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Kat River: uma revolta nas fronteiras coloniais

Dentre as diversas populações que historicamente vivem no sul e no sudeste da África, estão grupos étnico linguísticos conhecidos coletivamente como Khoekhoen (ou Khoesan). Trata-se de comunidades pastoris e nômades/seminômades falantes das línguas Khoekhoen, tradicionalmente organizados em torno de linhagens e chefes cuja autoridade deriva da posse do gado bovino. Os Khoekhoen foram um dos primeiros povos a serem diretamente afetados pela presença europeia no sul da África a partir do século XVII, especialmente com as invasões holandesas em uma região que, durante o período colonial, ficou conhecida como Colônia do Cabo. Em um primeiro momento, os Khoekhoen atuavam como parceiros comerciais, intermediários e fornecedores de gado aos colonos europeus. Contudo, muito rapidamente, os Khoekhoen passaram a ser forçadamente incorporados à sociedade colonial na condição de mão de obra (compulsória). Esse processo suscitou diversos movimentos de resistência, como por exemplo as guerras Khoekhoen-holandesas no século XVII e XVIII, ou a chamada “revolta dos servos” no final do século XVIII; contudo, o governo da Colônia do Cabo respondeu violentamente às insurgências, levando à morte ou captura dos envolvidos.

 

Aquarela de Samuel Daniell, retratando uma família Khoekhoe desmontando suas tendas (começo do século XIX). (Fonte: Wikimedia Commons)

Quando a Colônia do Cabo foi anexada pela Inglaterra no início do século XIX, os Khoekhoen representavam boa parte da mão de obra, especialmente nas fazendas. Naquele momento, diversas novas leis foram aprovadas pelo governo colonial com o objetivo de controlar a circulação e a mobilidade das famílias Khoekhoen: um exemplo disso foi o Código Caledon, que atendia às demandas dos fazendeiros europeus, sobretudo da região oriental da colônia, por um controle maior da mobilidade de seus trabalhadores Khoekhoen, obrigando-os a carregar um passe de identificação emitido por seu mestre ou por um oficial colonial, que os vinculava, de forma fixa, aos seus empregadores. Por extensão, a legislação regulamentava o uso do chicote para punir trabalhadores acusados de insubordinação ou preguiça.

Como consequência da pressão de grupos missionários, e novas formas de trabalho livre/assalariado, essas e outras leis foram repelidas no final da década de 1820, especialmente com a aprovação da Ordenação 50. Essa nova lei garantia aos Khoekhoen o direito a terras, permitia a circulação livre de Khoekhoen sem o porte do passe, proibia o trabalho infantil sem a permissão familiar e proibia castigos físicos nas relações de trabalho. Pelo menos de um ponto de vista jurídico, a Ordenação 50 possibilitava aos homens Khoekhoen incorporados à sociedade colonial os mesmos direitos políticos que os homens brancos na colônia. Em questão de poucas semanas, diversos Khoekhoen enviaram petições ao governo reivindicando terras com base em direitos ancestrais ou enfatizando a participação de soldados Khoekhoen em regimentos coloniais

 

Mapa da região oriental da Colônia do Cabo na década de 1830. O assentamento de Kat River ficava na fronteira entre a colônia e as chefaturas Xhosa (território conhecido no período colonial como “Kaffraria” ou Xhosalândia). (Fonte: Wikimedia Commons)

 

Foi no contexto de aprovação da Ordenação 50 que o governo da colônia do Cabo estabeleceu um assentamento agrícola na região de fronteiras, o assentamento de Kat River. Aquela região era historicamente ocupada por chefaturas e comunidades Xhosa (povo de língua e cultura Bantu) que, como consequência da expansão colonial, foram perdendo suas terras e rebanhos, e envolvendo-se em conflitos com os colonos europeus. Para evitar o retorno dos chefes Xhosa, o governo colonial assentou dezenas de famílias Khoekhoen, além de outros grupos, na região em pequenas propriedades agrícolas. Muitos desses proprietários Khoekhoen haviam formalmente solicitado terras ao governo como reparação por séculos de exploração colonial. Outros haviam anteriormente servido ao governo da Colônia na condição de soldados ou comandantes militares, e receberam terras como recompensa por seu serviço. Além disso, haviam muitos Khoekhoen que haviam se refugiado em estações missionárias na região, e também foram estabelecidos no assentamento.

 

Pintura de Henry Butler, retratando uma propriedade no assentamento de Kat River na década de 1830 (Fonte: BLACKBEARD, 2018)
 

Entre as décadas de 1830 e 1840, a situação socioeconômica do assentamento de Kat River agravou-se profundamente: em primeiro lugar, muitos proprietários Khoekhoen tiveram suas fazendas destruídas e gado capturado como consequências das guerras entre o governo colonial e as chefaturas Xhosa. Adicionalmente, o governo começou a escoar dezenas de famílias Mfengu, abaThembu e Xhosa no assentamento, causando um inchaço populacional; em outras ocasiões, as autoridades coloniais também mandaram destruir as habitações desses grupos assentados em Kat River, inclusive dos Khoekhoen. Por fim, no final da década de 1840, cresciam as ambições dos colonos britânicos que visavam ocupar as terras de Kat River para pecuária, e havia uma constante tensão, sobretudo entre as lideranças Khoekhoen, de que seus direitos políticos e direitos à terra, assegurados por lei, seriam revogados.

Foi nesse contexto de incertezas que diversas lideranças Khoekhoen de Kat River envolveram-se em uma revolta contra o governo colonial entre 1850 e 1851. Uma das principais lideranças era um homem de origem Xhosa chamado Hermanus Matroos, que, ao longo de sua trajetória, havia circulado em ambos os lados da fronteira: por vezes, servindo ao governo na condição de intérprete, e em outros momentos vinculando-se aos chefes Xhosa. Os Khoekhoen de Kat River não estavam sozinhos naquele momento, pois as chefaturas Xhosa, do outro lado da fronteira, também promoveram um movimento de resistência à violência colonial. Isso porque, apesar de Kat River estar localizada dentro da colônia do Cabo, havia um longo intercâmbio de relações comerciais e mesmo de parentesco entre os Khoekhoen e os Xhosa na fronteira pelo menos desde o século XVIII. O alvo dos revoltosos eram as propriedades britânicas e cidades/fortes militares na região, a exemplo do Fort Beaufort. Os revoltosos confrontaram as tropas do governo colonial, mas foram brutalmente derrotados. Muitos membros do movimento foram mortos e, após a revolta, muitos envolvidos foram presos, enquanto outros refugiaram-se junto a chefes Xhosa do outro lado da fronteira.

A história do assentamento e a revolta de Kat River foi amplamente documentada, especialmente por meio de relatos de missionários que viviam na região; em cartas e correspondências de oficiais do governo colonial; cartas e petições enviadas pelas lideranças da revolta; ou nos jornais que circulavam pela colônia do Cabo desde o início do século XIX. Um dos missionários que testemunhou a revolta, James Read Jr., registrou diversos testemunhos das lideranças da revolta, a exemplo do colono Khoekhoen Wilhelm Uithaalder:

 

Senhor, quando você e o Sr. Read [James Read Sr.] eram homens jovens, vieram morar conosco, e agora vocês são ambos velhos, e o jovem Sr. Read [James Read Jr.] não tinha barba quando ele veio para Kat River, e agora ele avança em sua idade, e ainda assim, essas opressões não param. Os missionários, por anos, escreveram, e seus escritos não vão ajudar. Nós estamos nos erguendo para cuidar de nossos próprios assuntos. Agora nós mostraremos ao colonato que também somos homens (READ, 1852, p. 47).

 

Apesar da revolta ter sido violentamente suprimida pelo governo, ela é um exemplo de movimento de resistência em um contexto de intensificação do colonialismo; demonstra também a habilidade e protagonismo de grupos que lutavam por direitos garantidos por lei, ameaçados pelas ambições dos proprietários britânicos na região.

 

Referências:

 

READ JR., Rev. James. Kat River settlement in 1851: described in a series of letters published in "The South African commercial advertiser." Cape Town: A. S. Robertson, 1852.

BLACKBEARD, Susan. Kat River revisited. Tese de doutorado em História. Cidade do Cabo: Cape Town University, 2018.

ROSS, Robert. The Borders of Race in Colonial South Africa: The Kat River Settlement, 1829–1856. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

ROSS, Robert. These oppressions wont cease: The Political Tought of the Cape Khoesan. Joanesburgo: Witts University Press, 2018.

 

Evander Ruthieri Saturno da Silva, professor de História da África da UNILA

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