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Na fronteira entre Índia e Paquistão: música e história como ferramentas para repensar e elaborar o sofrimento da Partilha

Hoje (27/08) iniciaremos no blog uma série especial de postagens sobre História da Ásia. Na última semana de cada mês abordaremos temas ligados aos estudos asiáticos, em postagens sob coordenação de Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia do curso de História (Bacharelado) da UNILA, e Matías Maximiliano Martínez, mestrando do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da UNILA. As postagens destacarão temas históricos e possibilidades de pesquisa em História da Ásia, divulgando uma parte da formação em História na UNILA, que possui disciplina obrigatória na graduação em História da Ásia, bem como disciplinas optativas na pós-graduação. Uma boa leitura a todxs!


Na fronteira entre Índia e Paquistão: música e história como ferramentas para repensar e elaborar o sofrimento da Partilha


Entre os dias 14 e 15 de agosto de cada ano, desde 1947, comemora-se a independência de dois países sul-asiáticos: Paquistão e Índia, respectivamente. A Partilha (Partition) do território da Índia Britânica foi um processo traumático. Cerca de 12 milhões de pessoas migraram em virtude de reconfigurações territoriais relacionadas à demarcação de fronteiras naquela região. O caráter violento desses deslocamentos populacionais está associado também à construção de fronteiras simbólicas entre os dois Estados (o Paquistão como um Estado islâmico e a Índia como um Estado secular, mas de maioria hindu) e à consequente geração de movimentos migratórios significativos em direções opostas. Sikhs e hindus situados do lado paquistanês migraram em direção à Índia e muçulmanos localizados em território indiano deslocaram-se em direção ao Paquistão (BROWN, 2007).

Atores sociais locais (indianos e paquistaneses) ou diaspóricos (pessoas indianas ou paquistanesas, e descendentes de indianos e paquistaneses no exterior) têm recorrente e criativamente abordado e elaborado os traumas dos processos de independência. Nesta postagem, destacaremos o olhar diaspórico sobre a Partilha, bem como suas contribuições para a (re)construção de memórias dos traumas da independência.

Cerimônia de troca de guarda em Wagah, no Punjab, na fronteira entre Índia e Paquistão.

Na imagem, podemos ver as bandeiras de Índia (à esquerda) e do Paquistão (à direita), além da foto de Muhammad Ali Jinnah, no lado paquistanês da fronteira.

Foto: Mirian S. R de Oliveira, 25/05/2011

Começamos pelo músico Zeshan Bagewadi. Em parceria com a cineasta Nushmia Khan, produziu, em 2014, um vídeo chamado Border Anthems (Hinos na/da Fronteira, em tradução livre). A performance recorreu a vários elementos simbólicos das datas comemorativas das independências: 14 de agosto, no Paquistão, e 15 de agosto, na Índia. Pouco antes da meia-noite do dia 15 de agosto de 2014, o cantor Zeshan B. publicou o vídeo, no qual interpreta os hinos nacionais – símbolos marcantes de identidade nacional – de Paquistão e Índia. A tela é dividida em duas, como se marcada por limites territoriais, identitários, linguísticos. Na primeira metade do vídeo, representa um cantor paquistanês, que, terminada a execução do hino, troca-se, cruza a fronteira digital, e torna-se um cantor indiano, iniciando a segunda etapa da performance. Imagens da vida política e também do cotidiano dos dois países são mostradas paralelamente – Paquistão à esquerda e Índia à direita – e nos lembram, a cada momento, de suas similaridades, bem como reforçam a sensação de artificialidade e arbitrariedade das fronteiras. 

Border Anthems, 2014 

Algumas das imagens do cotidiano apresentadas no vídeo são memórias da própria família de Zeshan B. Em 1947, seus avós, muçulmanos, viviam em Hyderabad, região que foi incorporada à República da Índia. Foram afetados por conflitos inter-religiosos que acompanharam o processo de formação dos dois novos países. Alguns de seus parentes emigraram ao Paquistão. Outros familiares participaram de movimentos migratórios que levaram sul-asiáticos à Europa e à América do Norte no período posterior à Segunda Guerra Mundial, em busca de novas oportunidades de trabalho (BROWN, 2007). O cantor nasceu e cresceu nos Estados Unidos – em Chicago, mais precisamente. Em artigo publicado em um jornal paquistanês em 2014 e em entrevista concedida à emissora Deustche Welle em 2017, quando da comemoração dos 70 anos da independência de Índia e Paquistão, refletiu sobre o significado da Partilha e das relações entre os povos indiano e paquistanês.

Ao fazê-lo, destacou sua condição diaspórica. Como sul-asiático que cresceu nos Estados Unidos e, de modo mais específico, como músico, viria a perceber de maneira mais acentuada as similaridades e os vínculos entre pessoas de origem indiana e paquistanesa. Considerou de especial relevância mencionar a tradição musical compartilhada e as memórias da convivência entre os habitantes do subcontinente no período anterior à Partilha, que, em sua opinião, estariam se esvanecendo. Recorrendo, ainda, às memórias familiares, Zeshan comentou que o tema da Partilha jamais era tocado em seu lar, apesar de seus avós terem sofrido as dores daquele período. De seu ponto de vista, a geração que viveu a divisão dos territórios lidou com o sofrimento por meio do silêncio. As gerações seguintes – como a sua própria – é que puderam ou poderiam refletir e elaborar a dor da divisão do subcontinente. A criação do vídeo Border Anthems seria uma representação desse desejo de tratar da (des)construção das fronteiras simbólicas entre Índia e Paquistão.

O segundo olhar diaspórico que gostaríamos de destacar foi construído por Guneeta Singh Balla, fundadora do 1947 Partition Archives, um arquivo digital de histórias orais da Partilha. De origem punjabi e adepta da religião sikh, Guneeta cresceu na Índia e mudou-se para os Estados Unidos quando adolescente, onde concluiu sua formação escolar e universitária. Ao contrário da experiência de Zeshan, histórias sobre a vida antes e depois da Partilha eram uma constante em sua família, conforme relatou em entrevista ao The Daily Californian, em 2011 e em artigo publicado no website Indiaspora, em 2020. Seus avós nasceram na porção do Punjab que hoje pertence ao território paquistanês e enfrentaram a travessia em direção à Índia. Seus avós nasceram na porção do Punjab que hoje pertence ao território paquistanês e enfrentaram a travessia em direção à Índia. Suas viagens de férias ao país de origem, que a colocavam de novo em contato com os relatos orais sobre o passado do Norte do subcontinente, instigavam-na a pensar em modos de preservar e refletir sobre os traumas da Partilha. Apesar de ter se dedicado profissionalmente à área da Física, ela preservou o interesse pela história do Sul da Ásia e o gatilho para a decisão de construir um arquivo de fontes orais sobre o tema foi disparado durante uma visita ao Memorial da Paz em Hiroshima, em 2008. Ali teria percebido como os relatos orais dos sobreviventes do ataque nuclear eram comoventes e bastante potentes, capazes de inspirar o movimento pela não-proliferação nuclear e a própria fundação do Memorial. Ela concluiu, então, que “era o que precisávamos para [pensar] a Partilha: histórias daqueles que lembravam, como a minha avó, porque aquelas experiências vividas não poderiam ser negadas, ao contrário da minha recontagem, que poderia ser questionada” (BHALLA, 2020, tradução nossa).

A partir de 2009, Guneeta começou a registrar relatos orais de testemunhas da Partilha. A princípio o fez como uma tarefa individual, durante suas estadias de férias no Punjab. De volta aos EUA e estabelecida na Califórnia para um pós-doutorado, reuniu voluntários e ampliou a coleta de histórias orais. Desde 2011, o projeto se institucionalizou e conta, atualmente, com cerca de 1.000 voluntários e 3.000 doadores que apoiaram o registro e a preservação de mais de 9.000 histórias orais de testemunhas da Partilha. 

Website do 1947 Partition Archive. A Universidade de Stanford também armazena e disponibiliza algumas das narrativas registradas pelo Arquivo

Encerramos nosso texto com uma reflexão de Guneeta sobre a particularidade de sua condição diaspórica e sua influência no exercício do registro e preservação de relatos orais a respeito dos deslocamentos humanos de 1947:

 

É importante observar que o 1947 Partition Archive não poderia ter sido iniciado na Índia. Porque estou na diáspora, não tenho sobre mim o peso da política identitária hoje tão dominante e quase inescapável no Sul da Ásia. Eu era uma indo-americana, buscando servir minha pátria e aprender um pouco mais sobre minha própria herança cultural de modo imparcial. O trabalho arquivístico e documental tende a ser concentrado em comunidades, no Sul da Ásia. Uma plataforma como a nossa, aberta a toda e qualquer pessoa que tivesse histórias a contar sobre 1947 foi recebida com desconfiança, no princípio. Mas, desde então, passou a ser valorizada como um espaço verdadeiramente igualitário para que se contem todas as histórias e não apenas aquelas que possam ser favorecidas pelas forças sociopolíticas predominantes do momento (BHALLA, 2020, tradução nossa).

 

Referências

BHALLA, G. S. How Being Part of the Diaspora Helped me Build the Largest Oral History Archive of South Asian History. Indiaspora, 11 ago. 2020. Disponível em: <https://www.indiaspora.org/how-being-part-of-the-diaspora-helped-me-build-the-largest-oral-history-archive-of-south-asian-history/> Acesso em: 17 ago. 2020.

BROWN, J. M. Global South Asians. Introducing the modern diaspora. New Delhi: Cambridge University Press India, 2007.

INDIA and Pakistan 'are different, but man, we can really get along,' says musician Zeshan B. Deutsche Welle, 16 ago. 2017. Disponível em: <https://www.dw.com/en/india-and-pakistan-are-different-but-man-we-can-really-get-along-says-musician-zeshan-b/a-40115648> Acesso em: 14 ago. 2020.

KHAN, N.; BEGAWADI, Z. We are only separated by a border. Dawn, 16 ago. 2014. Disponível em: <https://www.dawn.com/news/1125726> Acesso em: 14 ago. 2020.

PERLMAN, C. Archive documents oral stories from survivors of India's partition. The Daily Californian, 27 abr. 2011. Disponível em: <https://archive.dailycal.org/article.php?id=112974 > Acesso em: 17 ago. 2020.

 

Websites

1947 Partition Archive https://www.1947partitionarchive.org/

The 1947 Partition Archive: Survivors and their memories https://exhibits.stanford.edu/1947-partition

Zeshan B. https://www.zeshanb.com/


Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia na UNILA



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