Nascido na Argentina no ano de 1934 e radicado no México desde 1975, o filósofo Enrique Dussel é hoje um dos maiores pensadores da filosofia da libertação e do pensamento latino-americano; Dussel é um crítico da pós-modernidade e do pensamento eurocêntrico contemporâneo, seu pensamento aborda questões da filosofia, ética, política e teologia. Na obra coletiva A colonialidade do saber, organizada por Edgardo Lander, Dussel discute as mudanças acerca dos conceitos de Europa, Modernidade e Eurocentrismo.
Diante disto, uma das primeiras preocupações do autor é esclarecer que o desenvolvimento unilinear que se entende como preciso na historiografia, isto é, Grécia-Roma-Europa, na verdade é resultado de um invento ideológico influenciado pelo romantismo alemão nos fins do século XVIII, ou seja, uma manipulação conceitual eurocêntrica. Para desconstruir tal manipulação o filósofo esclarece que na mitologia a Europa é filha de Fenícios, um semita. Os fenícios viviam no Norte da Palestina e fazem parte de uma das mais importantes civilizações da antiguidade. Enquanto o termo semita, denomina um conjunto linguístico composto por vários povos, entre os principais estão os árabes e hebreus. Por esta razão, Dussel defende que o sujeito ocidental nascera no império romano, pois terá o latim como principal idioma.
Desde o século VII, Constantinopla, a capital do Império Romano Oriental cristão, enfrentou o crescimento do mundo árabe-muçulmano, até este período os gregos clássicos eram tidos tanto como cristãos-bizantinos, como árabes-muçulmanos. Além do mais, a Europa Latina medieval também enfrentou o mundo árabe-turco. Para se ter uma idéia, o filósofo grego Aristóteles (385 a.C - 323 a.C) era mais caro para os árabes do que para os cristãos, que naquele momento o censuravam. As Cruzadas (1095 - 1492) representam a primeira tentativa da Europa Latina de se impor no Mediterrâneo Oriental, entretanto, por terem fracassado, a Europa Latina continuou sendo uma cultura periférica, secundária e isolada pelo mundo turco muçulmano, que dominava politicamente do Marrocos até o Egito.
A Europa latina era uma cultura periférica e nunca foi, até este momento, “centro” da história; nem mesmo com o Império Romano
Dussel defende que foi no
Renascimento italiano, mais precisamente após a queda de Constantinopla (1453),
que começou a união que representaria uma novidade. O Ocidental Latino uniu-se ao Grego Oriental para enfrentar o mundo turco, esquecendo-se é claro,
da origem helenístico-bizantina do
mundo muçulmano, pois assim seria possível criar a falsa equação: Ocidental = Helenístico + Romano + Cristão. Nasce assim a ideologia eurocêntrica
do romantismo alemão, uma sequência unilinear
que rapta a cultura grega como exclusivamente europeia e ocidental, pretendendo
garantir que tanto os gregos, como os romanos, eram o centro da história mundial.
A narrativa que coloca o Ocidente como centro mundial é considerada falsa para Dussel por duas razões:
Primeiro, quando se trata de história antiga, não há de maneira empírica História Mundial, uma vez que ainda não se possuía o conhecimento total do mundo. O que havia, eram Histórias Justapostas e Isoladas, logo, o Ocidente não poderia ser o centro. Além do mais, o lugar geopolítico também os impedia de ser o centro, pois o Mar Vermelho era o lugar de término do comércio do Oriente, consequentemente, não era o centro, mas o limite ocidental do mercado euro-afro-asiático. Para historiadores que, nos últimos anos, têm refletido sobre a escrita da história a partir de uma perspectiva global, essa proposição de Dussel pode ser tornada mais complexa. Historiadores da “Antiguidade”, como o grego Heródoto (c. 484-424 a.C.), o chinês Sima Qian (c. 145-90 a.C.) e o árabe Abu’l-Hassan Ali al-Mas’udi (c. 895-956) são considerados, de certa forma, precursores de uma história global, ao descreverem seus estados e os estados vizinhos e conhecidos de maneira a tentar compreender seus costumes (CROSSLEY, 2015, capítulo 1). O historiador indiano Sanjay Subrahmanyam também buscou as origens da história global na Antiguidade, em historiadores que se dedicaram, de alguma forma, ao estudo de povos distintos dos seus (SUBRAHMANYAM, 2017).
A partir de 1492 a Europa Moderna se constitui como o centro da História Mundial, classificando todas as outras culturas como sua periferia
Segundo, para Enrique Dussel a Idade Moderna possui duas etapas, que não seriam possíveis sem a América-Latina, por isso a centralidade da Europa seria “dependente”. Argumenta que a Espanha tomou a frente da primeira etapa com o mercantilismo mundial e com as descobertas das minas de prata de Potosi e Zacatecas em 1545-46, tal descoberta possibilitou o acúmulo de riqueza monetária para vencer os turcos na Batalha de Lepanto em 1571. Por esta razão, o autor argumenta que a centralidade da Europa Latina na história mundial é o principal fator da Modernidade; a subjetividade constituinte; a propriedade privada; a liberdade contratual; ocorrem em torno deste fator e são os resultados de um século e meio de “Modernidade”. A segunda etapa da Modernidade acontece no século XVIII com a Revolução Industrial e a influência do Iluminismo, que aprofundam e ampliam o horizonte, cujo início para estaria no século XV, posteriormente a Inglaterra substitui a Espanha como potência hegemônica até 1945, ganhando o comando da Europa Moderna e da História Mundial.
Tendo dito isso, Dussel conclui que Espanha e Portugal são os precursores da Modernidade, entretanto, esclarece que na interpretação habitual da Modernidade, estes países são deixadas de lado, junto a isso, todo o século XVI hispano-americano, o que, na opinião unânime dos especialistas, não teria tido relação direta com a Modernidade e sim, talvez, com o fim da Idade Média.
Sobre o eurocentrismo e a Transmodernidade
Tratando-se de um modelo cultural de vida, a questão do eurocentrismo vai além dos limites geográficos da Europa, os países que mantêm tradições culturais e possuem condições econômicas semelhantes, tal como Estados Unidos e Canadá, se enquadram no modelo eurocêntrico. Nas palavras de Dussel, o eurocentrismo da Modernidade, trouxe como resultado uma confusão entre a diversidade mundial e a concreta hegemonia da Europa.
Para Dussel, há dois paradigmas para se entender conceitualmente a Modernidade. Um deles é o eurocêntrico (simplório e regional), a partir desta concepção a Modernidade é tida como uma emancipação por esforço da razão, uma saída da imaturidade humana que proporciona um novo desenvolvimento dos sujeitos, visto do paradigma eurocêntrico, o processo da Modernidade se centraliza na própria Europa. Dussel se opõe a esta análise, propondo uma interpretação onde a Modernidade ocorre em paradigma mundial, o que ele chama de trans-modernidade. Para o filósofo na práxis não poderia haver História Mundial antes de 1492, até este momento, os impérios e sistemas culturais coexistiam entre si e não eram ligados diretamente de modo global.
Além do mais, o autor afirma que se o processo da Modernidade tem um núcleo racional interno a Europa, externamente a mesma realiza um processo irracional que se oculta a seus próprios olhos, pois os resultados da modernidade são utilizados como justificativas das violências irracionais praticadas no período. Diante disso, Dussel defende a necessidade de se superar esta ideia de modernidade, pois assim a face negada e vitimada da história moderna se reconhece enquanto inocente da violência sacrificadora, conquistadora e constitutiva; com isso pode julgar os culpados. Portanto, somente negando o seu mito civilizatório do Ocidente e da Modernidade, se pode reconhecer a injustiça da práxis sacrificial que ocorreu fora e na própria Europa; deve-se superar o mito da “razão emancipadora”.
Por fim, para o filósofo Enrique Dussel a Modernidade "nasce" em 1492 e a superação real do seu caráter eurocêntrico é a “Trans-Modernidade” enquanto novo projeto de libertação. Para isso o autor propõe dois paradigmas contraditórios, para se entender o processo da Modernidade: O primeiro é o da mera Modernidade eurocêntrica (simplória e regional); e o segundo o da Modernidade compreendida por um horizonte mundial (trans-moderno), a qual cumpriria uma função ambígua; de um lado enquanto emancipação; e, de outro, enquanto mítica cultura da violência. Para o filósofo, somente o segundo paradigma inclui a Modernidade/Alteridade mundial, ou seja, as contradições irracionais do processo da emancipação moderna.
Referências
CROSSLEY, Pamela Kyle. O que é história global? Rio de Janeiro:
Vozes, 2015.
DUSSEL, Enrique. “Europa,
modernidad y eurocentrismo”. In: LANDER, Edgardo (comp.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latino-americanas.
Buenos Aires: CLACSO, 2000.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. “Em busca das origens da história global: aula inaugural proferida no Collège de France em 28 de novembro de 2013”. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 30, n. 60, 2017.
Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História (Bacharelado) da UNILA e bolsista do projeto de extensão Blog de História da UNILA