Definindo o “pós” e o “novo”: grandes rupturas, micro mudanças e continuidades para a teoria da História
Em livro de 2007, a historiadora inglesa Penelope J. Corfield examinou diferentes tipos de mudança estudados pelos historiadores. Para a autora, o tempo determina a forma da história (daí o título de seu livro, Time and the Shape of History), um tempo também pensado pela física, matemática, biologia, entre outras ciências. As artes também nos ajudam a pensar o tempo e dar forma à história, como mostra a autora: reconstruções do passado ou imaginações do futuro (nas ficções científicas) moldam, a seu modo, nossa maneira de ver a história.
A forma como pensamos e vivenciamos as mudanças contribuem com o ritmo e o caráter do tempo histórico que estudamos e presenciamos. Assim, podemos pensar, com Corfield, em uma dinâmica de transformação e permanência que molda nossa visão da história. Mudanças na história podem ser “micro mudanças”, alterações quase imperceptíveis aos olhos dos contemporâneos, e que apenas quando vistas retrospectivamente configuram uma transformação histórica visível. Podem ser mudanças cumulativas, o resultado de décadas ou séculos de avanços (ou processos de tentativa e erro) que geram uma grande transformação – como acontece com mudanças tecnológicas, por exemplo. Ou podem ser “macro mudanças”, grandes rupturas, eventos formados de muitas transformações simultâneas concentradas em um curto período de tempo, cujos efeitos reverberam por anos ou séculos depois. O caso mais exemplar deste último tipo de mudança, na história, talvez seja a Revolução Francesa, espécie de modelo de revolução política e social para os historiadores do século XIX em diante, e emblema da ressignificação do termo “revolução”, que passou a significar ruptura profunda.
A mudança pode vir também simbolizada em um ponto de
virada, ou, simplesmente, numa virada: um evento que, visto posteriormente,
sinaliza a tomada de uma nova rota política, econômica ou cultural. Algumas
viradas esperadas pelos contemporâneos de um grande evento podem não ocorrer
como imaginado (ou, pelo menos, demorar a ocorrer), como mostra Penelope J.
Corfield. A expectativa de que a chegada do homem à Lua, em julho de 1969,
iniciasse uma era de viagens espaciais frequentes e cada vez maiores em escala
não se concretizou até hoje (atualmente, vemos
o surgimento de expedições comerciais ao espaço e a possibilidade do
turismo espacial). Por outro lado, a chegada de Colombo à América em 1492
(mesmo que não tenha sido o primeiro europeu a aportar no continente) é
considerada a virada para todo um amplo conjunto de transformações que
envolvem, para algumas interpretações, o próprio surgimento da modernidade no
Ocidente.
A explicação para as mudanças históricas também pode variar
muito, dependendo das teorias da história defendidas. Para o marxismo, as
sociedades humanas mudam em razão de contradições internas. Em diferentes casos
históricos, forças externas foram apontadas como as causas principais da
mudança: como o papel das invasões bárbaras para a queda do Império Romano, ou
o contato com o Islã para a formação da Europa medieval, na clássica tese do
historiador belga Henri Pirenne (1862-1935).
Epidemias, pestes, mudanças climáticas e outros eventos
naturais podem representar também grandes mudanças históricas. Tanto como parte
da história natural como pelas consequências que acarretam para a história
humana, histórias que, segundo o historiador indiano Dipesh Chakrabarty (2013),
já não podem mais ser pensadas em separado, pois
estaríamos vivendo um capítulo novo e sem igual na história humana com a
atual era de mudanças climáticas provocadas pela ação humana. Eventos humanos
podem significar pontos de partida para mudanças biológicas (como o contato
entre europeus e ameríndios que trouxe a estes últimos doenças por eles
desconhecidas).
A história é, pois, feita da dinâmica entre mudanças e
permanências. Como pensar as mudanças históricas? Como identificar micro mudanças,
grandes rupturas, continuidades, pontos de virada, momentos que definem um
antes e um depois?
Presenciamos hoje um debate sobre o quão impactante será a
pandemia de Covid-19 em nosso modo de vida. Há a interpretação de que “nada
será como antes”, e devemos nos acostumar ao “novo
normal”. Por outro lado, alguns intelectuais (como Giorgio
Agamben) veem no cenário da pandemia, no máximo, uma acentuação de
tendências já existentes em nossa vida (para Agamben, a tendência ao Estado de
exceção como norma). Pensar nas mudanças que identificamos hoje à luz da
história pode ser um bom exercício de reflexão sobre mudanças históricas.
Há a visão de que o pós-pandemia trará uma época em que
nossa vida será ainda mais tomada pela lógica da “vida digital”, dos algoritmos
que comandam aplicativos e programas de computador. Essas mudanças remetem a um
processo de décadas de direcionamento da indústria digital para o
desenvolvimento de interfaces nas quais não apenas o usuário compreende e opera
mais facilmente seu computador, como o próprio computador conhece e reconhece
as vontades de seu usuário. Esse processo já havia sido descrito e analisado
pelo cientista do MIT Nicholas Negroponte, no livro A Vida Digital
(1995). Por essa lógica, para ser capaz de efetivamente “conhecer” seu dono, o
computador precisaria armazenar o máximo de informações possíveis sobre o
usuário. Nesse sentido, o controle de nossas informações pessoais no mundo
digital tem a ver com vigilância e propósitos políticos, certamente, mas também
com o desenvolvimento de interfaces personalizadas, algo buscado ao menos desde
a década de 1970 pela indústria de computadores. Negroponte, no livro citado,
descreve a transformação de um mundo de átomos (matéria, partículas concretas)
para um mundo de bits (informação, dados), processo decorrido ao longo
do século XX e início do século XXI.
Assim, também nosso constante monitoramento e vigilância,
que chegariam a níveis mais elevados sob a justificativa do controle da
disseminação das doenças pelo Estado, já era uma tendência anterior (como o
caso Edward Snowden havia trazido à luz). Para
o filósofo sul-coreano Han Byung-chul, há ainda um fator cultural a ser
considerado: para sociedades do Leste Asiático, o controle dos cidadãos não
seria tão mal visto como para norte-americanos e europeus, marcados por uma tradição
de supervalorização de liberdades individuais e por um outro tipo de visão da
relação entre indivíduo e coletivo.
Desse modo, algumas mudanças que nos parecem mais visíveis
hoje são resultado de processos que já duram algumas décadas; outras, de
processos seculares. Ao pensar eventos históricos, podemos nos perguntar se
estamos diante de rupturas ou pontos de virada, ou de pontos em um longo
processo de micro mudanças que constituirá, em conjunto, uma grande alteração
no modo de vida das sociedades. Enquanto historiadores, trabalhamos com
mudanças e permanências, e, especialmente em Teoria da História, procuramos
pensar sobre os diferentes tipos de mudança que podem existir na história. Isto
é, compreendemos que as mudanças são de tipos diferentes, e têm consequências
diferentes para a história. O que é a emergência de algo novo, e o que são
acelerações, ou acentuações, de processos que já estavam em curso? O que define
o “pós” evento em História, ou um “novo” normal?
Referências e indicações de leitura:
CHAKRABARTY, Dipesh. “O Clima da História: Quatro Teses”. Sopro
91, Julho de 2013 (texto original de 2009). Disponível em http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n91s.pdf,
acesso em 04/08/2020.
CORFIELD,
Penelope J. Time and the Shape of History [O tempo e a forma da
história]. New Haven e Londres: Yale University Press, 2007.
HACKING,
Ian. The Taming of Chance [Domando o acaso]. Camdrigde: Cambridge University Press,
1990.
NEGROPONTE,
Nicholas. A Vida Digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.