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O “Progresso” Atribuído Pela Revista Painel à Itaipu: Da Exaltação às Desilusões (1973-1978) – Parte I

 

A segunda metade do século XX é marcada na política brasileira por projetos políticos de desenvolvimento e exploração interna do território nacional para consolidação da soberania.

Antes disso, a chamada Marcha para o Oeste iniciada pelo governo de Getúlio Vargas (1937-1945) tinha como propósito a integração e desenvolvimento de algumas partes do país que, segundo o projeto, não estavam integradas culturalmente e careciam de desenvolvimento e progresso.

Anos depois, o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) inicia uma série de obras para impulsionar o acesso às diversas regiões do país e o surgimento de indústrias. Uma das principais obras iniciadas no governo JK e concluída durante a ditadura militar (1964-1985) é a Ponte Internacional da Amizade, que liga o Brasil e o Paraguai.

As políticas desses governos tinham em seus discursos o objetivo de levar o “desenvolvimento” e o “progresso” para as regiões do país compreendidas como “atrasadas”. Duas grandes obras foram exemplos disso em Foz do Iguaçu e região: a já citada Ponte da Amizade (cf. SILVA; DIAS JÚNIOR, 2019) e a Usina Hidrelétrica de Itaipu, construída entre as décadas de 1970 e 1980 pela ditadura militar.

Nesta postagem analisaremos, a partir da revista Painel (1973-2017), como a usina traz para a região de fronteira, tida como “abandonada”, essa noção de “progresso” e “desenvolvimento”. Priorizamos o período de 1973 e 1978, compreendido entre a assinatura do Tratado de Itaipu e os números da revista analisados até o momento. Essa pesquisa é resultado do projeto de extensão “História e Memória de Foz do Iguaçu e região: digitalização, catalogação e difusão de fontes históricas”, coordenado pelo professor Paulo Renato da Silva e pela professora Rosangela de Jesus Silva.

Jiani Fernando Langaro (2018) analisa três livros contendo memórias de viagem de dois militares e um civil que estiveram na região Oeste paranaense entre 1896 e 1937. O primeiro livro que Jiani trabalha é A Foz do Iguassú de José Candido da Silva Muricy, um militar que deixa suas impressões da viagem realizada em 1896 de Guarapuava à então colônia militar de Foz. O segundo livro é Oeste Paranaense, publicado ao final da década de 1930. O autor, José de Lima Figueiredo, foi militar entre as décadas de 1920 e 1950. O terceiro é Sertões do Iguassú de Cesar Pietro Martinez, secretário da instrução pública que esteve na região na década de 1920. Para aprofundar sua análise, Jiani utiliza autores e autoras que já trabalharam temas relacionados à história do Oeste paranaense como Ruy Christowam Wachowicz, Antônio Marcos Myskiw e Liliane da Costa Freitag.

Neste artigo, Langaro destaca que nesses três relatos de viagens, apesar de serem de décadas distintas, os autores carregam uma visão estereotipada e cheia de clichês ao relatarem o modo de vida e como se estruturou essa região denominada de “sertão bruto” ou “sertão”. Essas denominações foram utilizadas para definir a zona fronteiriça como pouco habitada e carente de “progresso”, a qual, uma vez plenamente desenvolvida, se converteria em “civilizada” tal qual a capital paranaense (LANGARO, 2018, p.175). Os termos “progresso”, “desenvolvimento” e “civilização” são utilizados tendo como base a sociedade capitalista europeia e no âmbito mais regional se espelhavam em Curitiba. O “sertão” é descrito como sendo um local de vasta riqueza natural, tendo todas as condições necessárias para o desenvolvimento. Contudo, carecia de “progresso” e investimento, e em muitos casos esse abandono é atribuído ao Estado.

Um dos objetivos desses relatos de viagens é divulgar, sobretudo, a beleza e os recursos naturais que poderiam ser explorados pelas indústrias que acarretariam no desenvolvimento do local. Há também a descrição das dificuldades enfrentadas no curso dessas viagens à colônia de Foz do Iguaçu, como estradas mal elaboradas, picadas onde mal passavam carroças e falta de comunicação, sinais de um lugar abandonado pela “civilização”. O objetivo dessa descrição era mostrar também como esses viajantes eram corajosos ao enfrentar essas dificuldades, mostrar quão difícil e honrosa foi sua missão, valores tão apreciados no meio militar. A primeira comunidade urbana que surge onde hoje é Foz do Iguaçu, é a colônia Militar da Foz do rio Iguassú. Segundo Antônio Myskiw (2011), um destacamento militar liderado pelo coronel engenheiro Belarmino Augusto de Mendonça é autorizado – ao final de 1888 – a abrir estradas ligando a capital do Paraná, Curitiba, à região de fronteira do Rio Paraná e sobretudo estabelecer uma guarnição na região fronteiriça. Uma das argumentações para a criação da colônia militar era que a região deveria ser vigiada militarmente pois estava propensa à invasão e exploração pelos países vizinhos – Argentina e Paraguai.

Décadas após os escritos de viagens, essa “missão de divulgar a região”, sob esses conceitos de “progresso” e “desenvolvimento”, é o papel que a revista Painel (1973-2017) atribuiu para si. Na revista, não caberia mais a extração dos recursos da natureza, mas sim a exploração da “indústria sem chaminés” que seria o turismo. No Oeste Paranaense e em algumas regiões do Sul do país onde circulava, a revista Painel se deu como “missão” a de divulgar as “potencialidades” que Foz do Iguaçu carrega com suas riquezas naturais como as Cataratas do Iguaçu e o Parque Nacional do Iguaçu. Com o tratado de Itaipu assinado em abril de 1973, o projeto da maior usina hidrelétrica, que vinha sendo debatido desde a década de 1960 por Brasil e Paraguai, viria a se tonar realidade para os dois países, especialmente para os iguaçuenses, o que foi enfocado pela Painel.

Matéria publicada na revista Painel n°15 em abril de 1975, com imagem da maquete do projeto de Itaipu

Analisando algumas matérias da revista Painel entre os anos de 1973 a 1975 fica evidente em seu conteúdo a esperança de “desenvolvimento” que Itaipu traria para a região, ou melhor, para os empresários do ramo imobiliário e turístico da cidade. A revista Painel nº 11, publicada em novembro de 1974, nos traz uma matéria muito pertinente para pensar essa idealização em torno da Itaipu como berço do “progresso” e “desenvolvimento”. Intitulada Entrevistas com empresários iguaçuenses, a matéria expõe a opinião de quatro empresários ligados ao ramo turístico da cidade e ao setor de serviços. Uma das três questões formuladas pelo entrevistador foi: “Povo iguaçuense, é povo que já cansou de renovar esperanças. Será “Itaipu” mais uma ou, a verdadeira esperança de progresso e desenvolvimento sócio-econômico de Foz do Iguaçu?” (PAINEL, nov. 1974, p. 19).

A melhor forma de analisarmos essa pergunta é voltarmos às concepções de “desenvolvimento” e “progresso”, colocadas no começo do texto, e como essas concepções eram usadas para denominar essa região como um “sertão” abandonado pela “civilização”, sem apoio estatal e carente de investimentos. Tendo isso em vista, a Itaipu surge como um investimento estatal que, segundo o empresário Antônio Bordin, seria “(...) indubitavelmente a redenção econômica de Foz do Iguaçu” (PAINEL, nov. 1974, p. 22), alterando o aspecto interiorano que a cidade carregava e preparando-a melhor para o turismo. Um ponto interessante levantado pelo empresário entrevistado Lauro Ortega, do setor de hotéis, é que Foz teria todas as condições de se tornar uma segunda “Las Vegas” e que seria preciso dar um pouco mais de liberdade fiscal aos turistas (PAINEL, nov. 1974, p. 22). Essa referência à cidade de Las Vegas, sobretudo à liberdade fiscal, nos mostra que a reivindicação por criação de cassinos e centros de jogos na cidade é antiga e se perdura até hoje entre o empresariado do turismo. Destaco a fala do deputado federal Herculano Passos (PSD), então no MDB, ocorrida em maio de 2019 no Encontro de Líderes em Foz do Iguaçu (evento que reúne investidores turísticos): “O cassino é o chamariz do desenvolvimento e ele teria uma contribuição enorme na economia brasileira” (BRITO, 2019).

A imagem do abandono econômico e cultural da região, que Jiani analisou nas obras dos políticos e militares que estiveram nessa região Oeste paranaense no início do século XX, está presente ainda na década de 1970 e pode ser verificada na Painel. A Itaipu surgiu aos olhos da Painel como sendo a obra que carregava todos esses aspectos que levariam a região de Foz do Iguaçu, que se “desenvolvia a passos lentos” (PAINEL, set. 1974 p. 11), a um surto de “desenvolvimento” rumo a ser um exemplo de cidade moderna e modelo.

No entanto, em alguns momentos a revista Painel tece críticas aos impactos que a obra causaria na região atingindo a população ribeirinha e rural e sobretudo a cidade de Guaíra, onde ficavam as Sete Quedas, atração turística local. A formação do lago de Itaipu forçou o deslocamento de moradores e proprietários rurais da área atingida e submergiu as Sete Quedas em Guaíra.

Matéria publicada na revista Painel n°22 em novembro de 1975. Imagem do rio Paraná no canal onde foi construído a hidrelétrica de Itaipu

Na próxima postagem abordaremos algumas dessas críticas que a Painel dirigiu à construção de Itaipu.


Referências bibliográficas

BRITO, Janaina. Encontro de Líderes: O cassino é o chamariz do desenvolvimento. M&e Portal Brasileiro do Turismo, 17 mai. 2019. Disponível em:<https://www.mercadoeeventos.com.br/noticias/aviacao/o-casino-e-o-chamariz-do-desenvolvimento-afirma-comissao-de-regulacao-de-jogos/>. Acesso em: 08 ago. 2020.

LANGARO, Jiani Fernando. Sertão, Civilização e Progresso Olhares sobre a Fronteira Brasil-Paraguai-Argentina (1896-1937). Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol.11, n.1, jan-jul., 2018. Disponível em: <http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/806>. Acesso em: 06 ago. 2020.

MYSKIW, Antônio Marcos. A Fronteira como Destino de Viagem: a colônia militar de Foz do Iguaçu (1888-1907). Guarapuava: Unicentro, 2011.

PAINEL. 10 de junho de 1974 as festividades: 60° aniversário de Foz do Iguaçu. Painel. Foz do Iguaçu, ano II, n. 09, p.8-15, set. 1974.

PAINEL. Entrevista com empresários iguaçuenses. Painel, Foz do Iguaçu, ano II, n. 11, p. 19-23, nov. 1974.

SILVA, Paulo Renato da; DIAS JÚNIOR, Waldson de Almeida. O “progresso” e a “falta”: representações e relações Brasil-Paraguai no jornal O Globo durante a construção da Ponte da Amizade (1956-1965). Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 2, ago.-dez. 2019. Disponível em: <http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/934/pdf>. Acesso em: 15 abr. 2020.

 

Gustavo Alves Lima, estudante do curso de História-Licenciatura da UNILA e bolsista da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX)

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