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Definindo o “pós” e o “novo”: grandes rupturas, micro mudanças e continuidades para a teoria da História

Definimos comumente o objeto de estudo dos historiadores como a mudança, ou as mudanças, no plural. De forma mais completa (e complexa), o estudo das dinâmicas entre mudança e permanência, as interações entre o que se transforma e o que resiste à passagem do tempo. Se vivemos um momento de variadas reflexões sobre as mudanças trazidas pela pandemia, como podemos pensar, a partir da Teoria da História, o que são mudanças históricas?

Mudanças no dia a dia das grandes cidades após o início das políticas de isolamento social. Fontes das fotos nestes links, acesso em 04/08/2020

Em livro de 2007, a historiadora inglesa Penelope J. Corfield examinou diferentes tipos de mudança estudados pelos historiadores. Para a autora, o tempo determina a forma da história (daí o título de seu livro, Time and the Shape of History), um tempo também pensado pela física, matemática, biologia, entre outras ciências. As artes também nos ajudam a pensar o tempo e dar forma à história, como mostra a autora: reconstruções do passado ou imaginações do futuro (nas ficções científicas) moldam, a seu modo, nossa maneira de ver a história.

A forma como pensamos e vivenciamos as mudanças contribuem com o ritmo e o caráter do tempo histórico que estudamos e presenciamos. Assim, podemos pensar, com Corfield, em uma dinâmica de transformação e permanência que molda nossa visão da história. Mudanças na história podem ser “micro mudanças”, alterações quase imperceptíveis aos olhos dos contemporâneos, e que apenas quando vistas retrospectivamente configuram uma transformação histórica visível. Podem ser mudanças cumulativas, o resultado de décadas ou séculos de avanços (ou processos de tentativa e erro) que geram uma grande transformação – como acontece com mudanças tecnológicas, por exemplo. Ou podem ser “macro mudanças”, grandes rupturas, eventos formados de muitas transformações simultâneas concentradas em um curto período de tempo, cujos efeitos reverberam por anos ou séculos depois. O caso mais exemplar deste último tipo de mudança, na história, talvez seja a Revolução Francesa, espécie de modelo de revolução política e social para os historiadores do século XIX em diante, e emblema da ressignificação do termo “revolução”, que passou a significar ruptura profunda.

A mudança pode vir também simbolizada em um ponto de virada, ou, simplesmente, numa virada: um evento que, visto posteriormente, sinaliza a tomada de uma nova rota política, econômica ou cultural. Algumas viradas esperadas pelos contemporâneos de um grande evento podem não ocorrer como imaginado (ou, pelo menos, demorar a ocorrer), como mostra Penelope J. Corfield. A expectativa de que a chegada do homem à Lua, em julho de 1969, iniciasse uma era de viagens espaciais frequentes e cada vez maiores em escala não se concretizou até hoje (atualmente, vemos o surgimento de expedições comerciais ao espaço e a possibilidade do turismo espacial). Por outro lado, a chegada de Colombo à América em 1492 (mesmo que não tenha sido o primeiro europeu a aportar no continente) é considerada a virada para todo um amplo conjunto de transformações que envolvem, para algumas interpretações, o próprio surgimento da modernidade no Ocidente.

A explicação para as mudanças históricas também pode variar muito, dependendo das teorias da história defendidas. Para o marxismo, as sociedades humanas mudam em razão de contradições internas. Em diferentes casos históricos, forças externas foram apontadas como as causas principais da mudança: como o papel das invasões bárbaras para a queda do Império Romano, ou o contato com o Islã para a formação da Europa medieval, na clássica tese do historiador belga Henri Pirenne (1862-1935).

Epidemias, pestes, mudanças climáticas e outros eventos naturais podem representar também grandes mudanças históricas. Tanto como parte da história natural como pelas consequências que acarretam para a história humana, histórias que, segundo o historiador indiano Dipesh Chakrabarty (2013), já não podem mais ser pensadas em separado, pois estaríamos vivendo um capítulo novo e sem igual na história humana com a atual era de mudanças climáticas provocadas pela ação humana. Eventos humanos podem significar pontos de partida para mudanças biológicas (como o contato entre europeus e ameríndios que trouxe a estes últimos doenças por eles desconhecidas).

A história é, pois, feita da dinâmica entre mudanças e permanências. Como pensar as mudanças históricas? Como identificar micro mudanças, grandes rupturas, continuidades, pontos de virada, momentos que definem um antes e um depois?

Presenciamos hoje um debate sobre o quão impactante será a pandemia de Covid-19 em nosso modo de vida. Há a interpretação de que “nada será como antes”, e devemos nos acostumar ao “novo normal”. Por outro lado, alguns intelectuais (como Giorgio Agamben) veem no cenário da pandemia, no máximo, uma acentuação de tendências já existentes em nossa vida (para Agamben, a tendência ao Estado de exceção como norma). Pensar nas mudanças que identificamos hoje à luz da história pode ser um bom exercício de reflexão sobre mudanças históricas.

Há a visão de que o pós-pandemia trará uma época em que nossa vida será ainda mais tomada pela lógica da “vida digital”, dos algoritmos que comandam aplicativos e programas de computador. Essas mudanças remetem a um processo de décadas de direcionamento da indústria digital para o desenvolvimento de interfaces nas quais não apenas o usuário compreende e opera mais facilmente seu computador, como o próprio computador conhece e reconhece as vontades de seu usuário. Esse processo já havia sido descrito e analisado pelo cientista do MIT Nicholas Negroponte, no livro A Vida Digital (1995). Por essa lógica, para ser capaz de efetivamente “conhecer” seu dono, o computador precisaria armazenar o máximo de informações possíveis sobre o usuário. Nesse sentido, o controle de nossas informações pessoais no mundo digital tem a ver com vigilância e propósitos políticos, certamente, mas também com o desenvolvimento de interfaces personalizadas, algo buscado ao menos desde a década de 1970 pela indústria de computadores. Negroponte, no livro citado, descreve a transformação de um mundo de átomos (matéria, partículas concretas) para um mundo de bits (informação, dados), processo decorrido ao longo do século XX e início do século XXI.

Assim, também nosso constante monitoramento e vigilância, que chegariam a níveis mais elevados sob a justificativa do controle da disseminação das doenças pelo Estado, já era uma tendência anterior (como o caso Edward Snowden havia trazido à luz). Para o filósofo sul-coreano Han Byung-chul, há ainda um fator cultural a ser considerado: para sociedades do Leste Asiático, o controle dos cidadãos não seria tão mal visto como para norte-americanos e europeus, marcados por uma tradição de supervalorização de liberdades individuais e por um outro tipo de visão da relação entre indivíduo e coletivo.

Mesmo as respostas à pandemia que temos presenciado não necessariamente representam grandes rupturas. De modo geral, vemos as respostas serem organizadas a partir de uma lógica existente há alguns séculos: a lógica dos Estados nacionais modernos. O fechamento de fronteiras, a ausência de cooperação internacional, a competição por vacinas e medicamentos, as acusações e ameaças bilaterais não revelam, estruturalmente, um novo cenário – antes, a afirmação da lógica da soberania dos Estados-nação, fortalecida ao longo do século XIX. (Por outro lado, segundo alguns cientistas, há efetivamente algo sem precedentes ocorrendo atualmente, que seria a cooperação científica internacional voltada para a produção de vacinas contra a Covid-19). O constante reforço, nas discussões sobre a pandemia, da necessidade de mais testes, e, assim, de mais dados que embasem políticas públicas, também se insere em processo que remonta no mínimo ao século XIX: o crescente uso da estatística pelos Estados e a quantificação da vida (HACKING, 1990). A própria gênese e disseminação do novo coronavírus entre os seres humanos remete à manutenção de uma interface entre seres humanos, animais e natureza que já gerou outras doenças no passado e pode gerar novas no futuro. E, ao contrário do que é afirmado, por vezes preconceituosamente, não é uma realidade específica da China: regiões no globo com avanço da exploração humana sobre a natureza são passíveis de servir de foco de novas formas de vírus. No Brasil, a pesquisa de doutorado de William Marciel de Souza identificou 35 novos vírus com potencial de transmissão para o ser humano em animais silvestres apenas no Estado de São Paulo. Assim, a expansão da economia sobre a natureza, processo de longa duração, também ajuda a entender a atual pandemia. Para alguns cientistas, estaríamos, nesse caso, diante de uma mudança profunda e de consequências globais, como apontado por Dipesh Chakrabarty: uma era na qual o ser humano é agente de transformação da natureza (chamada por alguns autores de Antropoceno, conceito formulado primeiramente pelo químico holandês Paul Crutzen, por outros de Capitaloceno, enfatizando a ligação desta fase da humanidade com o modo de vida capitalista), resultando no processo de mudança climática que pode gerar um futuro sem seres humanos na Terra (o pós-humano).


Desse modo, algumas mudanças que nos parecem mais visíveis hoje são resultado de processos que já duram algumas décadas; outras, de processos seculares. Ao pensar eventos históricos, podemos nos perguntar se estamos diante de rupturas ou pontos de virada, ou de pontos em um longo processo de micro mudanças que constituirá, em conjunto, uma grande alteração no modo de vida das sociedades. Enquanto historiadores, trabalhamos com mudanças e permanências, e, especialmente em Teoria da História, procuramos pensar sobre os diferentes tipos de mudança que podem existir na história. Isto é, compreendemos que as mudanças são de tipos diferentes, e têm consequências diferentes para a história. O que é a emergência de algo novo, e o que são acelerações, ou acentuações, de processos que já estavam em curso? O que define o “pós” evento em História, ou um “novo” normal?

 

Referências e indicações de leitura:

CHAKRABARTY, Dipesh. “O Clima da História: Quatro Teses”. Sopro 91, Julho de 2013 (texto original de 2009). Disponível em http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n91s.pdf, acesso em 04/08/2020.

CORFIELD, Penelope J. Time and the Shape of History [O tempo e a forma da história]. New Haven e Londres: Yale University Press, 2007.

HACKING, Ian. The Taming of Chance [Domando o acaso]. Camdrigde: Cambridge University Press, 1990.

NEGROPONTE, Nicholas. A Vida Digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA e coordenador do projeto de extensão do Blog de História da UNILA

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