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A construção do “Dia da Cultura Afroparaguaia”: memória(s) e identidade(s) no Paraguai


Em 2015, no Paraguai, foi aprovada a lei 5464 que criou o “Dia da Cultura Afroparaguaia” em 23 de setembro de cada ano. 23 de setembro é a data oficial de falecimento de José Artigas, expoente da história e da independência do Uruguai que se exilou no Paraguai em 1820 – e onde faleceu em 1850. Artigas se exilou no país acompanhado de seus soldados negros que, segundo George Andrews, “constituíam a parte mais leal de seu exército” e “se estabeleceram em duas vilas afro-uruguaias perto de Assunção que existem até hoje.” (ANDREWS, 2007, p. 91). Assim, o nome de Artigas está intimamente relacionado à história dos afroparaguaios.

Imagem de divulgação da “Semana Afroparaguaia” promovida pela SNC faz referência explícita à Lei No 5464/15, que criou o “Dia da Cultura Afroparaguaia”, e frisa a “importante presença afro” na cultura paraguaia. Disponível em: <http://www.cultura.gov.py/2019/09/cultura-conmemora-la-semana-afroparaguaya/>. Acesso em: 29 abr. 2020

O Paraguai é um país que construiu e consolidou a sua identidade nacional a partir da mestiçagem entre o europeu e o indígena, com ênfase para os guarani. A ênfase nos guarani se expressa particularmente no idioma. A Constituição de 1967 reconheceu o guarani como língua nacional e, em 1992, foi equiparado ao espanhol como língua oficial.
Tendo em vista a tradicional valorização do papel do indígena e particularmente dos guarani, a criação do “Dia da Cultura Afroparaguaia” representa uma ruptura, com potencial para mobilizar os afroparaguaios em busca de direitos e para gerar empatia desde outros setores da sociedade paraguaia.
Há outro elemento a ser considerado quanto às dificuldades de reconhecimento dos afroparaguaios na história e cultura do Paraguai. Populações afrodescendentes foram – e ainda são – tradicionalmente relacionadas ao Brasil, antigo adversário da Guerra da Tríplice Aliança (1864/1865-1870). Em pleno século XIX, fortemente marcado pelo racismo, a representação dos inimigos brasileiros como negros em periódicos paraguaios era uma forma de encorajar os paraguaios diante de um adversário que seria racialmente inferior. Vale lembrar que as tropas brasileiras eram compostas por número expressivo de escravizados e mestiços. André Toral destaca que a representação dos soldados e governantes brasileiros como negros foi uma das principais marcas das caricaturas publicadas em periódicos paraguaios durante a guerra. “Cenas de batalhas, tratamento dos inimigos como pusilânimes, caricaturas de soldados brasileiros retratados como negros escravos, ‘macacos’, e de seus líderes transformados em animais deram uma visão nova da representação da guerra.” (TORAL, 2001, p. 72).

Caricatura publicada no jornal paraguaio El Centinela retrata o imperador brasileiro, o Almirante Tamandaré e o Marechal Polidoro da Fonseca como macacos. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000200015>. Acesso em: 29 abr. 2020

José Lindomar Coelho Albuquerque, em sua tese de doutorado sobre a imigração brasileira no Paraguai durante a ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989), destaca a permanência dessas representações sobre o Brasil e os brasileiros no país vizinho. Albuquerque destaca que “Stroessner continuava chamando os brasileiros que não eram descendentes de imigrantes europeus de ‘cambas’ (negros em guarani).” (ALBUQUERQUE, 2005, p. 160). Além disso, o ditador paraguaio “teria dito que poderiam ‘entrar los cambas’ para limpar o terreno, mas preferia os descendentes de europeus para o processo de colonização.” (ALBUQUERQUE, 2005, p. 160). A posição de Stroessner reforçava a concepção do negro como elemento exógeno ao país e ressaltava preconceitos ao relacionar o negro ao trabalho braçal de “limpar o terreno”, ou seja, de derrubada de matas nativas para expansão de atividades agropecuárias.
A criação do “Dia da Cultura Afroparaguaia” é resultado de um processo longo. A queda da ditadura em 1989 favoreceu a ampliação e a crítica dos estudos históricos no Paraguai. O Bicentenário da independência do país, comemorado em 2011, foi outro momento privilegiado para releituras da história e da cultura do país. Exemplo disso foi a publicação de uma nova edição do clássico La Esclavitud en el Paraguay de Josefina Plá. O texto foi publicado pela Intercontinental Editora na Colección Independencia Nacional. No prólogo, Guido Rodríguez Alcalá evidencia a atualidade do tema no país. “La explotación del africano resulta hoy inaceptable y la condenamos; sin embargo, debemos percibir y rechazar también toda forma de esclavitud encubierta, para que la igualdad sea un hecho, y no una simple fórmula legal en el país.” (2010, p. 11).
Outro exemplo representativo foi a coletânea Historia del Paraguay (2010), organizada por Ignacio Telesca. O historiador Ignacio Telesca é argentino e tem longa trajetória nos estudos sobre escravidão e afrodescendentes no Paraguai. A coletânea tem um capítulo de Telesca dedicado ao tema intitulado Afrodescendientes: esclavos y libres. O capítulo foi publicado na segunda parte do livro, denominada Capítulos para una Historia Social y Cultural. O tema foi tratado nessa segunda parte ao lado de capítulos sobre mulheres, camponeses, arte, literatura e música. No capítulo, Telesca destaca a atuação da comunidade Kamba Kua – a qual teve atuação importante na criação do “Dia da Cultura Afroparaguaia”. Segundo o autor, a atuação da comunidade favoreceu a formação de organizações afroparaguaias em Emboscada e Paraguarí, assim como da Red Paraguaya de Afrodescendientes. Além disso, com ajuda internacional, as comunidades realizaram o primeiro censo de afroparaguaios no país. (TELESCA, 2010, p. 353-354).
Além da abertura representada pela queda da ditadura em 1989 e pelas comemorações do Bicentenário em 2011, fatores externos têm contribuído para o (re)conhecimento das populações afrodescendentes no Paraguai – e em outros países da América Latina. A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou em 2013 que o período compreendido entre 2015 e 2024 seria o “Decênio Internacional dos Afrodescendentes”. Estruturado em três pilares principais – Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento –, o objetivo principal do Decênio “(...) é promover o respeito, a proteção e a concretização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais da população afrodescendente, conforme reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos.” (ONU, s./d., p. 8). O projeto de lei sobre a criação do “Dia da Cultura Afroparaguaia” reconhece explicitamente a sua relação com o Decênio Internacional dos Afrodescendentes aprovado pela ONU.
A programação da “Semana Afroparaguaia”, organizada pela Secretaria Nacional de Cultura (SNC) em 2019, sugere que o governo paraguaio está seguindo alguns compromissos firmados com a Organização das Nações Unidas. De acordo com a programação disponível no site da SCN, a abertura da “Semana Afroparaguaia” em 2019 contou com conferência de Ignacio Telesca intitulada “Afrodescendientes en el Paraguay. La paradoja de una presencia/ausencia (negación)”. A programação incluiu, ainda, a visita guiada “La ruta del esclavo”, a cargo da professora Margarita Durán, em espaços que marcaram o comércio e uso de escravizados na Asunción colonial. No Archivo Nacional foi aberta a exposição “Invisibles. Pardos, negros, mulatas. La esclavitud en el Paraguay”. Em parceria com a Fundación Asunción, a SNC participou da organização dos Festejos de la Loma Taruma, em homenagem à Virgen de la Merced, padroeira dos libertos. Finalmente, a programação contou com “La cultura afroparaguaya: avances y posibles caminos” no Centro Comunitário Kamba Kuá, com conversas e atividades artísticas voltadas ao debate da atualidade da cultura afrodescendente no Paraguai. A programação em Kamba Kuá foi organizada pelo Grupo San Baltazar, pela Universidade Nacional de Asunción (UNA) e pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Todas as atividades da “Semana Afroparaguaia” foram livres e gratuitas e indicam uma diversidade de espaços e públicos.
Este texto é fruto de uma pesquisa em desenvolvimento no Mestrado Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (IELA) da UNILA. Em uma postagem futura pretendemos explorar as críticas à atuação do Estado paraguaio quanto à inexistência de políticas públicas afirmativas para os afroparaguaios nos âmbitos social e econômico. Além disso, o “Dia da Cultura Afroparaguaia” suscita divergências entre as lideranças afroparaguaias, dentre outros pontos, pelo seu cunho oficial e apropriações da data pelo Estado.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, José Lindomar C. Fronteiras em movimento. In: ___________. Fronteiras em Movimento e Identidades Nacionais: a imigração brasileira no Paraguai. 2005. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza. p. 34-70. Disponível em: <http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/1528/1/2005_tese_JLCA.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2020.
ALCALÁ, Guido Rodríguez. Prólogo. In: PLÁ, Josefina. La Esclavitud en el Paraguay. Asunción: Intercontinental Editora, 2010. Colección Independencia Nacional.
ANDREWS, George Reid. América Afro-Latina (1800-2000). São Carlos: EDUFSCAR, 2007.
ONU. Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024): reconhecimento, justiça, desenvolvimento. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2016/05/WEB_BookletDecadaAfro_portugues.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2020.
TELESCA, Ignacio. Prólogo. In: _______ (Coord.). Historia del Paraguay. Asunción: Taurus, 2010.
TORAL, André. Imagens em Desordem: a iconografia da Guerra do Paraguai (1864-1870). São Paulo: Humanitas; FFLCH-USP, 2001.

Kelly Aparecida Costa, mestranda do Mestrado Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (IELA) da UNILA
Paulo Renato da Silva, professor do curso de História - América Latina da UNILA e dos mestrados Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (IELA) e em História (PPGHIS) da UNILA

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