![]() |
Autoria: Bailey Torres
Link de acesso: https://unsplash.com/pt-br/fotografias/homem-tocando-instrumento-de-sopro-9-Mt_kNlj9Y |
A vida é feita de ciclos, momentos de encerramento e novos começos. Em meio a rotinas e desafios diários, sempre buscamos motivos para celebrar nossas conquistas e renovar nossa disposição para enfrentar o que está por vir. É uma oportunidade de reafirmar valores como a confiança, o respeito às relações humanas, o desejo de paz e a busca por um futuro mais digno. O compromisso de evoluir como indivíduos justos, íntegros e empáticos faz parte dessa trajetória.
Independentemente do lugar onde estamos, a passagem do tempo sempre nos convida à reflexão. Não basta esperar que as mudanças aconteçam sozinhas; é necessário agir, reavaliar escolhas e traçar novas estratégias para alcançar nossos objetivos. O cotidiano nos ensina que o progresso vem do esforço contínuo, da resiliência e da coragem para superar adversidades.
Como seres humanos, sonhar e planejar fazem parte da nossa essência. Mas o ato de poder pensar no futuro requer uma prerrogativa: a liberdade, que é um direito fundamental. Imagine, por um instante, não ter autonomia sobre sua própria vida, estar submetido a condições que negam sua humanidade. Como seria possível fazer planos ou encontrar sentido na existência? Imagine estar acorrentado, exposto nu e pronto para ser leiloado; imagine ter seu lar invadido, seu sonho roubado, sua história apagada e sua identidade negada.
Pois bem! Não se vive quando a liberdade está comprometida. Era uma vez, pessoas comuns queriam poder pensar, sonhar e ter esperanças – em essência, queriam o simples direito de viver. No entanto, para que isso fosse possível, tiveram de enfrentar um sistema escravocrata e racista imposto por invasores. Após décadas de resistência e sacrifícios, em 1804, nasceu uma república: o Haiti.
Panorama histórico do Haiti
O Haiti ocupa a porção ocidental de uma ilha localizada na América Central, a segunda maior da região caribenha, ficando atrás apenas de Cuba. Antes da chegada dos europeus, no século XV, a ilha era habitada e governada por indígenas chamados Taínos. Com a invasão espanhola, a população local foi dizimada, e, em 1697, por meio do tratado de Ryswick, a Espanha cedeu a parte ocidental da ilha – o atual Haiti – para a França.
A França rebatizou o território recebido da Espanha como Saint-Domingue. Em poucas décadas, com o tráfico humano, a exploração e a escravização de pessoas oriundas do continente africano, a colônia francesa tornou-se a mais próspera das Antilhas. No século XVIII, Saint-Domingue era o principal motor do comércio francês, enquanto isso, estima-se que cerca de 90% de sua população era composta por pessoas negras submetidas à escravidão.
Pela liberdade, todo sacrifício é pouco. A vida na colônia era marcada por intensos conflitos, com revoltas constantes. Pessoas negras, recusando-se a aceitar a condição imposta pela escravidão, fugiam para as montanhas, onde fundavam comunidades afastadas do controle dos opressores. Esse movimento ficou conhecido como ‘Marronage’. Foi então um sábio religioso, conhecido como ‘Boukman’, em agosto de 1791, reuniu secretamente dezenas de lideranças negras para uma cerimônia conhecida como ‘Bwa Kayiman’. Naquele encontro, foram lançadas as bases para um feito inédito até então na história humana: uma revolução antiescravagista, anticolonialista e antirracista.
Boukman foi perseguido, capturado e executado pouco tempo após a cerimônia. Ele tinha plena consciência da ousadia de seu ato e das consequências que enfrentaria. Mas é preciso repetir: pela liberdade, todo esforço é pouco. A luta pelo direito de viver não cessou. Em 1793/94, a escravidão foi abolida, e, uma década depois, em 1º de janeiro de 1804, o Haiti tornou-se a primeira república livre e independente da América Latina. Pela primeira vez na história, a liberdade, a igualdade e a dignidade humana foram asseguradas por Leis dentro de um território.
O século XIX foi marcado por um severo bloqueio comercial e diplomático que durou cerca de 20 anos, além da imposição de uma indenização bilionária à França e de constantes interferências europeias nos assuntos internos do Haiti. Em julho de 1915, os EUA (Estados Unidos da América) invadiram o país e mantiveram uma ocupação que se estendeu por 19 anos. A partir da década de 1990, o Haiti passou a ser alvo de diversas intervenções civis e militares da ONU (Organização das Nações Unidas), oficialmente com o propósito de estabelecer e manter a paz. No entanto, essas ações contribuíram para aprofundar uma crise social, política e econômica que persiste até hoje.
Apesar da resistência do povo haitiano, as constantes interferências externas e a falta de suporte real para o desenvolvimento do país resultaram em um cenário de instabilidade contínua. A imposição de políticas econômicas desfavoráveis, somada à exploração de seus recursos e à ausência de investimentos estruturais, aprofundou as desigualdades e limitou as oportunidades de crescimento.
Ademais, desastres naturais – como terremotos e furacões – agravaram ainda mais a situação, expondo a fragilidade das instituições e a negligência da comunidade internacional em fornecer auxílio efetivo. Diante desse contexto, a luta do Haiti pela soberania e por melhores condições de vida segue como um exemplo de resiliência e determinação, desafiando as adversidades impostas ao longo de sua história.
Um legado a ser preservado
Conheça bem o passado, e assim será capaz de compreender para onde está caminhando! Não por acaso, a revolução haitiana é frequentemente omitida nos livros de história. Nas escolas, pouco se menciona a primeira revolução verdadeiramente inclusiva, integracionista e em defesa da vida. Na grande mídia, o Haiti é retratado apenas como o país mais pobre das Américas, sem o devido reconhecimento de sua importância histórica. Muito se exalta a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 como um marco civilizatório, mas raramente se menciona que o Haiti foi um dos pioneiros na luta pela liberdade e dignidade humana, permanecendo, até hoje, injustamente silenciado.
Esse apagamento não é acidental, mas parte de um esforço sistemático para minimizar o impacto da revolução haitiana e seu exemplo de resistência. O Haiti provou que um povo escravizado podia se libertar e construir sua própria nação, desafiando as potências coloniais da época. Reconhecer essa história significaria admitir que a liberdade não foi concedida, mas conquistada com sangue e sacrifício. Assim, manter o Haiti à margem do discurso histórico dominante serve para preservar estruturas de poder que ainda hoje se beneficiam da desigualdade e da exploração.
Figuras como Jean-Jacques Dessalines, Marie Sainte Dédée Bazile, Suzanne Sanité Bélair, Henri Christophe, Marie-Jeanne Lamartinière, François Capois, Henriette Saint Marc, Marie Claire Heureuse Felicité Bonheur, Catherine Flon, entre outras heroínas e heróis da independência haitiana, simbolizam o respeito, a liberdade e a dignidade humana. Essas pessoas enfrentaram com bravura o temido exército francês, desafiando uma das forças militares mais poderosas da época, impulsionadas pelo anseio inabalável de liberdade. Seu legado vai além da resistência; é também um símbolo de conquista e orgulho, representado pela tradicional sopa de abóbora, um prato que celebra a superação da opressão e reafirma a identidade e a história do povo haitiano.
No filme ‘12 years a slave’ (12 anos de escravidão), Solomon Northup, interpretado por Chiwetel Ejiofor, diz a seguinte frase: "A escravidão é um mal que ninguém merece." Essa afirmação ecoa uma verdade inquestionável sobre um dos maiores crimes da humanidade, que jamais pode ser repetido. A dor e o sofrimento causados por esse sistema desumano revelam a crueldade de uma prática que não só despojou indivíduos de sua liberdade, mas também destroçou suas identidades e dignidade. Ao longo da história, o impacto da escravidão perdura, refletindo-se nas desigualdades sociais, raciais e econômicas que ainda enfrentamos. Por isso, é essencial que, ao refletirmos sobre esse passado, não apenas reconheçamos suas atrocidades, mas também nos empenhemos na construção de uma sociedade mais justa e equitativa, onde tal violência nunca mais se faça presente.
Em um mundo onde milhões ainda sofrem com a fome, guerras incessantes e a falta de perspectivas para o futuro, temas como liberdade e democracia tornam-se cada vez mais urgentes e questionados – e com razão. Uma coisa, porém, é inegável: sem as lutas históricas contra a opressão, o racismo e a desumanização dos povos africanos e seus descendentes, sequer teríamos o direito de discutir ou questionar a democracia. Os desafios do presente não podem servir como justificativa para apagar ou minimizar um passado de sofrimento e resistência, que custou incontáveis vidas. Pelo contrário, é um chamado para fortalecer a luta por justiça, amplificar vozes silenciadas e ocupar espaços de decisão. Nesse contexto, merece destaque o papel do Brasil em iniciativas diplomáticas voltadas à promoção da paz e à defesa da cidadania em escala global.
Acredite! O Haiti foi pioneiro na construção de uma possível integração latino-americana. Foi esse pequeno país que ofereceu suporte moral, financeiro e militar a Simón Bolívar em sua luta pela emancipação dos países sul-americanos, além de inspirar diversas revoltas contra a escravidão, incluindo aquelas ocorridas no Brasil durante o período imperial. Mais do que um marco histórico, o Haiti simboliza o berço da liberdade e da justiça social. Portanto, refletir sobre sua trajetória é essencial para valorizar as conquistas que nos permitem sonhar e planejar o futuro.
Referências bibliográficas
BAPTISTE, Mickenson Jean; MOREIRA, Júlio da Silveira. Da Minustah ao caos: O papel das intervenções estrangeiras nas crises humanitárias do Haiti. Revista Intellector, v. 21, n. 41, pp. 85-101, 2024.
DIGITHÈQUE MJP. Haïti: Acte d'indépendance. Disponível em: <http://mjp.univ-perp.fr/constit/ht1804.htm>. Acesso em: 10 fev. 2023.
HALLWARD, Peter. Opção zero no Haiti. 2004.
RIBEIRO, Tatiane. Conheça quem foram as mulheres por trás da Revolução do Haiti. Alma Preta, 29 set. 2017. Seção Quilombo. Disponível em: <https://almapreta.com.br/sessao/quilombo/conheca-quem-foram-as-mulheres-por-tras-da-revolucao-do-haiti/>. Acesso em: 10 fev. 2023.
ROSA, Renata de Melo; PONGNON, Vogly Nahum. A República do Haiti e o processo de construção do Estado-nação. Revista Brasileira do Caribe, v. 13, n. 26, 2013.
Mickenson Jean Baptiste. Economista. Pós-Graduando em Economia e graduando em Geografia (Bacharelado) pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Revisão: Rosangela de Jesus Silva, professora da área de História da Unila.