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A categoria caiçara como comunidade étnica em eterna simbiose

 

A princípio o termo caiçara advém da palavra Tupi-Guarani caá-içara que diz respeito a um cercado de madeira, tanto para cercar casas e aldeias como para cercar peixes. Depois passou a ser usado também para palhoças construídas nas praias que serviam para auxiliar pescadores, e em seguida um termo para se referir ao morador de Cananéia (ADAMS, 2000, p. 146). O termo se expande aos moradores do litoral sul do Rio de Janeiro até o norte de Santa Catarina, ou seja, englobando também o litoral paulista e paranaense.

A categoria caiçara é definida por um grande número de autores que entendem essa formação a partir da ideia de mestiçagem; como caiçara, se compreende “aquelas comunidades formadas pela mescla da contribuição étnico-cultural dos indígenas, dos colonizadores portugueses e, em menor grau, dos escravos africanos.” (DIEGUES, 1999, p. 42). A maioria dos autores entende que essa população se forma através do despovoamento litorâneo, o que também diz respeito a quedas nas atividades econômicas litorâneas no final do século XIX (MUSSOLINI, 1980, p. 22- 23). 

Pintura de Debret datada de 1827 retrata Villa Bella da Princesa, atual Ilhabela, São Paulo.  Fonte: https://www.ilhabela.com.br/historia/, acesso em 22/08/2023.


A formação litorânea especialmente na costa do estado de São Paulo e Rio de Janeiro não se deve entender como fenômeno idêntico, tanto por conta da diversidade dos grupos indígenas pré-coloniais, de origem Tupi, Tupinambás, Tamoios e Tupiniquins, quanto pela diversidade dos europeus que circulavam na região, portugueses na sua maioria e franceses como no caso de Ilha Grande no Rio de Janeiro. Cada detalhe forma o grande grupo étnico que conhecemos hoje, ou seja, são vários grupos étnicos que se reconheciam de formas diferentes, e com o passar do tempo foram se misturando até receberem esse novo reconhecimento enquanto caiçaras. No texto A Importância da Tutela Jurídica das Comunidades Tradicionais Caiçaras de Paulo Stanich Neto, no livro intitulado Direito das Comunidades Tradicionais Caiçaras (2016), ele ressalta a ideia de Cunhadismo: “tratava-se da tradição indígena de oferecer a visitantes uma mulher para matrimônio”, apoiado na literatura de Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro (1995), que atualmente pode ser entendido através do compadrio (NETO, 2016, p. 25). Essas interpretações estão ligadas a ideias raciais biológicas para uma análise de formação colonial, onde pesquisadorxs tentam definir e categorizar um grande grupo a partir do mito das três raças.

As comunidades caiçaras não são todas iguais, porém, carregam traços comuns como semi-isolamento, técnicas de construção de embarcações, técnicas de pesca, linguagens específicas, e são esses pontos que entendem como patrimônio cultural. Entender o vento, os mares, a botânica, a geografia, qual a melhor lua para se pescar determinado peixe, qual vento arrasta qual peixe em qual época do ano, qual a melhor árvore para canoa rápida, ou para canoa de mar grosso, são saberes transmitidos com o passar do tempo, de geração em geração, somente possíveis pela profunda necessidade de observação da natureza. Quer dizer, entender sobre os tempos e características da natureza é o que possibilita se guiar através dela e aumentar a capacidade de autonomia dentro do ambiente em que se vive.

Segundo Paulo Stanich, “o patrimônio cultural é sem dúvida o fator que gera mais urgência de tutela, e mantê-lo é uma necessidade coletiva de preservar também a história do povo brasileiro” (NETO, 2016, p. 31), ou seja, de certa maneira há uma ideia de que essas comunidades devem seguir sendo o que “sempre” foram. Porém não podemos entender a cultura caiçara como objeto estático, que não vai se modificar em nada, considerando que esses estão em movimento e em contato com o mundo. A própria comunidade é que deve decidir o que deve seguir e naturalmente abandonar o que não lhes serve mais. Dentro do próprio grupo existem divergências quanto ao próprio desenvolvimento das comunidades. As pesquisas mais recentes realizadas nas comunidades tradicionais caiçaras de Ilhabela nos mostram que a partir da década de 1980/1990 a especulação imobiliária começa a alterar as dinâmicas das comunidades, assim como o turismo. Paulo constata isso dizendo que “em vinte anos pode-se constatar a mudança de hábitos da população com o aumento do turismo e da compra de imóveis por veranistas e investidores” (NETO, 2016, p. 31). Mesmo assim as comunidades seguem vivas.

O último ponto que quero ressaltar é o fato de que a leitura da natureza nas comunidades tradicionais caiçaras é diferente, o que não quer dizer que não possam ser danosos ao meio ambiente, porém não por acaso boa parte da mata atlântica preservada está em áreas das comunidades. Acredito que a pergunta que deve ser feita é: O que queremos salvar? Uma “cultura”? Que como sabemos se altera com o passar do tempo. Ou queremos salvar o que faz essa cultura existir? O que no caso é seu território.

Dentro das leituras sobre comunidades tradicionais caiçaras não encontramos o conceito de grupo étnico para o termo caiçara. Os próprios estudiosos da área divergiram quanto a categoria de caiçara pelas ideias de lavrador-pescador, pescador-lavrador, assim como divergências na caracterização de pescador artesanal (ADAMS, 2000, p. 152). O que de fato podemos afirmar é que esses grupos tem grande ligação com seus territórios e são esses territórios que proporcionam as contribuições dessas comunidades para o mundo. Seguindo esse raciocínio, a principal forma de tutela possível é salvaguardar seus territórios, freando assim a especulação imobiliária e magnatas que atuam nos litorais.

A partir da leitura do livro Teorias da Etinicidade, segundo a pesquisa de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart o conceito de etnicidade manifesta “um determinado número de divergências teóricas nas quais, por um lado, reencontramos de maneira recorrente a oposição entre concepções objetivistas e subjetivistas e, por outro lado, materialistas e idealistas.” (POUTIGNAT e FENART, 1998, p. 125). Isso porque o conceito de etnicidade, anglo-saxão, foi e é usado para atribuir categorias de organização social a partir da diferença.  

Corrida de canoa caiçara realizada em Ubatuba, São Paulo. Fonte:https://fundart.com.br/corrida-de-canoa-caicara-completa-60-anos-com-competicao-comemorativa-neste-domingo-em-ubatuba/, acesso em 22/08/2023.

Analisado dessa maneira, podemos dizer que o caiçara pode ser considerado um grupo étnico, pois se reconhece como, porém não é uma unidade enquanto grupo. Trata-se de vários grupos com tradições diferentes que compartilham símbolos, emblemas e costumes, que podem mudar com o passar do tempo. Ou seja, a categoria caiçara ou as comunidades caiçaras são uma comunidade étnica em eterna simbiose, até que desapareçam seus territórios, ou sejam retirados de forma legal ou ilegal.   

 

Referências:

ADAMS, Cristina. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, USP, V. 43 nº 1. São Paulo, 2000.

DIEGUES. Antonio Carlos (Org.). Biodiversidades e Comunidades Tradicionais no Brasil. NUPAUB, USP, São Paulo, 1999.

MUSSOLINI, Gioconda. Ensaios de Antropologia Indígena e Caiçara. Organização de Edgard Carone. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1980.

NETO. Paulo Stanich (Org.). A Importância da Tutela Jurídica das Comunidades Tradicionais Caiçaras. Editora Café com Lei, São Paulo, 2016.

POUTIGNAT e FENART. Teorias da Etnicidade. Editora UNESP, São Paulo, 1998.

 

Acauã Allende, estudante de História – América Latina da UNILA.

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