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Entre fronteiras e ideias: as contribuições de Emilia Ferreiro para a alfabetização no Brasil

 “Alfabetizar não é um luxo, é um direito.”

Emilia Ferreiro, 1989

Emilia Ferreiro (1937–2023) deixou um legado profundo para a educação na América Latina. Criadora da teoria da psicogênese da língua escrita, desenvolvida em parceria com Ana Teberosky, transformou de maneira significativa a compreensão sobre o processo de alfabetização (Mello, 2011). Reconhecida como uma das principais pensadoras do século XX no campo da psicolinguística, sua obra influenciou políticas públicas, práticas pedagógicas e a formação de professores(as) em diversos países, com destaque para o Brasil. 

Mas sua obra não chegou ao Brasil pronta e acabada. O que foi feito com suas ideias? Como foram adaptadas? Quem foram os responsáveis por essa mediação? Essas foram algumas das perguntas que motivaram a pesquisa de mestrado que realizei no Programa de Pós-Graduação em História da UNILA, questões que compartilho aqui com o(a) leitor(a). 

Emilia Ferreiro nasceu na Argentina, em 1937, e formou-se em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires. Durante o seu primeiro exílio, motivado pelo golpe militar de 1966, transferiu-se para a Suíça, onde realizou seu doutorado sob a orientação de Jean Piaget, no Centro de Epistemologia Genética. Após esse período, retornou à Argentina e iniciou as pesquisas que dariam origem à sua teoria da psicogênese da língua escrita. No entanto, com o advento da última ditadura militar argentina, em 1976, foi forçada ao exílio pela segunda vez, estabelecendo-se posteriormente no México. Foi nesse contexto que, em 1979, publicou sua pesquisa, em coautoria com Ana Teberosky, no livro Los sistemas de escritura en el desarrollo del niño (Ferreiro; Teberosky, 1979). A obra, considerada um marco na história da alfabetização, trouxe uma proposta inovadora: as crianças não aprendem a ler e escrever apenas por repetição ou memorização, mas constroem ativamente hipóteses sobre o funcionamento do sistema de escrita. 

Essa visão contrapunha os métodos tradicionais então predominantes na América Latina focados em cartilhas, sílabas soltas e cópias mecânicas. Ferreiro ofereceu uma nova lente para olhar a infância: a da criança como sujeito pensante. 

Emilia Ferreiro demonstrava profunda preocupação com as desigualdades estruturais que atravessam o direito à educação. Para ela, esse direito, como tantos outros, não é plenamente garantido, especialmente para os setores mais vulneráveis da sociedade. Altas taxas de repetência, evasão escolar e baixo desempenho não são distribuídos de forma igualitária: afetam sobretudo populações indígenas, rurais e periféricas. Ferreiro enfatizava que tais dificuldades estão ligadas a condições sociais adversas, como pobreza, distância das escolas e trabalho infantil, e defendia que a responsabilidade por esses obstáculos não pode ser atribuída aos indivíduos, mas às condições de vida desiguais que precisam ser transformadas (Ferreiro, 1999).

Uma teoria estrangeira em solo fértil

As ideias de Ferreiro chegaram ao Brasil no início dos anos 1980, inicialmente por meio de cópias xerocadas que circulavam entre educadores(as) comprometidos(as) com a renovação pedagógica. Em um país que vivia o fim da ditadura e buscava caminhos para uma educação mais democrática, a proposta construtivista da psicogênese encontrou acolhida em universidades, ONGs, escolas e grupos de pesquisa.

Ferreiro relatava que, no Brasil, era difícil organizar encontros com menos de 200 pessoas, o que demonstrava a preocupação com as altas taxas de reprovação nas escolas. “O que aconteceu aí? O que aconteceu é que algumas pessoas diziam: este 50% de reprovação é insuportável, isto é um escândalo nacional” (Ferreiro, 2001, p. 40).

Nesse cenário, a presença anterior de Paulo Freire na educação brasileira também teve impacto na recepção das ideias de Ferreiro, embora de maneira indireta. Ferreiro reconhecia a relevância do pensamento freiriano para a América Latina e afirmava que é impossível discutir alfabetização no continente sem mencionar Freire (Ferreiro, 2001). Embora não partilhassem dos mesmos pressupostos teóricos, existiam convergências éticas e ideológicas entre os dois pensadores, especialmente na valorização do sujeito da aprendizagem e na defesa de uma educação mais justa. Essa afinidade, somada ao contexto de redemocratização do país e ao desgaste dos métodos tradicionais, criou um ambiente favorável para a recepção das ideias de Ferreiro.

Em 1985, seu principal livro foi traduzido oficialmente para o português sob o título Psicogênese da Língua Escrita (Ferreiro; Teberosky, 1985). A partir daí, sua repercussão cresceu rapidamente, tornando-se referência em políticas públicas de formação de professores(as) e inspirando práticas que buscavam valorizar o conhecimento prévio da criança e seu contexto social.

Mediadores culturais

Um dos focos da minha pesquisa de Mestrado, desenvolvida no PPGHIS da UNILA, foi compreender o papel dos mediadores culturais, sujeitos e instituições que traduziram, adaptaram e, em muitos casos, transformaram a teoria de Emilia Ferreiro para o contexto brasileiro.

Instituições como o Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação (GEEMPA), o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) e programas como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA) (MEC, 2001) desempenharam papéis fundamentais na difusão da teoria psicogenética. Lançado em 2001 pelo Ministério da Educação, o PROFA surgiu como resposta às altas taxas de analfabetismo e às dificuldades enfrentadas no processo de alfabetização nas escolas brasileiras. Essas instituições e o programa promoveram formações, produziram materiais didáticos e criaram metodologias voltadas à prática pedagógica inspirada nos princípios de Ferreiro.

A perspectiva das transferências culturais, segundo a abordagem de Rodrigues (2010), é importante para compreender como a teoria de Ferreiro foi transformada no contexto brasileiro. Esse processo não se limita à simples recepção de ideias, mas envolve uma apropriação ativa, na qual professores(as), educadores(as), editores(as) e outros(as) agentes culturais desempenharam um papel mediador, reinterpretando e ajustando os princípios da teoria às realidades culturais e educacionais do Brasil.

Em processos de tradução cultural, pode ocorrer, como aconteceu com a teoria da psicogênese da língua escrita, uma interpretação parcial ou distorcida (Rodrigues, 2010). Um dos equívocos mais frequentes, nesse caso, foi sua redução a um método de ensino, quando, na verdade, trata-se de uma teoria psicolinguística sobre como a criança constrói conhecimento sobre a escrita.

A distorção da teoria levou, em alguns contextos, à propagação da ideia de que os(as) professores(as) não deveriam interferir nos erros dos(as) alunos(as), permitindo que aprendessem de forma espontânea e sem orientação. No entanto, essa não era a proposta de Emilia Ferreiro. Ao contrário, sua teoria reconhece os erros infantis como manifestações legítimas de pensamento e como etapas no processo de construção do conhecimento. Isso exige que o(a) educador(a) adote uma postura ativa e reflexiva, capaz de identificar essas hipóteses e propor intervenções significativas. Ocorre que muitos profissionais da educação, sem a formação adequada, interpretaram equivocadamente essa perspectiva e acabaram assumindo uma atitude passiva diante das dificuldades de aprendizagem.

A vitalidade da teoria e suas continuidades

Apesar das reduções e resistências, houve pesquisas e iniciativas que deram continuidade ao desenvolvimento da teoria. No Brasil, o GEEMPA, por meio de sua fundadora Esther Pilar Grossi e de outros(as) educadores(as), formou, e continua formando, professores(as) alfabetizadores(as), promovendo uma adaptação crítica dos princípios psicogenéticos à realidade nacional.

Outro nome que se destaca na mediação das ideias de Ferreiro no Brasil é Telma Weisz, que foi orientada por Ferreiro em sua tese de doutorado. Foi uma das primeiras pesquisadoras brasileiras a aplicar os princípios da psicogênese da língua escrita em salas de aula, sistematizando dados e práticas pedagógicas. Ao lado de outros educadores, coordenou grupos de tematização da prática em escolas públicas e privadas, analisando vídeos de situações de alfabetização e buscando fundamentação teórica para qualificar a intervenção docente. Weisz também coordenou o programa PROFA, do Ministério da Educação (MEC, 2001), que se propôs a formar professores(as) alfabetizadores(as) com base nos princípios construtivistas, integrando teoria e prática de maneira crítica e contextualizada. Sua produção acadêmica e atuação educacional ajudaram a consolidar a presença da teoria de Ferreiro nas políticas públicas e na formação docente no Brasil​​.

O campo da psicolinguística, aliás, continua em expansão. Novas pesquisas, no Brasil, México e Argentina, seguem ampliando e revisitando os postulados de Ferreiro, confirmando sua própria afirmação de que uma teoria só se mantém viva quando é constantemente desafiada e posta em diálogo com novas produções, como um organismo em evolução (Ferreiro, 2001).

Conquistas no Brasil: marcas que permanecem

A obra Psicogênese da Língua Escrita (1985) passou a integrar os currículos de cursos de Pedagogia e programas de formação docente por todo o país. Estudo citado na minha dissertação mostra que, entre quatro universidades analisadas, a obra estava presente em todas, sendo central na formação de alfabetizadores(as) (Kuiawinski, 2007).

Além disso, a difusão das ideias de Ferreiro no Brasil exemplifica um movimento de intercâmbio intelectual Sul-Sul. A teoria circulou por redes de educadores, editoras, congressos e programas públicos, gerando uma rica produção pedagógica em toda a América Latina — com o Brasil ocupando papel de destaque nesse processo.

Um desdobramento significativo do legado de Emilia Ferreiro foi a criação da Rede Latino-Americana de Alfabetização (REDALF, 2025), com o objetivo de democratizar o acesso às pesquisas e práticas fundamentadas na psicogênese da língua escrita. Fundada em 1990 e reativada em 2023, a REDALF atua de forma colaborativa entre educadores(as), pesquisadores(as) e gestores(as) de diversos países, propondo políticas públicas ancoradas em referenciais científicos e voltadas à alfabetização plena e equitativa. Defende uma abordagem que vá além da simples decodificação, inserindo as crianças em práticas sociais significativas desde os primeiros anos. Promove, ainda, ações formativas, materiais acessíveis e núcleos regionais alinhados às realidades locais.

Hoje, a REDALF representa um importante exemplo de mediação cultural transnacional. Funciona como espaço coletivo de tradução e ressignificação das ideias de Ferreiro, preservando seu legado intelectual e contribuindo para a construção de um campo educativo latino-americano autônomo, crítico e comprometido com os direitos das crianças.

Por que ainda precisamos falar de Emilia Ferreiro?

Porque ainda vivemos em um continente marcado por profundas desigualdades educacionais onde muitas crianças seguem sendo tratadas como incapazes. Porque a alfabetização, para muitos, ainda é um privilégio e não um direito. Falar de Emilia Ferreiro é falar de uma perspectiva que une rigor científico e compromisso social. É lembrar que boas ideias não se implementam sozinhas: precisam de mediadores, de contexto, de escuta e de coragem.

E, hoje, mais do que nunca, falar de alfabetização também significa enfrentar os desafios trazidos pelas novas tecnologias, que estão mudando as formas de ler, escrever e acessar o conhecimento. Nesse cenário em constante transformação, o legado de Emilia Ferreiro continua atual ao nos lembrar que a escola precisa ser, acima de tudo, um espaço de escuta sensível e mediação ativa, onde as hipóteses das crianças podem ganhar sentido e se transformar em um ponto de partida para aprendizagens mais significativas.

Referências

FERREIRO, Emilia. Cultura escrita e educação: conversas de Emilia Ferreiro com José Antônio Castorina, Daniel Goldin e Rosa Maria Torres. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Los sistemas de escritura en el desarrollo del niño. México: Siglo XXI Editores, 1979.

_______________________. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985.

_______________________. Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999.

KUIAWINSKI, Cláudia Fátima. Abordagens teórico-metodológicas da alfabetização e formação de professores. 2007. 106 p. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2007. Disponível em: http://www.livrosgratis.com.br/arquivos_livros/cp138157.pdf. Acesso em: 19 abr. 2025.

MELLO, Márcia. Emilia Ferreiro e a alfabetização: Um estudo sobre a psicogênese da língua escrita. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Fundamental. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores: Coletânea de Textos – Módulo 1. Brasília: MEC, 2001.

PIAGET, J. A epistemologia genética. In: Os pensadores. Trad. Nathanael C. Caixeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

REDALF – REDE DE ALFABETIZAÇÃO LATINOAMERICANA. Quem Somos. 2025. Disponível em: https://redalf.org/pt/quem-somos/nossos-objetivos Acesso em: 19 abr. 2025.

RODRIGUES, Helenice. Transferência de saberes: modalidades e possibilidades. História: Questões & Debates, UFPR, Curitiba, n. 53, p. 203-225, jul./dez. 2010.

SALAS, Paula. Ana Teberosky: quem foi e seu legado para a alfabetização e letramento. Nova Escola. Rio de Janeiro. 04 abr. 2023. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/21637/ana-teberosky-quem-foi-e-seu-legado-para-a-alfabetizacao-e-letramento. Acesso em: 19 abr. 2025.

Natalia Mariela Fuentes é Mestre em História pela UNILA, onde defendeu a dissertação A criança como ser pensante: trajetórias da obra de Emilia Ferreiro no contexto educacional brasileiro (1980-2001). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

Revisão: Paulo Renato da Silva, professor da área de História da Unila.


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