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“Ano 2000, ano 2020, E vai tá tudo igual”: A percepção das mudanças históricas em canções de rock

Em postagem anterior do blog tratamos das formas pelas quais a Teoria da História pode pensar as mudanças históricas. A percepção e vivência de uma mudança histórica, ou a expectativa diante dela, pode ser elaborada culturalmente de diferentes maneiras. Hoje, passaremos brevemente por algumas das visões que as canções de rock and roll nos trouxeram sobre o tema. Como um estilo considerado revolucionário e contestador pôde representar grandes mudanças históricas?

Dos revolucionários anos sessenta e setenta do século XX surgem diferentes possibilidades de representar e compreender como se processam as grandes revoluções históricas. Entre elas, uma profunda desconfiança quanto à real transformação prometida por aqueles que assumem o poder. Essa desconfiança é o mote da clássica “We Won’t Get Fooled Again”, da banda britânica The Who (single lançado em 1971, posteriormente inserido no álbum Who’s next, no mesmo ano). Com letra e música do guitarrista Pete Townshend, a canção explora a desilusão muitas vezes provocada por supostas revoluções. O narrador, na canção, aponta para a inevitabilidade da mudança (The change it had to come/We knew it all along), e, ao mesmo tempo, para como tudo muda, sem que nada mude. O mundo parece o mesmo, e a história não muda (And the world looks just the same/And history ain't changed). Partidos que estavam na esquerda, passam à direita (And the parting on the left/Are now the parting on the right); barbas crescem da noite para o dia, e somos apresentados ao novo líder, igual, porém, ao anterior (Meet the new boss/Same as the old boss). Por isso, a canção saúda, no refrão, novas constituições, celebra as revoluções e as mudanças que parecem surgir por toda parte, mas resguarda uma precaução: a lembrança de que devemos nos ajoelhar e rezar, para que não sejamos enganados de novo (Then I'll get on my knees and pray/We don't get fooled again), por novas promessas de mudança e revolução que nunca se concretizam.


A canção do The Who, escrita no início dos anos 1970, parece lançar um olhar de cautela e desconfiança quanto às promessas de grandes transformações históricas que se apresentavam no início dos anos 1960, simbolizadas em canções que influenciaram fortemente os artistas de rock do período, como “Times They Are A-Changin’” [Os tempos estão mudando] (1964), de Bob Dylan, e “A Change is Gonna Come” [A mudança virá] (1964), de Sam Cooke – esta última vislumbrando a perspectiva de uma nova era de igualdade racial no mundo, de direitos civis plenos para os afro-americanos. Os recentes protestos contra a violência policial contra populações afrodescendentes enfatizaram o quanto ainda é preciso caminhar na direção desses ideais. A influência do soul e R&B sobre o rock remete às origens afro-americanas do gênero. A estrutura do rock tem forte influência do Rhythm and blues (R&B), um gênero que surgiu em comunidades afro-americanas que estava muito ligada ao canto e contracanto das igrejas, além de country, blues e gospel.


No final dos anos 1980, outra canção marcante trouxe a descrença do rock em relação a mudanças históricas. “Perto do Fogo”, de Cazuza e Rita Lee (do álbum Burguesia, de Cazuza, de 1989), indica a descrença com transformações reais no final do século XX, início do século XXI: “2000, é ano 2000/E não vai mudar nada/E não vai mudar nada”; “Ano 2000, ano 2020/E vai tá tudo igual/E vai tá tudo igual”. Burguesia foi o último álbum gravado por Cazuza e lançado ainda em vida pelo cantor, que veio a falecer em 7 de julho de 1990, de complicações decorrentes do vírus HIV.

A presença da violência nas mudanças históricas perpassa outra canção clássica dos anos 1960, “Sympathy for the Devil”, dos Rolling Stones, escrita por Mick Jagger e Keith Richards, e lançada em 1968, no álbum Beggars Banquet. Inspirada em um clássico da literatura do século XX, O mestre e a margarida, de Mikhail Bulgakov, a canção expande o mote do livro. No romance, Bulgakov faz o diabo do cristianismo passear pela União Soviética stalinista. Escrito na década de 1920, o livro só foi publicado pela primeira vez (com partes censuradas) na década de 1960, na União Soviética, e sua primeira versão completa em livro surgiu em Paris em 1967. Uma tradução para o inglês surgiu no mesmo ano de 1967, no Reino Unido, e a então namorada de Mick Jagger, a cantora Marianne Faithfull, o presentou com um exemplar. Expandindo o tema da presença do diabo na terra, Jagger e Richards colocam a mesma personagem em vários momentos da história, da crucificação de Cristo aos assassinatos dos irmãos John e Robert Kennedy nos anos 1960. Apontam o quanto da história humana é marcada pela maldade, e como bem e mal podem ser os dois lados de uma mesma moeda na história. As mudanças históricas, aqui, não se davam por perspectivas revolucionárias, mas por manifestações quase caprichosas do destino. A revolução russa, por exemplo, acontece quando o protagonista da canção decide que era tempo de mudanças: I stuck around St. Petersburg when I saw it was a time for a change/Killed the Tsar and his ministers (Passei um tempo em São Petesburgo, quando vi que era hora de mudanças/Matei o Czar e seus ministros).

Processos históricos amplos, como o desencadeado pela chegada dos europeus à América, também foram objeto do olhar do rock. A banda argentina Los Fabulosos Cadillacs lançou, em 1994, a canção “V Centenario”, uma crítica às celebrações dos quinhentos anos da viagem de Colombo (1492). O verso “No hay nada que festejar” resumia a mensagem da canção, sobretudo marcada pela alusão ao genocídio indígena desencadeado pela colonização europeia. Em diferente contexto, a presença da violência na história e as mudanças geradas sob esse signo reaparecem nessa canção.

Se o rock pôde discutir o desenrolar da história e os desdobramentos do tempo, pôde também imaginar a interrupção da história e do tempo. A clássica “O Dia em que a Terra Parou” (1977), de Raul Seixas, imagina um dia em que a história e o tempo se congelam. O que efetivamente paralisa o cotidiano é o caráter relacional de nossas atividades: tudo o que fazemos depende dos outros; sem o outro, não temos por que agir. Como o policial que não sai para trabalhar, porque não tem bandidos para prender.

A passagem do tempo foi tema de emblemáticas canções, de “Time”, do Pink Floyd, a “O Tempo Não Para”, de Cazuza. Um tema recorrente, especialmente para o heavy metal, é o fim da História. O site chileno Nación Rock listou 15 canções de rock e heavy metal que tem o apocalipse como tema https://www.nacionrock.com/apocalipsis-ahora-15-canciones-de-rock-y-metal-que-hablan-del-fin-del-mundo/. Entre elas, incluiu uma ótima representante do rock latino-americano: “Locura Espacial”, da banda chilena Chancho en Piedra. A canção trata, com ironia e bom humor, das expectativas do fim do mundo no ano 2000.

Emblemático tornou-se também o brado de “No Future” em “God Save the Queen”, dos Sex Pistols, single incluído posteriormente no álbum Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols, de 1977.

O Rock enquanto movimento musical floresce na metade do século XX entre as décadas de 50 e 60, mas como a história do gênero se entrelaça com a chamada Grande História? Umas das explicações para este acontecimento passa pela análise das diferentes gerações do século XX. Especificamente, o momento Pós-Grandes Guerras (1914 - 1945) em que o mundo havia mudado drasticamente entre o que ele havia sido até o início do século XX e  como seria até o final do século XX: a era dos extremos, segundo Eric Hobsbawn.

Na micro-história dos sujeitos, no contexto dos EUA, onde surge o rock, a chamada Geração Perdida (Lost Generation, 1883-1900) lutou durante a adolescência na Primeira Guerra Mundial e viveram a vida adulta durante a Grande Depressãosubstituindo esta geração vem a considerada  Geração Grandiosa (Greatest generation, 1929-39) que era formada pelos sujeitos que cresceram durante a Grande Depressão nos Estados Unidos e que depois participaram dos combates da Segunda Guerra Mundial; já a chamada Geração Silenciosa  (Silent Generation, 1925 - 1942) vive as consequências das  amarguras da segunda guerra e tem de trabalhar para enfrentar os resultados causados por ela, além de  presenciar a Guerra da Coreia na idade adulta.

Um grande fenômeno que acontece principalmente nos EUA após o final da Segunda Guerra, é o aumento enorme do número de natalidade. Essa geração que começa a nascer no final da segunda guerra mundial e que no início da década de 60 torna-se adolescente, é chamada de  Baby boomers (1946 - 1964). Foram os primeiros a crescerem com a televisão sendo o principal meio de comunicação e de informações, na idade adulta presenciam a Guerra do Vietnã e pode-se dizer que a  Guerra Fria influenciou fortemente a visão política desta geração, o que gerou como resultado a explosão do Movimento Hippie.

Canções podem ser importantes fontes para o historiador, e passíveis de análise em seus diversos aspectos: letra, melodia, harmonia, imagens e representações, dentre outros. Uma boa introdução metodológica à análise historiográfica de canções pode ser encontrada no texto de Marcos Napolitano, “A História depois do papel” (Pinsky, 2005). Na postagem de hoje, propusemos perguntar como o rock respondeu, em momentos específicos, a uma questão fundamental para os historiadores: O que realmente está mudando quando dizemos que a história está em constante transformação?

 

Referências e indicações

Carla Bassanezi Pinsky (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008.

Podcast Deviante, História do Rock 1: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-370/

Rádio USP, História do Rock: https://jornal.usp.br/radio-usp/historia-do-rock/

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA

Gilson José de Oliveira Neto, estudante de História (Bacharelado) da UNILA e bolsista do projeto de extensão Blog de História da UNILA

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