulho. É nesta busca de reafirmar o seu lugar, suas origens, sua diversidade cultural, religiosa, a cor da sua pele, seus corpos e saberes, contra aqueles que querem impor um único só lugar, uma única história e papel dentro da sociedade, que autores negros tendo a arte como instrumento, questionam e confrontam o determinismo racial. O conto “Espiral”, do livro Sol na cabeça, escrito por Geovani Martins[i] , e as obras de Liliana Angulo[ii] Negro Utópico, Mambo Negrita e Presencia Negra, são abordadas a partir de um diálogo texto-imagem, sendo desta forma projetos que representam arquivos de ações antirracistas sobre a reparação, as resistências e presença da população afro latino-americana, chamando a atenção pontualmente para as relações de poder ao redor da imagem, o território e o corpo na cultura contemporânea.

No conto “Espiral” o personagem-narrador relata a experiência de como é percebido desde sua infância por uma sociedade criadora de imaginários excludentes. A história se desenvolve a partir de uma narrativa que denuncia a intimidação que sofrem os corpos favelados. Reiteradas vezes o personagem principal do conto vê-se sem situações em que pessoas de bairros abastados localizados próximos à favela onde vive respondem negativamente a sua presença, seguram suas bolsas firmes, olham com horror e indiferença, se afastam imediatamente ao vê-lo. Este comportamento denota sintomas da aporofobia que possuem, funcionando como performance de sua discriminação social e racial. Temos um ponto de virada quando mais uma vez ao se confrontar com os julgamentos destas pessoas ele resolve segui-las, numa espécie de experiência científica, reafirmando o lugar que lhe é imposto. Após se deter por um certo tempo em um indivíduo específico em seu processo analítico, seguindo a ele e sua família, o personagem se confronta uma realidade cotidiana para ele, a violência, ao ter que lidar com uma arma apontada para si pelo homem que perseguia. O conto encerra-se com a perspectiva deste conflito discrepante que denuncia a realidade desigual desta relação.

 

Espirais e Paralelas: “É tudo muito próximo e muito distante”

Espiral, num contexto matemático geométrico significa uma curva plana que gira em torno de um ponto central, dele se afastando ou se aproximando, segundo uma determinada lei, e em sentido figurado, resume um movimento de ascensão, difícil ou impossível de controlar. O título-metáfora “Espiral”, define bem o que é narrado na obra de Martins (2018), uma sequência de fatos que partem de um ponto comum, e vão exponencialmente tomando forma a partir de cada situação/reação, até alcançar um ponto cujo controle das ações torna-se implacável.

Da descoberta, ainda que inocente, de ser alvo de preconceito, a indignação diante da irracionalidade cotidiana de causar medo a um outro que não lhe conhece, passando pelo momento de “inversão” de papéis, perseguidor em vez de perseguido, e por fim o ápice do confronto simbólico desta relação, um fim deixado em aberto de forma propositada pelo autor, mas cujo enredo podemos imaginar, pois já o vimos se repetir várias vezes.

Ao longo do conto, somos apresentados a uma fronteira/abismo, entre morro e asfalto. Fronteira esta, que apesar de na prática ser uma linha tênue, entre descer o morro e chegar ao asfalto, no âmbito social, o que se tem de fato é um abismo que separa duas realidades paralelas. Mas temos aí um paradoxo, estas realidades se cruzam/confrontam cotidianamente, no ponto de ônibus, no caminho até a escola, e até mesmo nos pensamentos e sensações.

Por exemplo, estas ações limítrofes cheias de preconceitos apresentadas no conto, podem ser percebidas e aprofundadas em obras visuais como Negro Utópico, onde numa imagem um tanto carnavalesca se evidenciam os estereótipos associados com o afro, que culturalmente tem sido construído em relação ao negro, além de também ter sido espalhados rapidamente através da publicidade, a linguagem e as mídias com o objetivo de demarcar um território. Por isso, vemos o personagem empolgado dentro da casa fazendo tarefas domésticas, pois ironicamente é desta forma que aquela pessoa não representa um risco para a sociedade - esse seria na verdade seu mundo. A autora representa estas imposições sociais com perícia, denunciando a invisibilização do corpo negro, que na obra é camuflado ao ambiente doméstico, ao ser representado com a mesma cor da roupa e dos objetos de limpeza.

Por outra parte, se o mesmo personagem estivesse na rua, sem uma atividade aparentemente “útil”, acontece o que lemos em Espiral, uma violência simbólica do ser humano afro que é obrigado a lutar entre dois mundos. Porém, no caso do conto o paradoxo termina logo ali, quando somos lembrados pelo autor que de fato não há contato algum entre esses mundos. “Eu ficava me perguntando quando é que ele daria conta de minha existência” (MARTINS, 2018, p.15). Demorou três meses para que enfim ele fosse “notado”.

Série: Negro Utópico (2001). Fotografia. Liliana Angulo. Mais sobre a obra em: https://www.banrepcultural.org/coleccion-de-arte/obra/negro-utopico-ap4309, acesso em 03/02/2022
 

Afastamento e aproximação: “Nunca esquecerei da minha primeira perseguição”

Num primeiro momento, pode parecer estranho pensarmos que o personagem morador da favela seja perseguido, quando na verdade ao se depararem com ele, os moradores do bairro nobre se afastam. Contudo, a perseguição é psicológica, e desde muito cedo, como ele bem alerta no texto. Não raro vemos como é ensinado aos moradores de favelas (sobretudo aos negros) como devem se portar em situações como as narradas no conto.

Em um movimento inverso, por sua vez, temos uma aproximação do personagem com o que se tornou seu “objeto” de estudo. Ele passa a analisar a vida destas pessoas, de acordo com ele, por meio de um rigor científico, buscando entender as relações humanas. Ele acaba por definir um alvo específico, estabelece um método, observa detalhadamente suas ações, nomeia entes familiares cujo nome real não foi capaz de descobrir, e desta maneira, acaba por sentir confiança de que estava de alguma forma no controle da situação. O fato é que, no decorrer do processo, quem acaba afastando-se de si, é o próprio personagem, deixando-se enredar por sua busca. “Por mais que às vezes me parecesse loucura, sentia que não poderia parar […]” (MARTINS, 2018, p.14).

Apesar de aparecer no texto como denúncia da primeira vez em que ele decide seguir alguém, a frase “Nunca esquecerei da minha primeira perseguição”, nos remete por outro lado, a questão de que ele nunca se esqueceu do primeiro dia em que se viu perseguido pelo incômodo que sua presença provocou em outrem. Esta violência simbólica faz com que ele se torne obcecado por compreender a razão desta reincidência: “[...] sentia que não poderia parar, já que eles não parariam” (MARTINS, 2018, p.14). Neste sentido, é interessante perceber como o conto de Martins permanece propondo um diálogo que pode ser levado para além do texto, pois numa performance como Mambo Negrita de Liliana Angulo são levantados questionamentos sobre a forma na qual as populações afro conseguem nomear-se e olhar-se, isto é, exatamente o que faz o personagem no conto. A relação se manifesta com respeito às narrações cotidianas que envolvem as relações humanas. Mambo Negrita avança na mesma linha de Negro Utópico, um cenário onde as cores do figurino do personagem se mesclam com o fundo da parede, os traços étnicos também são ressaltados; mas nesta ocasião a artista colombiana nos coloca nos campos problemáticos da imagem: Quem tem o poder de construir a imagem, quem pode possui-la, quem pode controlá-la? e quem não? A partir destes questionamentos se segue o caminho pelo qual vemos um apagamento da cultura afrodescendente nos imaginários nacionais de muitos países da América Latina. Estas rotas têm moldado negativamente os corpos e cenários, deixando somente ausências, rostos sem imagem.

 

Série: Mambo Negrita (2006). Instalação. Liliana Angulo. Imagem disponível em https://nodoarte.com/2017/03/09/7530/, acesso em 03/02/2022

 

Teoria dos jogos: “Começou muito cedo. Eu não entendia”

Podemos pensar que, ao assumir o papel de seus perseguidores, ele tenta entender o que causa o medo, a fuga e a apreensão diante da sua simples presença. Mas acaba por não conseguir, pois falta-lhe um ponto fundamental, como dissemos no começo: espirais são determinadas por uma lei. A regra desta espiral é evidente - o racismo. Não sendo racista, não é possível compreender as despropositadas ações: “São pessoas que vivem num mundo que não conheço” (MARTINS, 2018, p.14).

O desfecho dá o tom da diferença. Ainda que por um período de tempo possa parecer ser possível tomar o lugar do outro, ao final percebe-se que o jogo não possui as mesmas regras, e muito menos as mesmas condições para os dois lados.

Presença Negra

Finalmente, “Espiral” (2018) termina sendo um pequeno manifesto sobre as práticas históricas de resistência e resiliência frente as estruturas de poder coloniais, as quais sempre abertamente violentavam o que Mirzoeff vai chamar em nosso contexto atual “O Direito a Olhar” (2016). Isto como uma reclamação e negação ao ser segredado por uma autoridade autocrática e, que no presente se conjuga numa práxis estética e visual através de artistas como a colombiana Liliana Angulo. 

Mais uma vez acionamos a artista Liliana Ângulo, neste caso com a obra Presencia Negra (2007, imagem acima), que dialoga de forma intrínseca com o conto de Geovani Martins na medida que representam um chamado de emergência sobre a racialização das relações sociais e culturais; já que estas imagens também conseguem de maneira direta questionar uma ordem sociocultural dominante que procura se perpetuar até nossos dias, um tipo de escravidão contemporânea que impede a liberdade visual. Como aponta Mirzoeff, “isso só pode também indicar a escravidão como a remoção do direito a olhar. A cegueira torna a pessoa um escravo e remove a possibilidade de recuperação do status de pessoa livre” (2016, p. 752). Deste modo, sem intenção de ser tautológico, é importante expressar uma vez mais como Presencia Negra é uma obra com um forte componente iconoclasta, decodificador da imagem afro fora dos clichês visuais, das matrizes da exclusão colonial. Esta obra, inspirada no famoso retrato de Henry Price (1852), mostra para nós a imagem de uma mulher com um vestido branco que sai totalmente dos paradigmas aristocráticos, quebrando assim a idealização exótica de uma categoria racial sem sentido. O que leva a uma pergunta relevante: Como se cria visualmente um corpo excluído e perseguido historicamente?

Por enquanto, é prudente dizer que o porvir histórico pode ser chamado então como uma luta incerta pelo direito a ser visto ante o processo de apagamento simbólico das práticas hegemônicas, que insistem em fazer perdurar os velhos paradigmas coloniais. Desta maneira é necessário e urgente exaltar os lugares de onde vêm os artistas latino-americanos como os apresentados, em razão dos quais, reivindicam com seus projetos os cenários e corpos marginalizados.

           

Referências:

MARTINS, Geovani. O sol na cabeça. Espirais, p. 12-16. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Disponível em: <https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/366679/mod_resource/content/1/O%20Sol%20na%20Cabeca%20%5Be-Livros.xyz%5D%20-%20Geovani%20Martins.pdf>. Acesso em: 10 out. 2021

 

MIRZOEFF, Michael. O direito a Olhar. ETD–Educ.Temat. Digit.Campinas, SP.v.18n.4p. 745-768 out./dez. 2016. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8646472/14496>. Acesso em: 20 out. 2021.

 



[i]

 Geovani Martins (1991) é um escritor brasileiro. Nasceu em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Estudou apenas até a oitava série, trabalhando em seguida como homem-placa e atendente de lanchonete, entre outros. Morou nas favelas da Rocinha  e Barreira do Vasco, antes de ir para o Vidigal. Participou das oficinas da Festa Literárias da Periferia (Flup) em 2013 e 2015. Em 2015, apresentou na FLIP a revista Setor X, que publicava textos seus e de outros escritores de favelas do Rio. Foi convidado a voltar a Paraty em 2017, quando assinou contrato com a editora Companhia das Letras para lançar seu primeiro livro, O Sol na Cabeça. Antes mesmo da publicação, a coletânea de contos foi vendida para editoras de nove países.

 

[ii] Astrid Liliana Angulo Cortés (1974) é artista plástica de Bogotá com especialização em escultura pela Universidade Nacional da Colômbia e mestrado em Artes pela Universidade de Illinois, Chicago. Em sua produção artística explora formas de representação da mulher negra na cultura contemporânea a partir de perspectivas de gênero, raça e identidade. Sua obra abrange meios como escultura, fotografia, vídeo, intervenções coletivas, instalação e performance. Trabalha como pesquisadora, educadora, gestora, curadora e integra vários coletivos a fim de contribuir nas lutas do povo afro-colombiano. Em seus projetos tem pesquisado arquivos sobre as resistências, a reparação, ações antirracistas e a presença da população afro na Colômbia no intuito de compreender as relações de poder que atravessam a imagem, o território, a raça e o corpo da mulher negra. Disponível em: <https://amlatina.contemporaryand.com/pt/people/astrid-liliana-angulo-cortes/>.

 

Alveralicy da Costa Gomes é graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Mestranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Tamiris Amancio é bacharel em Museologia pela Universidade Federal de Ouro Preto. Mestranda em História pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) Foz do Iguaçu, Brasil. Tem interesse principalmente pela Museologia Social em especial pela prática museológica em favelas, e periferias.

Steve Rodríguez é licenciado em Arte Dramático pela Universidad del Valle, Cali, Colômbia. Atualmente é estudante de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) Foz do Iguaçu, Brasil. Mestrando em História pela mesma Universidade. Faz parte também do conselho editorial da Revista Universitária Tekoa do PPGHIS/ UNILA. Tem como interesse os estudos culturais, a cultura digital, visual e audiovisual. 

 

(*) Esta postagem originou-se de trabalho para a disciplina  "Textos e Imagens na América Latina: grupos sociais marginalizados na produção visual e literária depois das 'Independências'", do Mestrado em Literatura Comparada da UNILA, ministrada pela profa. Rosangela de Jesus Silva.

 

 

 

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