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A imagem da morte em contextos de epidemia: três exemplos na imprensa brasileira entre o século XIX e o XXI

Publicamos hoje no Blog de História da UNILA a primeira parte da postagem "A imagem da morte em contextos de epidemia: três exemplos na imprensa brasileira entre o século XIX e o XXI", da profa. Rosangela de Jesus Silva, do curso de História da UNILA e dos programas de Pós-Graduação em Literatura Comparada e História da UNILA. Semana que vem publicaremos a segunda parte da postagem. Boa leitura a todxs!

A imagem da morte em contextos de epidemia: três exemplos na imprensa brasileira entre o século XIX e o XXI


Os registros de epidemias no Brasil são conhecidos desde o período colonial. Há inúmeras pesquisas ressaltam que, após o contato com o colonizador, um dos elementos determinantes do extermínio das populações originárias na América teria sido justamente as epidemias. Maria Berbara (2020) chama a atenção para estudos que estimam que essa mortalidade extrema da população nativa, depois de 1492, teria alterado inclusive o clima do planeta, já que o abandono de imensas áreas, antes agricultáveis, fez renascer  florestas as quais teriam contribuindo para a diminuição da temperatura. Os relatos de viajantes e religiosos são uma fonte com informações sobre as epidemias no período colonial. No relato de Bernardino de Sahagún (1499-1590) em sua Historia general de las cosas de nueva España  há informações sobre o que teria sido uma epidemia de varíola, a qual está ilustrada no livro XII do Códex Florentino.
           Entre os séculos XVI e XXI foram inúmeros os surtos epidêmicos como de febre amarela, varíola, cólera, gripe espanhola, AIDS-HIV, entre outros, até os dias atuais com a epidemia do novo coronavírus – Covid-19.  O historiador Sidney Chalhoub, no livro Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial, comenta que, na primeira metade do século XIX, enquanto o mundo era regularmente afetado por epidemias de cólera e febre amarela, o Brasil, mesmo sem boas condições sanitárias, teria passado ileso. No entanto, no verão de 1849-50, a febre amarela teria atingido mais de um terço da população, e retornado “regularmente nos verões seguintes” (CHALLOUB, 1996, p.61), assim como epidemias de cólera como a de 1855 e 1856, com efeitos “devastadores”.
            O século XIX disponibilizaria uma ferramenta a mais no registro desses fenômenos no Brasil: a imprensa. A partir da segunda metade do século esta seria auxiliada pelo crescente número de publicações que utilizavam imagens. Estas imagens foram ganhando em qualidade e quantidade graças ao desenvolvimento de técnicas de reprodução como a litografia, a qual permitia ao artista/desenhista construir sua composição visual diretamente sobre o suporte de reprodução. Seria apenas no final do século e, sobretudo, nas primeiras décadas do século XX, que a reprodução de fotografias seria amplamente utilizada. Mesmo com a reprodução de fotografias, o traço do desenhista não deixou de estar presente nas publicações através, por exemplo, das caricaturas, que até hoje aparecem nos jornais diários, seja em sua versão impressa ou digital.
            A caricatura, tomada aqui em sentido amplo do “desenho de imprensa” (SOLO, 2004) é caracterizada por seu diálogo franco com o contemporâneo. Diálogo que pressupõe um olhar crítico e pode estar permeado pelo humor, o qual aproxima o artista do público. A fim de aprofundar essa relação com o leitor, o desenhista recorrerá a símbolos, rostos e ideias familiares a seu público. Logo, acessará repertórios visuais que fazem parte da cultura visual desse grupo. Por ocasião da ocorrência de epidemias os impactos sociais são imensos e as possibilidades de repertório do caricaturista crescem na mesma proporção do caos social. Entre os diversos elementos presentes em situações de adoecimento massivo, o que mais se destaca é a morte. Fato biológico, mas com sentidos socioculturais construídos e transformados ao longo dos tempos e das diferentes sociedades, a morte acumula um grande legado de referências iconográficas na cultura ocidental, fundamentais nas interpretações construídas pelos desenhistas de imprensa.
           Na cultura ocidental há inúmeras representações da morte e um dos momentos mais profícuos de construção iconográfica sobre o tema, provavelmente, foi a Idade Média. De acordo com o historiador medievalista Johan Huizinga, no final da Idade Média, “dois meios de expressão de massa, a pregação e a gravura, podiam reproduzir a ideia da morte com um conceito muito simples, direto e real, de forma nítida e violenta.” (HUIZINGA, 2010, p.221). Para Juliana Schmitt esse período teria sido marcado por mudanças na percepção da morte, embora esta continuasse sendo vista como uma “travessia” na qual a alma seria liberta. “Tanto valor quanto o “além”, passava a ter também [valor] o que se era, o que se tinha, o que se fazia e o que se deixava no mundo.” (SCHMITT, 2016, p.166). É um período onde surgiu um grande interesse pela decomposição do corpo. Segundo Ariès (2000) as representações desse fenômeno foram denominadas “macabras”.  Estudiosos da baixa Idade Média também utilizam os termos “imaginário macabro” ou “estética macabra”. O corpo era constantemente castigado por fomes, guerras e epidemias, logo marcado pela finitude, mas não pelo medo da morte. Segundo Philipe Ariès (2000) “el hombre de fines de la Edad Media identificaba su impotencia con su destrucción física, con su muerte.” (ARIÈS, 2000, p.148). Dentro da iconografia desenvolvida pelo imaginário macabro entre os séculos XIV e XV, com o intuito de alertar  os vivos sobre a finitude da vida, podemos citar “O Encontro dos três vivos com os três mortos”; “As Danças Macabras” (representação de mortos e vivos juntos); os Ars Morendi (representações do momento da morte que ocuparam também os livros pessoais de oração denominados Livros das Horas) e os “Triunfos da Morte”. Este último coloca a morte como personagem feminina, “representação da grande ceifadora, detentora gloriosa do destino do mundo” (SCHMITT, 2016, p.174), visualmente representada como esqueleto. Huizinga elenca as diversas formas com as quais a morte era representada tanto na literatura como na plástica: “o cavaleiro apocalíptico”, “a megera com patas de morcego”; “o esqueleto com foice, ou com o arco e flecha” (HUIZINGA, 2010, p.231). Esta última, do esqueleto com foice, ecoa até hoje e foi recorrentemente utilizada na imprensa brasileira.
          No século XIX no Brasil, segundo João José Reis (1997), havia uma preocupação em ter uma “boa morte”, o que significava poder preparar esse momento. Essa preparação passava, em termos gerais, por reparar erros vividos, receber os rituais cristãos como confissão e unção dos enfermos, ter um velório e cortejo fúnebre com muitas pessoas, missas e sepultura cristã – próxima de casa, preferencialmente dentro de uma igreja. Era importante contar também com preces e orações dos que ficaram para alcançar o Paraíso ou, pelo menos, o purgatório. Em um momento no qual centenas morrem ao mesmo tempo e, rapidamente, não há tempo dos vivos cuidarem dos mortos, pelo contrário, devem se livrar do corpo o quanto antes sob risco de serem contaminados e morrerem também. Uma epidemia é capaz de inverter prioridades e colocar luz em outros aspectos da vida. A imagem publicada em 4 de março de 1876, na capa da Revista Illustrada (1876-1898), oferece vários elementos para pensar o impacto da epidemia de febre amarela que assolou o Brasil naquele momento e alguns dos obstáculos para alcançar a tão desejada “boa morte”.



Revista Illustrada, N.10, 4 de março de 1876, Rio de Janeiro, p.1

            A figura da morte evoca a tradição visual ocidental na qual aparece uma caveira, coberta com um manto e segurando uma foice/gadanha (ferramenta utilizada na agricultura para ceifar cereais). Ao redor dela observamos muitos caixões - outro símbolo da morte que veremos inúmeras vezes na imprensa brasileira entre o século XIX e o XXI - assim como alguns corpos, já sem vida, e amontoados. A rapidez com que se morria e a quantidade de mortos, para os quais até uma sepultura era difícil conseguir, tirava das pessoas a possibilidade de uma “boa morte” e poderia comprometer inclusive a “salvação” de sua alma, pela impossibilidade de realização dos ritos funerários. Era certamente um fenômeno assustador cuja representação através da caveira ceifadora e impiedosa parecia metáfora perfeita. Mas a imagem vai além e, em seu diálogo com o contexto contemporâneo, característica do desenho satírico - aqui entendido como sinônimo de caricatura -, dará conta de outros aspectos da epidemia. A paisagem, com quase total ausência de vivos, parece indicar um cemitério. Estes ganharam espaço nos debates políticos nacionais, influenciados pelos médicos/ciência, já na primeira metade do século XIX, os quais indicavam que os cemitérios “deviam ser organizados e funcionar segundo normas técnicas” (REIS, 1997, p.134) e serem construídos fora das cidades. Ariès comenta que desde o século XVIII “los cuerpos en putrefacción eran denunciados como una de las fuentes de las epidemias”. (ARIÈS, 200, p. 200). A despeito da resistência das irmandades religiosas, um dos impulsos para isto ocorrer mais rapidamente no Brasil foi justamente a epidemia de cólera de 1855-1856.
Na imagem o único ser vivo é um ministro do Segundo Reinado (1840-1889), identificado pela forma como está vestido e pelo chapéu. Em momentos críticos como os impostos por uma epidemia a importância da atuação do poder público é rapidamente evidenciado. E, no caso do Brasil, quase sempre este é associado à inoperância, incompetência e falta de respostas rápidas por parte das autoridades. De forma bastante irônica o caricaturista irá evidenciar essa situação no diálogo estabelecido entre a Febre Amarela – a morte aqui ganha nome próprio - e o ministro. A febre amarela agradece sua farta colheita favorecida pela ação (ou falta dela) do governo. O ministro responde, lisonjeado e bastante humilde, não ser o único responsável pelo sucesso da febre amarela e divide o feito com a Câmara Municipal do Rio de Janeiro – então capital do Império -, e a junta de higiene, equivalente a uma secretaria ou ministério da saúde hoje. Embora o foco da imagem seja uma crítica ao governo, ela dialoga com os medos e descontentamentos da população naquele momento, invocando um imaginário visual, que como veremos chega até nossos dias.

Referências:
ARIÈS, Philippe. Historia de la muerte en Occidente. De la Edad Media hasta nuestros días. Barcelona: Acantilado, 2000.
BERBARA, Maria. Epidemias, Arte e História. Live promovida pelo Programa de pós graduação em História da Arte da UERJ, realizada em 09 de junho de 2020 pelo google meet e em breve disponibilizada no youtube.
BRITO, Nara. La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, IV (1):11-30 mar.-jun. 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 16 de junho de 2020.
CHALLOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010.
REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: História da Vida Privada no Brasil 2. Império: a corte e a modernidade nacional.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 95-141.
SCHMITT, Juliana. Às margens da cristandade: o imaginário macabro medieval. In: Cadernos de Estudos Culturais. UFMS, V. 8 N.16, 2016, p.165-176.  Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/cadec/article/view/4239 Acesso em 16 de junho de 2020.
SOLO. Plus de 5000 dessinateurs de presse e 600 supports en France de Daumier à l’na 2000. Vichy: Editions AEDIS, 2004.

Rosangela de Jesus Silva, professora do curso de História da UNILA e dos Programas de Pós-Graduação em Literatura Comparada e História da UNILA

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